Dízimos e Ofertas: Pretextos dos impiedosos

Dízimos e Ofertas: Pretextos dos impiedosos

21 de fevereiro de 2023 0 Por Sólon Pereira

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DÍZIMOS E OFERTAS

PRETEXTOS DOS IMPIEDOSOS

 

 

 

“Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende.”

l(1Tm 6:3-4a)

 

 

 

 

Sólon Lopes Pereira

 

 

DÍZIMOS E OFERTAS

PRETEXTOS DOS IMPIEDOSOS

 

Vasculhando o manual da fé cristã, de modo contextualizado, a verdade desponta. Fomos enganados! Quem nos enganou? Deus nos adverte que nos últimos dias sobreviriam tempos difíceis. Homens egoístas, avarentos, arrogantes, atrevidos, tendo forma de piedade, negando, entretanto, o poder da piedade. E agora? O que fazer? A ordem foi clara: “Foge também destes.” (2Tm 3:1-5).

É preciso resgatar o evangelho simples, piedoso, despojado e de renúncia pessoal, que foi substituído pela religião empresarial, onde a igreja é um negócio, o evangelho é um produto e o fiel é um cliente.

 

 

 

DÍZIMOS E OFERTAS

PRETEXTOS DOS IMPIEDOSOS

 

 

 

 

 

 

2014

Editora: PerSe

Editorial: Sólon Lopes Pereira

Revisão: Juliano César Gomes

Capa: Vitor Marques de Jesus

 

 

 

 

 

 

Todas as citações bíblicas deste livro foram retiradas da tradução Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida, salvo expressa menção.

 

Qualquer parte desta publicação poderá ser reproduzida mediante prévia autorização.

 

 

 

 

 

 

 

Brasília-DF

 

 

SUMÁRIO

PREFÁCIO.. 13

ESCOPO E METODOLOGIA.. 15

INTRODUÇÃO.. 17

PERÍODO PATRIARCAL.. 19

O dízimo de Abraão. 19

O dízimo de Jacó. 22

OFERTAS DA LEI. 25

Ofertas obrigatórias. 25

Ofertas voluntárias. 27

Ofertas de sacrifícios. 28

Ofertas e sacrifícios na Lei: finalidade. 33

DÍZIMO DA LEI. 35

A instituição do dízimo. 35

Finalidade do dízimo na Lei 35

O dízimo dos dízimos. 37

A periodicidade da entrega do dízimo. 38

Local de entrega e possibilidade de conversão em dinheiro. 41

Beneficiários. 41

Resgate de dízimos. 43

Conclusão. 43

PERÍODO PRÉ-EXÍLICO.. 45

Reinado de Joás. 45

Reinado de Ezequias. 45

Reinado de Josias. 46

PERÍODO PÓS-EXÍLICO.. 49

O governo de Neemias. 49

O profeta Malaquias. 50

A REVOGAÇÃO DA LEI DE MOISÉS. 59

O MINISTÉRIO DE JESUS. 63

Nascido sob a Lei 63

As tradições dos anciãos. 63

Sobre os dízimos. 64

Sobre as ofertas. 66

Sobre os impostos religiosos. 67

Sobre os impostos civis. 68

Sobre dinheiro, bens, tesouros, riqueza e prosperidade. 68

O PERÍODO DA GRAÇA.. 85

Dinheiro, riqueza, dízimos e ofertas em Atos. 85

Dinheiro, dízimos e ofertas nas Epístolas. 93

A riqueza e a fé nas epístolas. 114

DÍZIMOS E OFERTAS NA HISTÓRIA DA IGREJA.. 123

Relação entre riqueza, pobreza e favor de Deus. 123

A introdução de dízimos e de ofertas na prática da igreja. 127

DÍZIMOS E OFERTAS NA IGREJA DESTE SÉCULO.. 133

Dízimos e ofertas integram o período da graça?. 133

Jesus aprovou a cobrança de dízimos pela igreja?. 133

O funcionamento da igreja é a razão de ser do dízimo?. 134

O dízimo está implícito nas cartas de Paulo?. 134

Os pastores de hoje são os sacerdotes de ontem?. 136

Paulo considerava as ofertas como sacrifícios espirituais?. 138

Dízimos e ofertas neopentecostais. 139

A IGREJA CRISTÃ SEM DÍZIMOS. 151

O que Deus espera de um líder religioso?. 151

O que Deus espera de um cristão?. 153

O primeiro obstáculo a ser removido. 154

O segundo obstáculo a ser removido. 155

O padrão: experiência ou norma?. 156

Viabilizando a igreja. 157

CONCLUSÃO.. 163

REFERÊNCIAS. 167

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dedicatória

…………………………………………..

Dedico este livro à minha esposa, Roseli Pereira, que me apoia desde os meus primeiros passos na fé cristã, e às minhas filhas, Rebeca, Raquel e Rute, por estarem sempre presentes em todos os meus projetos e aos membros da igreja Cristã Celeiros, que acreditaram que a proposta deste livro poderia ser colocada em prática.

Agradeço, ainda, aos meus amigos e irmãos na fé que gentilmente fizeram uma crítica prévia ao conteúdo desta obra, escritor Ézio Luiz Pereira, Juliano César Gomes e Ivan Martins.

 

 

 

PREFÁCIO

Convidou-me o Pastor Sólon, ilustre autor desta instigante obra literária, para confeccionar o seu prefácio, a título de apresentação, tarefa da qual me desincumbo com especial satisfação e renovado prazer, após ler a redação definitiva, mergulhando, atentamente, no teor do que foi escrito e pesquisado, ao sabor das Sagradas Escrituras.

Decerto, a satisfação se intensifica por vários motivos. A um, porque o escritor revela liberdade e neutralidade total para enfrentar o tema, uma vez que não está refém de recebimento de dízimos, nem à mercê de “líderes” impulsionados pela ganância religiosa, o que lhe confere seriedade e legitimidade para escrever o que escreveu. A dois, porque o seu texto está dentro de um contexto, em conexidade coerente e lógica, portanto não constitui texto isolado do todo; trata-se de pesquisa sistemática e harmônica.

A três, porque o escritor foge da vala comum previsível e, de forma ousada e vanguardista, parte para uma compreensão epistemológica em sintonia com a verdadeira mensagem bíblica, sem interpretações judaizantes forçadas. A quatro, porque – a par da cientificidade – o autor respalda seus escritos na espiritualidade, sem a qual cair-se-ia em mera interpretação secular de um texto qualquer.

Colhe-se, pois, da pena do escritor requintado, a preocupação em esboçar a historicidade do tema, pois que, afinal, nas palavras do jusfilósofo Giorgio Del Vecchio, “o presente sem o passado carece de sentido e o passado revive no presente”, revelando conhecimento profundo sobre o tema e como ele se desenvolve ao longo da história humana, em sintonia com a revelação de Deus. Decerto, esta incursão teológica é absolutamente distinta das que costumeiramente aparecem aqui e ali. Assim é que, com clareza e objetividade – mas sempre primando pela franqueza, característica do Pastor Sólon – o escritor interliga cada pensamento com o tecido bíblico, sem temer o “mercado religioso”.

Do que se observa, em síntese apertada, é que o autor começa a enfrentar o tema do dízimo, no campo veterotestamentário, na era patriarcal, em Abraão, alcançando, posteriormente, o período da lei, fazendo alusão às diversas ofertas veterotestamentárias, com as devidas corrigendas doutrinárias quanto aos equívocos encontrados hoje. Seguidamente, enfrenta o tema no período pré-exílico, pós-exílico, até culminar com o ingresso na seara neotestamentária, com o advento messiânico. A partir do ministério glorioso do Senhor Jesus, o texto ganha cores interessantíssimas, até culminar com o tema dentro do período da Graça, no interlúdio da igreja contemporânea.

Mas não é apenas nessa agradável sequência histórica progressiva que a obra merece as boas-vindas no cenário da boa literatura cristã. É que o autor, com rara habilidade, passa a dissertar sobre o tema dentro da história da igreja e seus segmentos até a “igreja evangélica do século 21”, numa constante preocupação em afastar as heresias que se veem amiúde, à luz da Escritura Sagrada, em explanação exegética escorreita.

Em tom de conclusão – e não quero me alongar porque a leitura do livro não deve ser adiada por conta de um longo prefácio – o Pastor Sólon proporciona à comunidade cristã uma contribuição altamente significativa, inaugurando, assim, a sua carreira literária que já se revela promissora, com credibilidade e seriedade. Parabéns, Pastor Sólon, pela profundidade do texto oriundo de seu punho, mas com a inspiração do alto.

ÉZIO LUIZ PEREIRA[1]

 

 

DÍZIMO E OFERTAS

PRETEXTOS DOS IMPIEDOSOS

 

“Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, […], supondo que a piedade é fonte de lucro. […] Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, […] Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores. Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão.” (1Tm 6:3-11, grifo nosso).

 

ESCOPO E METODOLOGIA

De início, é preciso esclarecer que este trabalho é o resultado de reflexões particulares que foram corroboradas com a leitura de diversos livros e de textos publicados na internet, de onde foram retirados trechos ou dados considerados úteis para composição deste conteúdo e para a formação das conclusões aqui apresentadas.

 Como não se trata de um trabalho científico e nem mesmo foi composto inicialmente para ser um livro, há muitas informações dispersas cuja referência bibliográfica não está imediatamente citada, embora todo o conteúdo bibliográfico utilizado esteja indicado ao final desta obra.

Se por um lado não nos preocupamos com o rigor das regras dos textos científicos, por outro lado procuramos respeitar a lógica da nossa fé, pois, a partir do momento em que decidimos crer em uma divindade, temos que escolher os fundamentos para apoiarmos a nossa crença. Neste caso, fizemos a opção judaico-cristã ao adotarmos a Bíblia Sagrada como única fonte formadora de nossa confissão religiosa.

Importante esclarecer que não ignoramos o fato de que o pentateuco não é uma obra única, mas a reunião de diversos documentos resultantes da transição da tradição verbal para a escrita e, também, o resultado da compilação de textos ajustados no decorrer da evolução e do amadurecimento do Estado de Israel. Entretanto, apesar das peculiaridades atribuídas às duas obras narrativas (Javista e Eloísta), optamos por seguir estritamente o texto final que dele dispomos em nossa tradicional Bíblia Sagrada.

Logo, a base deste estudo está na Bíblia Sagrada, composta por seus 66 livros e que foi escrita em um período de 1.600 anos por 40 homens diferentes que expuseram histórias, poesias, biografias, normas, orações, profecias e outros relevantes temas e diversos gêneros literários. Apesar do Antigo Testamento ter sido escrito para o povo hebreu, apresenta o mesmo Deus do Novo Testamento.

Questão importante associada ao modo como procuramos interpretar a Bíblia está na forma como conciliamos o Velho Testamento com o Novo. Sem desprezar a inspiração de toda a Bíblia, mas sabendo que a antiga aliança dirige-se, em princípio, aos hebreus, decidimos sempre olhar para ela sob a ótica cristã, pois foi o próprio Jesus quem disse: “Eu Sou o CAMINHO, a VERDADE e a VIDA. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14:6).

Como cristãos, por confissão de fé, discípulos de Jesus, cremos que ele é o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, ou seja, tudo parte dele e vai até ele. Por isso, toda a nossa compreensão das coisas espirituais é sustentada por ele e esclarecida nele.

Até mesmo a interpretação que fazemos da Lei de Moisés, dos profetas e dos apóstolos busca convergir para os ensinamentos de Jesus, pois ele é a autoridade máxima. Ele é o criador de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Nada está fora do seu controle. Ele tem o mundo e o governo em suas mãos. É ele quem manda. Ele é a sabedoria e a expressão exata de Deus. Enfim, além de ser nosso salvador, ele é nosso Senhor e mestre, de modo que não faz sentido declarar o seu senhorio e, ao mesmo tempo, relegá-lo, optando pelas práticas ritualísticas do Velho Testamento.

Por dever de coerência, nossa análise neste livro privilegia as práticas religiosas, os princípios e os exemplos de vida deixados por Jesus.

Ainda, para fins de nossas interpretações, procuramos seguir os conselhos do protestantismo tradicional que, para evitar o que chamam de heresias (informações e ensinos extrabíblicos) decidiram que seriam fiéis ao princípio fundamental de “sola scriptura”, expurgando as tradições extrabíblicas (dogmas) do catolicismo medieval. Seguindo esse princípio, os reformadores afirmaram que somente a Escritura deve ser a norma, o padrão de fé e de conduta para o cristão.

Sola scriptura”: tudo o que não está de acordo com as Escrituras ou que não pode ser claramente fundamentado nelas, deve ser firmemente rejeitado.

Nesse mesmo propósito, incorporamos, também, por princípio hermenêutico, que toda interpretação bíblica responsável deve ser contextualizada. Isto é, para que se possa conhecer o sentido exato de uma passagem bíblica, é necessário observar o seu contexto, considerar o que a Bíblia inteira diz acerca do assunto (a “analogia da Escritura”), levar em conta as circunstâncias em que o texto ou livro foi escrito e, por fim, perceber a intenção original do autor (método histórico-gramatical).

Cada texto em seu contexto! Texto aplicado fora do contexto é pretexto para o ensino de heresias.

Por isso, para não cairmos em interpretações bíblicas absurdas procuramos examinar o contexto de cada passagem das Escrituras Sagradas, certos de que essa é a forma mais segura de compreensão da vontade de Deus em cada caso. Nesse sentido, inserirmos nesta obra explicações do contexto em que ocorreram a prática dos dízimos e das ofertas ao longo da história do povo de Israel.

Por último, uma vez que aceitamos a Bíblia como produto da inspiração do Espírito Santo de Deus, concordamos com os reformadores ao afirmar que seria absolutamente incoerente aceitar qualquer mensagem ou revelação sobrenatural que viesse a contradizer os registros bíblicos ou mesmo trazer interpretações que não se harmonizassem com seus propósitos. Ora, sendo o Espírito Santo o autor último das Escrituras, ele não poderia dizer uma coisa na Bíblia e outra coisa diferente ou contraditória por meio de revelações dadas a alguns homens especiais.

Revelação que não está alinhada com a Bíblia Sagrada não pode proceder de Deus e deve ser desprezada.

Escolhidos os métodos de nossa interpretação, procuramos delimitar o escopo deste livro à demonstração do modo como o dinheiro, os bens, as riquezas materiais, os dízimos e as ofertas foram tratados pelos autores bíblicos, para, ao fim, demonstrarmos o quanto algumas práticas religiosas evangélicas hodiernas estão afastadas da vontade manifesta de Deus.

Para tanto, selecionamos uma boa quantidade de textos das Escrituras Sagradas sobre o assunto para tornar compreensível nossa análise e conclusões. Além disso, apresentamos um pouco da história da igreja para descrever como dízimos e ofertas foram aplicados ao longo de sua existência.

Em outras palavras, este livro apresenta um levantamento bíblico e histórico que vai de Abraão ao neopentecostalismo e revela que muitas vertentes cristãs evangélicas contemporâneas perderam-se nesse caminho, deixando de seguir os princípios divinos para acompanhar o processo evolutivo do humanismo onde o centro é o homem e não Deus.

 

INTRODUÇÃO

No Brasil, a igreja evangélica contemporânea tem sido constante alvo de notícias na mídia. São recorrentes os informativos sobre escândalos provocados por líderes religiosos que fogem ao padrão convencional da religião cristã tradicional. Estes divorciam-se de suas esposas, gastam muitas horas semanais em programas de TV pedindo dinheiro aos telespectadores, disputam cargos públicos, investem massivamente em estruturas físicas e equipamentos de som, desviam recursos da igreja, compram aviões e redes de televisão com dinheiro dos fiéis e desfrutam de uma vida digna de magnatas explorando a fé dos homens.

O que tem o joio a ver com os escândalos?

40 Pois, assim como o joio é colhido e lançado ao fogo, assim será na consumação do século. 41 Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade 42 e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes.” (Mt 13:40-42)

Há, também, aqueles que, em menor escala, estão vivendo às custas da igreja. Optaram por não trabalhar, mas nem pensam em receber apenas o sustento diário. Querem muito mais que isso, fazendo do ministério uma atividade profissional como qualquer outra.

Evidentemente, os casos citados podem ser apenas exceções. Entretanto, nada impede que sejam analisados em face das Escrituras Sagradas. Foi o que Paulo fez ao escrever ao jovem líder Timóteo. Em sua primeira carta, a partir do quarto capítulo, apresentou uma série de recomendações e advertências para que o seu ministério se alinhasse à vontade de Deus, pois, de antemão, Paulo já sabia que nos últimos tempos alguns se apostatariam da fé, obedecendo a espíritos enganadores e a ensinos de demônios.

Em suas admoestações, Paulo, referiu-se à hipocrisia, que consiste em falsas moralidade e santidade. No lugar disso, aconselhou o jovem pastor a ser piedoso, abandonando a vaidade, de modo a se tornar um padrão para seus seguidores. As qualidades sugeridas foram o amor, a fé e a pureza. Os hábitos pastorais pessoais recomendados foram a leitura das Escrituras Sagradas, a exortação, o ensino cristão e o exercício dos dons recebidos de Deus. Fazendo assim, Paulo disse que o progresso do jovem pastor seria manifesto diante de todos. Esta foi, portanto, a prosperidade indicada por Paulo aos líderes cristãos.

Quanto à prática pastoral, Paulo recomendou cuidado em relação à aplicação da sã doutrina, ensinando-o, inclusive, sobre o modo de tratar com pessoas idosas, jovens, servos, viúvas, bem como sobre a maneira  de operar a assistência aos necessitados de auxílio da igreja. Nessa prática, ele reconheceu a importância e o valor de um presbítero, mas advertiu quanto àqueles que se inclinam ao pecado e se tornam dignos de receberem repreensão pública interna.

Ao final, o apóstolo disse a Timóteo que observasse os mestres que apresentassem doutrinas estranhas ao que fora ensinado por Jesus, especialmente quanto à piedade. Embora Vine, Unger e White (2007, p. 875) apresentem a definição de piedade (eusebeia = eu, “bom”, e sebomai, “ser devoto”), caracterizando como uma atitude de devoção a Deus ao fazer o que lhe é extremamente agradável, devemos considerar que em alguns contextos neotestamentários, o sentido do termo é “compaixão pelos sofrimentos alheios”, conforme definição de Boyer (1978, p. 493), a exemplo de 1Tm 5:3-5, cujo contexto não permite outro significado senão “compaixão e misericórdia”.

Qualquer que seja o sentido da piedade (devoção ou compaixão/misericórdia), vale a mesma advertência: quem pensa que a piedade é fonte de lucro, o apóstolo alerta: nada entende!

 

 

Paulo adverte! Não trouxemos coisa alguma para o mundo e nada levaremos dele. Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Diz mais! Os que querem ficar ricos caem em tentação, cilada e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição, porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores.

Inclusive, o apóstolo ordena que os crentes ricos sejam exortados para que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza, mas que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar e prontos a repartir, de modo a reunir um tesouro no céu.

Todas essas questões estão, agora, sob nossa avaliação. Se há distorções da verdade e da doutrina apresentada por Jesus dentro do corpo de Cristo, é preciso identificá-las e alertar a igreja, especialmente seus líderes, para que tenham a oportunidade de refletir sobre esses assuntos e fazer as correções que entendam pertinentes.

Entretanto, como dissemos antes, nossa motivação neste livro não foi apresentar uma tese acadêmica, embora reconheçamos seu teor polêmico. Mas, sobretudo, a despeito dos que deliberadamente optam por praticar o falso evangelho, em relação aos demais crentes em Jesus, somos irmãos e irmãs na família de Deus, igualmente interessados em conhecer a vontade do Senhor. As menções generalizadas aos evangélicos neste título dizem respeito àqueles que adotam, abertamente ou não, total ou parcialmente, o neopentecostalismo como prática de fé.

 

CAPÍTULO 1

PERÍODO PATRIARCAL

O dízimo de Abraão

Após ser chamado por Deus, Abraão saiu de sua terra, Ur dos caldeus, e mudou-se para Harã, permanecendo lá até a morte de seu pai (Gn 11:31-12:5; At 7:2-4). Ao partir para a terra de Canaã, levou com ele a sua esposa Sara e o seu sobrinho Ló, que lhe era como um filho, uma vez que seu irmão falecera deixando Ló aos seus cuidados. Abraão levou, também, todos os bens que ele havia adquirido e as pessoas que lhe foram acrescentadas em Harã (Gn 12:5). Com o passar dos anos, tanto Abraão como Ló enriqueceram e possuíram grandes rebanhos, de modo que houve contenda entre os empregados de ambos. Por isso, decidiram pela separação (Gn 13:1-18). Abraão ficou em Canaã e Ló dirigiu-se para os limites da cidade de Sodoma (Gn 13:12).

Em razão de um conflito na região, cinco reis, cansados de servir por doze anos ao rei de Elão (Quedorlaomer), rebelaram-se. Quedorlaomer reagiu e convocou outros três reis para conter a rebelião. Esta guerra ficou conhecida como “A guerra de quatro reis contra cinco” (Gn 14:1-17) e resultou na vitória de Quedorlaomer sobre os rebeldes. Uma das cidades a rebelar-se foi Sodoma, onde habitava Ló, sobrinho de Abraão. Ló foi levado cativo juntamente com os demais habitantes de Sodoma e todos os bens da cidade foram tomados como despojo de guerra (Gn 14:12).

Ao saber que seu sobrinho havia sido preso, Abraão decidiu libertá-lo. Para isso, ele reuniu 318 homens, criados em sua casa, e contou, também, com a ajuda de três aliados, os irmãos Manre, Escol e Aner, governadores das planícies dos amorreus. Juntos perseguiram os invasores de Sodoma e recuperaram tudo o que havia sido levado, tanto os habitantes de Sodoma como os seus bens (Gn 14:16).

Ao retornar vitorioso dessa batalha, vieram ao seu encontro o sacerdote Melquisedeque, rei de Salém, e o rei de Sodoma. Nesse encontro, Melquisedeque ofereceu a Abraão pão e vinho, além de abençoá-lo e dar graças ao Senhor por aquela grande vitória. Por sua vez, Abraão deu-lhe o dízimo de tudo, ou seja, do despojo que vinha trazendo daquela peleja (Gn 14:18-20).

Não há informação no texto se Abraão trouxe consigo apenas o que havia sido levado por Quedorlaomer (Gn 14:11) ou se trouxe os bens dos derrotados. O que se sabe é que, “de tudo” ele tirou 10% e entregou a Melquisedeque. Está claro, também, que, depois de retirar o dízimo, as despesas que teve com seus homens e a parte devida aos reis que o apoiaram naquela batalha (Gn 14:24), Abraão devolveu ao rei de Sodoma o que lhe pertencia. Apesar do rei de Sodoma ter lhe pedido que devolvesse apenas os habitantes de sua cidade, Abraão devolveu-lhe, inclusive, os bens materiais porque não quis nenhum tipo de enriquecimento às custas da fraqueza ou desgraça dos outros, senão vejamos:

“21 Então, disse o rei de Sodoma a Abrão: Dá-me as pessoas, e os bens ficarão contigo. 22 Mas Abrão lhe respondeu: Levanto a mão ao SENHOR, o Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra, 23 e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas: Eu enriqueci a Abrão; 24 nada quero para mim, senão o que os rapazes comeram e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre, que foram comigo; estes que tomem o seu quinhão.” (Gn 14:21-24, grifo nosso).

Assim, apesar do risco em que colocou a sua vida e a de seus homens, Abraão não quis tirar nenhum proveito daquela situação.

Desse contexto, podemos, agora, iniciar nossas reflexões.

Referida história bíblica tem sido utilizada para defender que os dízimos foram instituídos antes da Lei de Moisés e, por isso, integraria o período da graça, subsistindo mesmo que alguém entenda que a Lei foi abolida com a morte e a ressurreição de Jesus.

Para o cristão, familiarizado com os ensinos bíblicos, não é difícil compreender que, mesmo um texto histórico, pode conter ensinamentos, princípios de Deus e conteúdo profético embutido. De fato, essa passagem bíblica histórica não destoa dos princípios bíblicos explícitos tanto no Velho como no Novo Testamento, o que somente confirma que Abraão tinha um espírito excelente, perfeitamente alinhado com o Espírito de Deus.

Podemos notar na passagem citada que Abraão ama sua família, luta por ela, dispondo sua própria vida em favor dos outros. Além de não ser materialista, é corajoso o suficiente para fazer o que acredita que é certo e justo. O caráter de Abraão, portanto, revela amor e altruísmo acima de interesses materiais. Ele não é ladrão, não é aproveitador, não é ganancioso, não quer o que não é seu ou o que não tenha adquirido com seu próprio trabalho. Ademais, preocupa-se com o seu bom nome.

Não é preciso muito esforço para encontrar essas mesmas virtudes em Jesus e no apóstolo Paulo, de modo que me arrisco a afirmar que o procedimento de Abraão está perfeitamente recepcionado pelo contexto das Escrituras Sagradas, com ênfase no Novo Testamento. Do mesmo modo, podemos afirmar que essa passagem bíblica traz em sua narrativa um aspecto profético, qual seja: o sacerdócio do Messias seria superior à Lei, porque viria de um sacerdócio superior ao sacerdócio dos levitas. Ora, se o superior abençoa o inferior, quando Melquisedeque abençoa Abraão, abençoa também Levi, que estava nele (seu futuro descendente) demonstrando que lhe era superior. Esse entendimento está confirmado tanto no Velho como no Novo Testamento. Em um salmo profético, o Espírito de Deus já havia revelado que o Messias seria um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque:

“O SENHOR jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.” (Sl 110:4, grifo nosso)

No Novo Testamento, a carta escrita aos Hebreus revela a consumação da profecia, ligando-a Jesus, senão vejamos:

“1 Porque este Melquisedeque, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que saiu ao encontro de Abraão, quando voltava da matança dos reis, e o abençoou, 2 para o qual também Abraão separou o dízimo de tudo (primeiramente se interpreta rei de justiça, depois também é rei de Salém, ou seja, rei de paz; 3 sem pai, sem mãe, sem genealogia; que não teve princípio de dias, nem fim de existência, entretanto, feito semelhante ao Filho de Deus), permanece sacerdote perpetuamente. 4 Considerai, pois, como era grande esse a quem Abraão, o patriarca, pagou o dízimo tirado dos melhores despojos. 5 Ora, os que dentre os filhos de Levi recebem o sacerdócio têm mandamento de recolher, de acordo com a Lei, os dízimos do povo, ou seja, dos seus irmãos, embora tenham estes descendido de Abraão; 6 entretanto, aquele cuja genealogia não se inclui entre eles recebeu dízimos de Abraão e abençoou o que tinha as promessas. 7 Evidentemente, é fora de qualquer dúvida que o inferior é abençoado pelo superior.” (Hb 7:1-7, grifo nosso).

Entretanto, há uma ressalva a se fazer quanto à questão do dízimo. Tanto na passagem original do Velho Testamento como na citação da carta aos Hebreus, a ênfase está no Sacerdócio Supremo, ou seja, na autoridade conferida a Jesus para suplantar a Lei e constituir uma nova aliança no seu sangue, abrindo um novo e vivo caminho para o homem ter os seus pecados perdoados e a restauração da comunhão com Deus.

Oliveira (2005, p. 91), referindo-se a Hb 7:1-8, acrescenta que:

“O autor desta carta, certamente um judeu bem treinado nas técnicas rabínicas de argumentação, desenvolve nesta passagem um raciocínio cujo único objetivo é provar a superioridade de Cristo como sacerdote. Essa é uma tarefa realmente difícil, pois os sacerdotes descendentes de Arão receberam suas ordens diretamente de Deus, por razões que só a Sua vontade conhece. De modo que não existem pontos possíveis de apoio quando se pretende derrubar a posição solene e extremamente elevada de um sacerdote segundo a linhagem de Arão. De fato, o autor da carta explora o único ângulo possível: Arão é apenas um homem, enquanto que Jesus Cristo é filho de Deus. Assim, era importante para a sua argumentação vincular em um único argumento estas duas ideias em princípio separadas: o sacerdócio e a linhagem não humana.”.

Com essas observações, é preciso destacar que a questão do dízimo nesse contexto é secundária, um pano de fundo para a apresentação de um sacerdócio. A passagem de Abraão com o sacerdote Melquisedeque tem um conteúdo profético específico e não serve como fundamento para se afirmar que Abraão era um dizimista ou que os dízimos haviam sido instituídos desde aquele tempo.

Então, por que Hb 7:6 diz que Melquisedeque “recebeu dízimos de Abraão e abençoou o que tinha as promessas”? Alguém poderia dizer que o termo no plural indica continuidade, periodicidade ou constância, mas esse detalhe não encontra confirmação em nenhum outro texto bíblico, de modo que só podemos tirar conclusões desse plural em seu próprio contexto, da seguinte forma: o dízimo de tudo representa 10% sobre o despojo animal; 10% do despojo de cereais; 10% do despojo de metais (ouro, prata etc.); e assim por diante. Logo, temos dízimos de um mesmo despojo, o que, no total representa o dízimo de todo o despojo.

É certo que não sabemos de detalhes que não constam na história bíblica, mas devemos fazer afirmações apenas com base no que está escrito e não com base em probabilidades. Por isso, tudo o que podemos afirmar é o seguinte:

  1. Abraão deu dízimo de tudo o que trouxe de uma batalha (Gn 14:20) e, ao que se depreende do texto bíblico, não lhe pertencia originalmente (Gn 14:20-24);
  2. o texto bíblico examinado traz princípios morais e religiosos confirmados no Novo Testamento e na pessoa de Jesus (família, amor, altruísmo, desprendimento material, honestidade, justiça e bom nome); e
  3. a passagem examinada tem um conteúdo profético externado pelo salmista (Sl 110:4) e pelo escritor da carta aos Hebreus (Hb 7:1-7); e que essa profecia serviu para colocar o sacerdócio de Jesus acima do sacerdócio levítico, dando-lhe autoridade para substituir a Lei pela graça, em uma nova aliança (Hb 7:11-22).

Afora essas constatações, qualquer afirmação perde força bíblica e, sem amparo das Escrituras Sagradas, tudo o mais pode ser pretexto para a sustentação de heresias. Exemplo disso é a afirmação de que Abraão era dizimista.

Não há qualquer evidência bíblica de que Abraão tenha se tornado um dizimista do sacerdote Melquisedeque. Muito menos que ele tenha devolvido qualquer percentual do produto das rendas de seu trabalho.

Ficando apenas com o que está escrito, Abraão entregou, uma única vez, uma oferta de 10% do despojo que, na verdade, era a recuperação do patrimônio que pertencia a um outro rei. Fez isso por reconhecer que Deus o havia honrado naquela peleja, ou seja, fez isso por gratidão. Essa oferta de gratidão foi chamada de dízimo exatamente porque o percentual oferecido foi de 10%.

Também, importa destacar que a oferta de Abraão não possui os mesmos fundamentos do dízimo que é ensinado e praticado pela igreja do nosso tempo, seja ela tradicional, pentecostal ou neopentecostal. A oferta de Abraão foi um ato de gratidão pela vitória recebida, ou seja, uma oferta por ter sido abençoado – “recebeu, por isso deu”. De modo diverso, os fundamentos das igrejas evangélicas para o recebimento do dízimo hoje são: assistência aos santos, provisão para a continuidade dos trabalhos da igreja, repreensão do devorador e prosperidade material. Ou seja: “dão para receber”.

Comparando-se os fundamentos da oferta de Abraão com os fundamentos do dízimo no período da Lei, podemos igualmente concluir que são distintos, pois naquele tempo a prática de dizimar e de ofertar decorria da obediência à Lei e a desobediência implicava nas maldições previamente designadas por Deus.

Sob a Lei o dízimo era uma obrigação e não um ato de gratidão e voluntariedade do dizimista. De modo diverso, Abraão ofertou por livre e espontânea vontade.

Em síntese, a oferta de Abraão (10% do despojo de uma guerra) foi um ato voluntário, de gratidão, mas isolado. Não é possível associá-lo ao dízimo instituído pela Lei, tampouco se pode afirmar que a prática do dízimo tenha sido instituída antes dela, especialmente porque os fundamentos para a cobrança de dízimos tanto no período da Lei como pela igreja hoje, seja a tradicional, a pentecostal ou a neopentecostal, são diferentes. Ligar a primeira coisa à segunda é tentar colocar a roda de um caminhão em um fusca.

O dízimo de Jacó

Jacó era filho de Isaque, neto de Abraão, herdeiro da promessa e patriarca escolhido por Deus, do qual descendeu o povo de Israel. Após enganar seu irmão, na ocasião em que recebeu a bênção patriarcal, em cumplicidade com sua mãe, decidiu fugir da ira de Esaú porque sabia que se ficasse na casa de seu pai seria assassinado por Esaú. Assim, partiu de Beer-Seba para Harã, onde habitava seu tio Labão. No caminho, ao anoitecer, pousou em um lugar e, tomando uma pedra como travesseiro, adormeceu e teve um sonho onde viu uma escada alcançando o céu, com os anjos de Deus subindo e descendo por ela. No sonho, Deus estava de pé, acima da escada, e lhe fez promessas de bênçãos de comunhão, paz, proteção e prosperidade (Gn 28:10-17). Em resposta a essas promessas de Deus, Jacó fez um voto, que ficou registrado no seguinte texto:

“20 Fez também Jacó um voto, dizendo: Se Deus for comigo, e me guardar nesta jornada que empreendo, e [se] me der pão para comer e roupa que me vista, 21 de maneira que eu volte em paz para a casa de meu pai, então, o Senhor será o meu Deus; 22 e a pedra, que erigi por coluna, será a Casa de Deus; e, [sendo assim] de tudo quanto me concederes, certamente eu te darei o dízimo. ” (Gn 28:20-22, grifo nosso).

Respeitando o mesmo propósito de não ir além do que está registrado na Bíblia, vamos, então, fazer uma análise do texto utilizado por aqueles que defendem a existência do dízimo antes do período da Lei. A primeira coisa que podemos perceber é que, até então, Jacó não era dizimista. Não sabemos se ele trabalhava, mas sabemos que ele desejava a bênção de Deus e que seu voto diz respeito ao futuro, a uma intenção de agir no futuro. Mas, não é só isso que podemos perceber. Notamos, também, que Jacó faz um voto condicional, ou seja, darei o dízimo SE Deus fizer o que eu listei, a saber:

Darei o dízimo SE:

  1. Deus for comigo; e
  2. guardar-me nesta viagem que faço; e
  3. “me der” pão para comer e vestidos para vestir; e
  4. eu em paz tornar à casa de meu pai.

Ora, sendo estas as condições de Jacó, percebemos que Jacó somente seria um dizimista depois que retornasse à casa de seu pai, o que aconteceu 20 anos depois. Enquanto isso, mesmo que ele fosse abençoado, vivesse em segurança e prosperasse não cumpriria seu voto, ou seja, não se tornaria um dizimista. As cinco condições estão unidas pela preposição “e” (Gn 28:20). Logo, se Deus atendesse apenas quatro delas Jacó estaria desobrigado de seu o voto.

Curiosamente, não há registro bíblico que mostre que Jacó tenha cumprido esse seu voto. Mas, mesmo que isso tenha ocorrido, temos que analisar quais seriam os fundamentos desse dízimo prometido por Jacó e compará-lo com o que é anunciado no período da Lei e no período da graça.

 

 

Embora o dízimo de Jacó fosse voluntário, era condicional: primeiro a bênção, depois o dízimo.

Receber primeiro para dar depois, entretanto, não é o fundamento do dízimo do período da Lei. Como já afirmamos, naquele tempo a prática de dizimar e ofertar decorria da obediência aos preceitos da Lei de Moisés e a desobediência implicava nas maldições previamente designadas por Deus, tornando-se uma obrigação e não um ato pretensioso e condicional da vontade humana, tal como visto no voto de Jacó.

De modo semelhante, os fundamentos do dízimo prometido por Jacó não são os mesmos dos ensinados e praticados pela igreja que vive no período da graça, seja ela tradicional, pentecostal ou neopentecostal. No dízimo de Jacó há uma promessa de dar SE e DEPOIS que Deus abençoá-lo, ou seja: “receber primeiro para dar depois”. Se Jacó deu o seu dízimo, Deus não se preocupou em registrar isso, mas sabemos que todas as condições foram atendidas por Deus ao longo dos 20 anos seguintes, culminando com o seu retorno à Canaã (Gn 31:38; 33:18-20).

Em síntese, o voto de Jacó foi um ato voluntário, mas pretensioso e não há indícios bíblicos de que foi cumprido. Não é possível associá-lo ao dízimo instituído pela Lei e a passagem bíblica que registrou esse voto não é adequada para se afirmar que a prática do dízimo tenha sido instituída antes do advento desta Lei, especialmente porque os fundamentos do dízimo de Jacó (voto) são contrários aos fundamentos dos dízimos estabelecidos tanto no período da Lei como pela igreja hoje.

 

CAPÍTULO 2

OFERTAS DA LEI

Ofertas obrigatórias

Primogênitos

“Consagra-me todo primogênito; todo que abre a madre de sua mãe entre os filhos de Israel, tanto de homens como de animais, é meu.” (Êx 13:2).

Ao estabelecer seus princípios ao povo hebreu, o Deus soberano, dono de tudo, definiu a parte que caberia ao homem separar para ele, de tudo o que viesse a possuir. Assim, o Senhor consagrou para si todo o primogênito, tanto de homens como dos animais. Estes deveriam ser devolvidos como oferta de sacrifício. No caso dos homens, o Senhor permitiu um resgate, ou seja, o primogênito humano poderia ser substituído por um valor monetário, cinco siclos de dinheiro (Nm 18:15-16).

Segundo a tradição judaica:

“o ato simbólico e o diálogo travados diante de parentes e convidados geralmente é feito da seguinte forma: o pai do menino entrega o filho a um Cohen, judeu de ascendência sacerdotal, e diz: ‘Este meu primogênito é o primogênito de sua mãe e o Santificado, O Abençoado seja, ordenou-nos que o redimíssemos’. Este é o mandamento 18-15 do Livro de Números: ‘O primogênito do homem, tu o redimirás certamente e o primeiro filhote de bestas impuras, tu resgatarás’. O pagamento do resgate é fixado pelas Escrituras em 5 shekelim de prata (equivalentes a 101 gramas de prata pura. […] O dinheiro arrecadado vai para caridade” (MORASHA, 2014).

No caso do primogênito das jumentas, estas também poderiam ser resgatadas, isto é, substituídas por um cordeiro.

“11 Quando o SENHOR te houver introduzido na terra dos cananeus, como te jurou a ti e a teus pais, quando ta houver dado, 12 apartarás para o SENHOR todo que abrir a madre e todo primogênito dos animais que tiveres; os machos serão do SENHOR. 13 Porém todo primogênito da jumenta resgatarás com cordeiro; se o não resgatares, será desnucado; mas todo primogênito do homem entre teus filhos resgatarás.” (Êx 13:11-13).

Importante observar que, este tipo de oferta e seu respectivo resgate tipifica o reconhecimento da primazia de Deus sobre o seu povo.

Primícias

“As primícias dos frutos da tua terra trarás à Casa do SENHOR, teu Deus […]” (Êx 23:19).

Do mesmo modo que o primogênito, Deus requisitou do seu povo, também, a primeira parte de sua colheita. É bom ressaltar que até aqui as ofertas não possuem o sentido que utilizamos hoje, uma vez que não se trata de uma doação voluntária, mas de uma restituição obrigatória.

O momento indicado para o oferecimento das primícias seria a Páscoa e nada da safra poderia ser usado antes dessa devolução:

“10 Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando entrardes na terra, que vos dou, e segardes a sua messe, então, trareis um molho das primícias da vossa messe ao sacerdote; […] 14 Não comereis pão, nem trigo torrado, nem espigas verdes, até ao dia em que trouxerdes a oferta ao vosso Deus; é estatuto perpétuo por vossas gerações, em todas as vossas moradas.” (Lv 23:10-14).

Na ordenança dos primogênitos e das primícias, observamos o caráter de priorização de Deus na vida do homem e da anulação do apego excessivo aos valores terrenos, princípios recepcionados por Jesus, senão vejamos:

“24 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas. 25 Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes? […] 31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? 32 Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; 33 buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mt 6:24-33, grifo nosso).

Portanto, o que não pode fugir à nossa compreensão, mais uma vez, é a ordem de prioridade que Deus estabelece em seu relacionamento com o homem, claramente estabelecida tanto na Lei de Moisés quanto no ensino de Jesus.

Taxa de recenseamento

“11 Disse mais o SENHOR a Moisés: 12 Quando fizeres recenseamento dos filhos de Israel, cada um deles dará ao SENHOR o resgate de si próprio, quando os contares; para que não haja entre eles praga nenhuma, quando os arrolares. 13 Todo aquele que passar ao arrolamento dará isto: metade de um siclo, segundo o siclo do santuário (este siclo é de vinte geras); a metade de um siclo é a oferta ao SENHOR. 14 Qualquer que entrar no arrolamento, de vinte anos para cima, dará a oferta ao SENHOR. 15 O rico não dará mais de meio siclo, nem o pobre, menos, quando derem a oferta ao SENHOR, para fazerdes expiação pela vossa alma. 16 Tomarás o dinheiro das expiações dos filhos de Israel e o darás ao serviço da tenda da congregação; e será para memória aos filhos de Israel diante do SENHOR, para fazerdes expiação pela vossa alma.” (Êx 30:11-16, grifo nosso).

Embora esse recolhimento seja chamado de oferta, mais uma vez notamos que não se trata de uma opção da vontade do homem, mas, na verdade, é um imposto com fato gerador e destinação previamente definidos. Assim, cada homem contado quando da realização de um censo (fato gerador) deveria pagar, a título de resgate, um valor fixo (metade de um siclo) para a manutenção da Tenda da Congregação do Tabernáculo e, depois, do Templo em Jerusalém (destinação).

Das ofertas obrigatórias, concluímos que, apesar do nome sugerir voluntariedade, trata-se, na verdade, de imposições de Deus com o fim de estabelecer a sua primazia e senhorio sobre seu povo. Por exceção, o imposto do recenseamento, tem natureza monetária, mas somente é exigido eventualmente, por ocasião de uma necessidade específica e limitada no tempo.

Portanto, se por um lado os pedidos de ofertas que se realizam nas igrejas do nosso tempo apelam para a priorização de Deus ou para reformas e manutenção de templos religiosos, por outro lado não guardam relação com a natureza das ofertas de animais primogênitos ou de produtos da terra, estabelecidas na Lei. Isso porque este tipo de oferta da Lei não era voluntária; não era considerada um presente a Deus; não era considerada como uma expressão de gratidão; não era entregue mensalmente; não se dirigia a estrangeiros e gentios; e não era destinada a entesouramentos, enriquecimento de pessoas ou livre utilização segundo projetos humanos.

 

Ofertas voluntárias

Uma característica marcante das ofertas voluntárias é a destinação previamente especificada.

“4 Disse mais Moisés a toda a congregação dos filhos de Israel: Esta é a palavra que o SENHOR ordenou, dizendo: 5 Tomai, do que tendes, uma oferta para o SENHOR; cada um, de coração disposto, voluntariamente a trará por oferta ao SENHOR: […] 10 Venham todos os homens hábeis entre vós e façam tudo o que o SENHOR ordenou: 11 o tabernáculo com sua tenda e a sua coberta, os seus ganchos, as suas tábuas, as sua vergas, as suas colunas e as suas bases; […] 20 Então, toda a congregação dos filhos de Israel saiu da presença de Moisés, 21 e veio todo homem cujo coração o moveu e cujo espírito o impeliu e trouxe a oferta ao SENHOR para a obra da tenda da congregação, e para todo o seu serviço, e para as vestes sagradas.” (Êx 35:4-21, grifo nosso).

Importante notar que os dízimos instituídos oportunamente na Lei de Moisés não se destinavam a propósitos de construção ou manutenção do tabernáculo. Para a manutenção, os recursos vinham da taxa do recenseamento e dos valores correspondentes aos resgates em dinheiro. Para as construções o Senhor ordenou a Moisés que anunciasse ao povo que a obra seria realizada com materiais ofertados voluntariamente. Assim, a oferta voluntária, em bens e valores monetários, foi instituída por Deus para um propósito específico, limitado no tempo, e contava com uma ação do Espírito Santo para impelir os homens a fazerem suas doações na medida certa. E o mover de Deus nos corações foi tamanho que, ao recolher o suficiente, Deus proibiu novas ofertas, mostrando que o objetivo não era explorar as pessoas, mas firmar em suas mentes a importância da generosidade para o cumprimento de seus eternos propósitos, senão vejamos:

“6 Então, ordenou Moisés – e a ordem foi proclamada no arraial, dizendo: Nenhum homem ou mulher faça mais obra alguma para a oferta do santuário. Assim, o povo foi proibido de trazer mais. 7 Porque o material que tinham era suficiente para toda a obra que se devia fazer e ainda sobejava.” (Êx 36:6-7, grifo nosso).

Também, é bom destacar que a passagem examinada nos revela um Deus que não é ganancioso e não explora o homem. Apenas move o seu coração para a generosidade em favor de seu projeto eterno, mas sem impor peso insuportável e desmedido. Esse mesmo princípio nós podemos observar em Jesus, que não admitiu a ganância de comerciantes que exploravam os homens que necessitavam de elementos para seus sacrifícios, ou seja, Jesus reprovou a exploração comercial religiosa:

“12 Tendo Jesus entrado no templo, expulsou todos os que ali vendiam e compravam; também derribou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. 13 E disse-lhes: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a transformais em covil de salteadores.” (Mt 21:12-13, grifo nosso).

De igual modo, vemos os princípios da oferta voluntária contida ao essencial na vida e nas palavras de do apóstolo Paulo:

Porventura, vos explorei por intermédio de algum daqueles que vos enviei?” (2Co 12:17, grifo nosso).

“e, estando entre vós, ao passar privações, não me fiz pesado a ninguém; pois os irmãos, quando vieram da Macedônia, supriram o que me faltava; e, em tudo, me guardei e me guardarei de vos ser pesado.” (2Co 11:9, grifo nosso).

“13 Porque, em que tendes vós sido inferiores às demais igrejas, senão neste fato de não vos ter sido pesado? Perdoai-me esta injustiça. 14 Eis que, pela terceira vez, estou pronto a ir ter convosco e não vos serei pesado; pois não vou atrás dos vossos bens, mas procuro a vós outros. Não devem os filhos entesourar para os pais, mas os pais, para os filhos. 15 Eu de boa vontade me gastarei e ainda me deixarei gastar em prol da vossa alma. Se mais vos amo, serei menos amado?” (2Co 12:13-15, grifo nosso).

 

Portanto, vamos lembrar que, por princípio, a oferta voluntária, além de sua destinação predefinida, não podia configurar exploração sob qualquer pretexto religioso, ainda que parecesse justo. Quem deveria mover era o Espírito de Deus, que sabe a medida certa e justa de todas as coisas.

Ofertas de sacrifícios

Cinco são os tipos de ofertas de sacrifícios constantes da Lei dada ao povo por intermédio de Moisés: o holocausto, a oferta de manjares (flor de farinha, a melhor e mais pura), a oferta pacífica, a oferta pelo pecado, e a oferta pela culpa. Em alguns casos a oferta era inteiramente queimada, em outros os sacerdotes comiam uma parte, em outros os ofertantes também comiam.

Importante destacar que cada um desses sacrifícios foi cumprido em Jesus Cristo, confirmando seu conteúdo profético. Por certo, quando instituídas as ofertas de sacrifícios de animais, os israelitas não tinham a consciência exata do projeto que se cumpriria em Jesus Cristo. Mas, o fato de haver contínuos sacrifícios e o um fogo que ardia sem cessar no altar do holocausto, certamente despertava suas consciências a respeito do pecado e da necessidade de expiação por meio da morte de um inocente em resgate do pecador que, naquele ato, seria purificado.

Também, era de conhecimento de todos que as ofertas de sacrifício agradavam a Deus, que chamou a fumaça do sacrifício de “aroma agradável” (Gn 8:20-21; Êx 29:18,25,41; Lv 1:9,13,17; Lv 2:9; Lv 3:5,16; Lv 4:31; Lv 17:6). Assim, quem queria honrar e adorar a Deus, sabia o que deveria fazer. Veremos, pois, a seguir, as cinco ofertas levíticas designadas por Deus e seus respectivos objetivos.

Oferta de holocausto

O holocausto era um sacrifício a ser inteiramente queimado. Nada dele era comido. Em razão das contínuas ofertas de holocausto, o fogo jamais podia se apagar:

“3 Se a sua oferta for holocausto de gado, trará macho sem defeito; à porta da tenda da congregação o trará, para que o homem seja aceito perante o SENHOR. 4 E porá a mão sobre a cabeça do holocausto, para que seja aceito a favor dele, para a sua expiação. 5 Depois, imolará o novilho perante o SENHOR; e os filhos de Arão, os sacerdotes, apresentarão o sangue e o aspergirão ao redor sobre o altar que está diante da porta da tenda da congregação. 6 Então, ele esfolará o holocausto e o cortará em seus pedaços. 7 E os filhos de Arão, o sacerdote, porão fogo sobre o altar e porão em ordem lenha sobre o fogo. 8 Também os filhos de Arão, os sacerdotes, colocarão em ordem os pedaços, a saber, a cabeça e o redenho, sobre a lenha que está no fogo sobre o altar. 9 Porém as entranhas e as pernas, o sacerdote as lavará com água; e queimará tudo isso sobre o altar; é holocausto, oferta queimada, de aroma agradável ao SENHOR. […]” (Lv 1:3-9, grifo nosso).

“3 Dir-lhes-ás: Esta é a oferta queimada que oferecereis ao SENHOR, dia após dia: dois cordeiros de um ano, sem defeito, em contínuo holocausto; 4 um cordeiro oferecerás pela manhã, e o outro, ao crepúsculo da tarde;” (Nm 28:3-4, grifo nosso).

“8 Disse mais o SENHOR a Moisés: 9 Dá ordem a Arão e a seus filhos, dizendo: Esta é a Lei do holocausto: o holocausto ficará na lareira do altar toda a noite até pela manhã, e nela se manterá aceso o fogo do altar. […] 12 O fogo, pois, sempre arderá sobre o altar; não se apagará; mas o sacerdote acenderá lenha nele cada manhã, e sobre ele porá em ordem o holocausto, e sobre ele queimará a gordura das ofertas pacíficas. 13 O fogo arderá continuamente sobre o altar; não se apagará.” (Lv 6:8-13; grifo nosso).

Interessante observar que o animal apresentado como oferta de holocausto não podia ter defeito algum. O adorador colocava sua mão sobre a cabeça do animal simbolizando a transferência da culpa. Assim, o homem pecador transferia o seu pecado para o animal inocente, que era sacrificado em seguida, pagando o preço do pecado, que é a morte (Rm 6:23). Por esse ato de expiação, que só estava concluído com a ministração do sacerdote no lugar santo, o pecador era remido, purificado e o pecado extinto. E isso agradava a Deus.

Afora o caráter profético deste sacrifício, tipificando a Cristo que, sem defeito, ofereceu-se por inteiro pelo pecado de toda a humanidade, vemos o ofertante como um adorador que, ao realizar essa oferta, procura exclusivamente agradar a Deus, de modo voluntário e generoso, pois nesta oferta não lhe cabia nenhuma porção do que estava oferecendo em sacrifício ao seu Senhor. Não obstante isso, todo esse ritual foi extinto pela morte expiatória do Cordeiro de Deus, que consumou a profecia (Hb 9:11-26; 10:1-9).

Não há, portanto, razão para se estabelecer analogia do holocausto com ofertas em dinheiro e nem com sacrifícios pessoais, uma vez que Jesus ofereceu-se como holocausto da Lei exatamente para substituir o pecador.

Oferta de manjares

Além de animais, os israelitas podiam oferecer manjares (cereais) ou legumes ao Senhor.

“1 Quando alguma pessoa fizer oferta de manjares ao SENHOR, a sua oferta será de flor de farinha; nela, deitará azeite e, sobre ela, porá incenso. 2 Levá-la-á aos filhos de Arão, os sacerdotes, um dos quais tomará dela um punhado da flor de farinha e do seu azeite com todo o seu incenso e os queimará como porção memorial sobre o altar; é oferta queimada, de aroma agradável ao SENHOR. 3 O que ficar da oferta de manjares será de Arão e de seus filhos; é coisa santíssima das ofertas queimadas ao SENHOR. […] 11 Nenhuma oferta de manjares, que fizerdes ao SENHOR, se fará com fermento; porque de nenhum fermento e de mel nenhum queimareis por oferta ao SENHOR.” (Lv 2:1-11, grifo nosso).

Detalhes das ofertas de manjares e as instruções de preparo de cada uma constam de todo o capítulo dois do livro de Levítico, onde se mencionam os quatro tipos de ofertas de cereal. O pecador poderia oferecer massa de farinha de trigo assada em um forno, cozida em uma forma, frita em uma panela ou amassada para fazer pão (como na oferta das primeiras frutas).

Todas as ofertas de manjares eram feitas com azeite e sal (Lv 2:13) e nenhum mel ou fermento podia ser adicionado (Lv 2:11). O azeite e o sal conservavam a integridade da oferta, enquanto o mel e o fermento a deterioravam. O adorador também traria uma porção de incenso (puro incenso). As ofertas de manjares eram trazidas a um dos sacerdotes que as levavam ao altar e lançavam ao fogo apenas uma “porção memorial”, como oferta de cheiro suave. O mesmo faziam com o incenso. Retirada a porção que seria queimada, o restante era destinado ao sacerdote e sua família.

“9 Da oferta de manjares tomará o sacerdote a porção memorial e a queimará sobre o altar; é oferta queimada, de aroma agradável ao Senhor. 10 O que ficar da oferta de manjares será de Arão e de seus filhos; é coisa santíssima das ofertas queimadas ao Senhor.” (Lv 2:9-10, grifo nosso).

Diferentemente das demais, a oferta de manjares não implicava na morte de nenhum ser vivo e não simbolizava expiação de pecados. O propósito geral das ofertas de manjares era devotar a Deus os frutos do trabalho do homem, visto que os componentes das ofertas (farinha, azeite e incenso) não eram produtos naturais, mas, sim, resultados da ação humana sobre as coisas criadas por Deus. Fazendo isso, o ofertante expressava sua gratidão e generosidade.

É de se notar o caráter profético desta oferta, tipificando a Cristo em sua vida de devoção a Deus e aos homens necessitados de libertação, de cura e de orientação. Todos os dias de seu ministério ele dedicou-se a cumprir a vontade de Deus (a porção memorial queimada como aroma suave) e, além disso, ofereceu-se aos seus discípulos e a todos aqueles que dele se aproximavam. De Jesus, todos podiam se alimentar.

 

Portanto, do ponto de vista do ofertante, trata-se de um ato profético, voluntário, de gratidão e adoração procedente de uma vida que não é mesquinha para com Deus nem omissa para com a necessidade de seus sacerdotes. Ao contrário, a alma agradecida sente prazer em se dedicar a Deus e apresentar-se a ele de modo generoso. Tal expressão de amor pode ser notada, também, no modo como a igreja primitiva foi generosa em doar-se e em compartilhar suas posses com os necessitados, como veremos mais adiante.

Ofertas pacíficas

A oferta pacífica podia ser gado (Lv 3:1), cordeiro (Lv 3:7) ou cabra (Lv 3:12). O propósito desta oferta era produzir um aroma agradável ao Senhor (Lv 3:5, 11-16). Seu ritual é comparado ao do holocausto, exceto quanto à destinação final da oferta. Enquanto no holocausto a oferta era inteiramente queimada, as ofertas pacíficas serviam de alimento aos sacerdotes e, em certos casos, ao ofertante.

O sangue dos animais sacrificados era vertido ao redor das extremidades do altar e a gordura e as entranhas eram queimadas. Se o sacrifício fosse em ação de graças, seria acrescentado de bolos, os quais seriam comidos pelos sacerdotes e seus filhos. A carne do sacrifício, entretanto, podia ser comida inclusive pelo ofertante, no mesmo dia (Lv 7:12-15). O mesmo acontecia com o sacrifício de louvores, que deveria ser comido no mesmo dia (Lv 22:29-30). Se o sacrifício fosse em razão de um voto ou simplesmente uma oferta voluntária, poderia ser comido pelos ofertantes até o dia seguinte. Ao terceiro dia, o que não fosse comido deveria ser queimado.

“12 Se fizer por ação de graças, com a oferta de ação de graças trará bolos asmos amassados com azeite, obreias asmas untadas com azeite e bolos de flor de farinha bem amassados com azeite. […] 14 E, de toda oferta, trará um bolo por oferta ao Senhor, que será do sacerdote que aspergir o sangue da oferta pacífica. 15 Mas a carne do sacrifício de ação de graças da sua oferta pacífica se comerá no dia do seu oferecimento; nada se deixará dela até à manhã. 16 E, se o sacrifício da sua oferta for voto ou oferta voluntária, no dia em que oferecer o seu sacrifício, se comerá; e o que dele ficar também se comerá no dia seguinte. 17 Porém o que ainda restar da carne do sacrifício, ao terceiro dia, será queimado.” (Lv 7:12-17, grifo nosso).

Desse sacrifício, percebe-se em sua essência o propósito de agradar a Deus com o aroma suave do sacrifício que, é claro, havia sido imolado após receber a imposição das mãos do ofertante, tipificando a morte do inocente no lugar do pecador. Contudo, embora o principal seja a morte substitutiva, as razões do ofertante em comparecer diante do Senhor com sua oferta eram realizar uma ação de graças (gratidão), selar um voto ou simplesmente adoração em oferta voluntária.

É de se destacar que mesmo quando o homem se achegava a Deus em atitude de adoração, de gratidão ou para cumprimento de votos, o símbolo da expiação do pecado vinha em primeiro lugar (transferência da culpa para o animal que seria morto). Assim, o adorador tinha que estar purificado (santificado) até mesmo para festejar diante de Deus. O caráter profético desta oferta está na representação de Cristo como o pacificador, ou seja, aquele que remove a rebelião presente no pecado por meio do sacrifício que restabelece a comunhão do homem com Deus, trazendo a paz entre ambos e alegrando o coração do Senhor (aroma agradável). Isso é motivo de ação de graças pelo homem remido.

Por fim, do ponto de vista do ofertante, trata-se de uma oferta de teor profético, mas voluntária e em ação de graças. Afora a porção memorial, o ofertante está em festa diante de Deus e o sacerdote também pode participar desse momento com ele. É uma festa de comunhão com Deus e com os homens, onde há uma repartição do alimento ao mesmo tempo em que há uma festa comemorativa. Semelhante festa de comunhão pode ser observada, também, no ato da igreja de Cristo reunir-se para cear. Jesus fica com a porção memorial, mas a igreja compartilha do mesmo pão. Paulo, inclusive, repreende os coríntios que, por falta de entendimento, não estavam repartindo o pão durante a ceia do Senhor (1Co 11:21). Assim, ensina o Senhor que no meio de seu povo não pode reinar o espírito egoísta, avarento ou mesquinho, mas a generosidade em repartir.

Oferta pelo pecado

As ofertas pelo pecado expiavam (liquidavam a dívida por completo) das fraquezas e fracassos não intencionais dos ofertantes. Nas ofertas anteriores, o homem se apresenta voluntariamente como um adorador. Santificava-se para adorar. Mas, aqui ele comparece como um pecador convicto, mesmo que seu pecado não tenha sido um ato intencional. Ele não queria pecar, mas pecou e sabe disso. Agora, ele tem consciência de que é responsável pelos seus pecados e, sentindo o peso de sua condenação, está arrependido e quer reconciliar-se com Deus.

“2 Fala aos filhos de Israel, dizendo: Quando alguém pecar por ignorância contra qualquer dos mandamentos do Senhor, por fazer contra algum deles o que não se deve fazer, 3 se o sacerdote ungido pecar para escândalo do povo, oferecerá pelo seu pecado um novilho sem defeito ao Senhor, como oferta pelo pecado. 4 Trará o novilho à porta da tenda da congregação, perante o Senhor; porá a mão sobre a cabeça do novilho e o imolará perante o Senhor.” (Lv 4:2-4, grifo nosso).

Cada classe de pessoas tinha várias ordenanças para executar. Os pecados do sacerdote requeriam o oferecimento de um novilho sem defeito (Lv 4:3); os pecados dos líderes requeriam o oferecimento de um bode sem defeito (Lv 4:22-23); os pecados do povo requeriam animais fêmeas, ovelhas, cabras, rolas, ou pombos, de acordo com sua renda (Lv 4:27; 5:6-7); e, no caso de serem muito pobres, um oferecimento de grãos era aceitável só como uma oferta de manjares (Lv 5:11).

Os pecados não intencionais eram difíceis de identificar e poderiam acontecer a qualquer hora, e então os sacerdotes trabalhavam como mediadores entre Deus e o povo. No caso de qualquer pecado cuja oferta não tenha sido trazida diante do Senhor, havia ofertas para a nação e para o sumo sacerdote que os cobriam de um modo coletivo. No Dia da Expiação (Yom Kippur) o sumo sacerdote aspergia sangue no propiciatório para os seus próprios pecados e pelos pecados da nação.

Profeticamente, esta oferta está representada na cruz de Cristo, onde o inocente morre para proporcionar perdão e reconciliação do homem arrependido com Deus. Do ponto de vista do ofertante, trata-se de uma oferta de conteúdo profético, mas absolutamente necessária para que sua vida seja restaurada diante de Deus. Embora voluntária, seguindo prescrição de um ritual específico, foi extinta pela morte expiatória do Cordeiro de Deus, que consumou a profecia (Hb 10:1-10).

Não há, portanto, razão para se estabelecer analogia da oferta pelo pecado com ofertas em dinheiro e nem com sacrifícios pessoais, uma vez que Jesus ofereceu-se, de uma vez por todas, para perdão de pecados e purificação do pecador, morrendo em seu lugar.

Oferta pela culpa

A oferta pela culpa era bem parecida com a oferta pelo pecado, mas a diferença principal era que, além do animal a ser sacrificado, a oferta pela culpa incluía uma restituição ao ofendido ou prejudicado pela desonestidade do ofensor. O sangue da oferta pela culpa limpa a consciência e restaura o pecador diante de Deus, mas isso não é suficiente. Era necessário que o transgressor restituísse o prejuízo causado ao ofendido ou prejudicado, acrescido de uma quinta parte.

“5 ou tudo aquilo sobre que jurou falsamente; e o restituirá por inteiro e ainda a isso acrescentará a quinta parte; àquele a quem pertence, lho dará no dia da sua oferta pela culpa.” (Lv 6:5, grifo nosso).

O culpado é perdoado e o ofendido, ou prejudicado, restituído com acréscimo. O teor profético desta oferta novamente aponta para Cristo que, em seu ministério deixou exemplo não só da necessidade de expiação pela culpa diante de Deus, mas da reparação diante dos homens, quando isso é possível. Nesse sentido, a passagem de Zaqueu é reveladora:

“8 Entrementes, Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais.” (Lc 19:8, grifo nosso).

Do ponto de vista do ofertante, trata-se de uma oferta de restauração e reparação, pois a justiça de Deus exige a comunhão do homem com Deus e com seu próximo. Mais uma vez, não há razão para se estabelecer analogia desta oferta voluntária da Lei com ofertas em dinheiro requeridas pela igreja contemporânea. A analogia possível, neste caso, é a da necessidade do homem perdoado por Jesus apresentar frutos dignos de seu arrependimento (Mt 3:8; Lc 3:8).

Resgate de oferta

Embora a Lei destinasse as ofertas essencialmente aos objetivos do culto e para o sustento do sacerdócio, havia a possibilidade de se substituir certas ofertas por dinheiro, acrescentando-se 20% à sua avaliação, em alguns casos. O fato é que tudo aquilo que o Senhor havia consagrado para si lhe pertencia e deveria ser entregue no Templo. Entretanto, caso o israelita quisesse ficar com o que era do Senhor deveria, então, pagar seu preço acrescido de 20%. Isso era o chamado resgate. O valor correspondente aos resgates deveria ser entregue no Templo e, normalmente, eram utilizados para a sua manutenção.

São, portanto, resgatáveis:

1) o que Deus consagrou para si

“1 Disse o Senhor a Moisés: 2 Consagra-me todo primogênito; todo que abre a madre de sua mãe entre os filhos de Israel, tanto de homens como de animais, é meu. ” (Êx 13:1-2, grifo nosso).

Na saída dos hebreus do Egito, Deus executou sentença sobre todos os primogênitos dos egípcios, homens e animais. Por isso, como memorial, Deus ordenou ao seu povo que consagrasse a ele todo primogênito. Os animais deveriam, portanto, ser oferecidos em sacrifício ou resgatados, no caso de animais impuros; e os homens resgatados por preço, como vemos a seguir:

“15 Pois sucedeu que, endurecendo-se Faraó para não nos deixar sair, o Senhor matou todos os primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito do homem até ao primogênito dos animais; por isso, eu sacrifico ao Senhor todos os machos que abrem a madre; porém a todo primogênito de meus filhos eu resgato.” (Êx 13:15, grifo nosso).

De modo semelhante, os dízimos da terra eram consagrados ao Senhor e passíveis de resgate:

“Todos os dízimos da terra, seja dos cereais, seja das frutas das árvores, pertencem ao Senhor; são consagrados ao Senhor.
Se um homem desejar resgatar parte do seu dízimo, terá que acrescentar um quinto ao seu valor. (Lv 27:30,31, NVI, grifo nosso)

2) os votos pessoais

“1 Disse mais o Senhor a Moisés: 2 Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando alguém fizer voto com respeito a pessoas, estas serão do Senhor, segundo a tua avaliação.” (Lv 27:1-2, grifo nosso).

Votos eram atos voluntários. O israelita, por sua própria decisão, podia consagrar a Deus pessoas e seus animais, casas ou campos. Tudo o que consagrasse a Deus a título de voto pessoal seria do Senhor. Os animais deveriam ser entregues no Templo para sacrifício e os bens patrimoniais destinados aos sacerdotes. Se o ofertante decidisse ficar com o animal consagrado em vez de entregá-lo, deveria pagar o resgate (preço da avaliação) acrescido de 20%. O mesmo ocorria com os bens patrimoniais (casas e campos). No caso das pessoas, o resgate era feito pelo preço da avaliação. As instruções para as avaliações foram inseridas no capítulo 27 de Levítico.

3) o carneiro exigido como oferta pela culpa de sacrilégio

“14 Disse mais o Senhor a Moisés: 15 Quando alguém cometer ofensa e pecar por ignorância nas coisas sagradas do Senhor, então, trará ao Senhor, por oferta, do rebanho, um carneiro sem defeito, conforme a tua avaliação em siclos de prata, segundo o siclo do santuário, como oferta pela culpa. 16 Assim, restituirá o que ele tirou das coisas sagradas, e ainda acrescentará o seu quinto, e o dará ao sacerdote; assim, o sacerdote, com o carneiro da oferta pela culpa, fará expiação por ele, e lhe será perdoado.” (Lv 5:14-16, grifo nosso).

Como visto, uma das ofertas exigidas pela Lei era a “oferta pela culpa”. Neste caso, a culpa era pelo pecado inconsciente em relação a alguma coisa consagrada. Por exemplo, se alguém, por ignorância, matasse um animal consagrado ao Senhor por voto, deveria levar ao Templo, em resgate, um carneiro para ser sacrificado e mais o valor correspondente a 20% do valor da avaliação do animal.

Essas eram as orientações da Lei quanto ao resgate. O que se podia resgatar, por valor monetário, era somente aquilo que, por definição da Lei, ou por ter sido prometido, pertencia ao Senhor. Para o povo hebreu que vivia sob a Lei, portanto, havia prévia definição do que deveria e poderia ser ofertado e, no caso de resgate em dinheiro, sua aplicação estava, normalmente, condicionada à manutenção do Templo. Uma vez que a igreja não vive debaixo das ordenanças da Lei, não há como imaginar a cobrança de resgates hoje. O resgate do dízimo (do Senhor) segue o mesmo raciocínio e será examinado em tópico específico.

Ofertas e sacrifícios na Lei: finalidade

Inicialmente, é preciso observar que a palavra oferta nem sempre significa uma contribuição espontânea, podendo até ser um imposto, a exemplo da taxa de recenseamento.

Como vimos no tópico precedente, do ponto de vista cultual, as ofertas obrigatórias (primogênitos e primícias) tinham o propósito de mostrar ao povo que Deus deveria estar em primeiro lugar em suas vidas. As ofertas de sacrifícios (holocausto, manjares, pacíficas, pecado e culpa), além de apontar profeticamente para o Messias, cumpriam propósitos de adoração, ação de graças, perdão e restauração. Por sua vez, as ofertas voluntárias (doações para construção do Templo, por exemplo) serviam para que o povo demonstrasse reconhecimento e gratidão a Deus pelos seus cuidados, livramentos e sustento. Essas ofertas, entretanto, só eram sugeridas ao povo por ocasião de uma construção e ninguém deveria sentir-se constrangido a ofertar, exceto se o Espírito de Deus movesse o seu coração e, mesmo neste caso, não podiam ser pretexto para exploração do povo.

Mas, as ofertas não eram apenas figuras da expressão cultual do povo. Elas, também, destinavam-se à manutenção do próprio sistema religioso. De um modo geral, as ofertas de sacrifício e manjares eram a porção que Deus havia destinado ao sacerdócio (levitas da família de Arão) e o ofertante podia participar de muitas delas. À exceção do holocausto, que era queimado por inteiro, toda a parte da oferta que não fosse queimada ficava com o sacerdote para a sua alimentação e de sua família (Nm 18:9). De igual modo, as ofertas oriundas da consagração a Deus por voto (Nm 18:8,19), as primícias (Nm 18:12) e os primogênitos que Deus consagrou para si (Nm 18:15), destinavam-se à provisão dos sacerdotes e de suas famílias.

E como não bastava a provisão humana para a manutenção do sistema religioso, o Templo era reparado sempre que necessário com os recursos da taxa de recenseamento (Êx 30:11-16), com os valores recolhidos a título de resgate dos primogênitos dos homens (Êx 13:1-2,15), de votos pessoais (Lv 27:1-34), ou, ainda, pelo acréscimo ao resgate de oferta pela culpa de sacrilégio (Lv 5:14-16). Mas, o que é importante destacar para o objetivo deste livro é que, de todas as ofertas estabelecidas por Deus nenhuma delas tinha originalmente o propósito de entesouramento da religião às custas da exploração do povo.

 

CAPÍTULO 3

DÍZIMO DA LEI

Como vimos no primeiro capítulo, a instituição do dízimo não se deu nem em Abraão e nem em Jacó, até porque Abraão, na verdade, fez uma única oferta de 10% de um despojo que ele mesmo reconheceu não lhe pertencer. Jacó, por sua vez, fez um voto particular, onde apenas prometia dar o dízimo do que viesse a possuir, caso Deus atendesse às suas condições. Nestes dois casos, a motivação dos atos desses patriarcas diverge absolutamente dos princípios estabelecidos pelo Senhor na Lei dada ao povo israelita por intermédio de Moisés.

A instituição do dízimo

A primeira ordem de Deus acerca do dízimo foi registrada no livro de Levítico, momento em que Deus, expressamente, consagra para si o percentual de 10% de toda a produção da terra, conforme podemos ver a seguir:

“30 Também todas as dízimas da terra, tanto dos cereais do campo como dos frutos das árvores, são do SENHOR; santas são ao SENHOR. 31 Se alguém, das suas dízimas, quiser resgatar alguma coisa, acrescentará a sua quinta parte sobre ela. 32 No tocante às dízimas do gado e do rebanho, de tudo o que passar debaixo do bordão do pastor, o dízimo será santo ao SENHOR. 33 Não se investigará se é bom ou mau, nem o trocará; mas, se dalgum modo o trocar, um e outro serão santos; não serão resgatados. 34 São estes os mandamentos que o SENHOR ordenou a Moisés, para os filhos de Israel, no monte Sinai” (Lv 27:30-34, grifo nosso).

Desde então, uma parcela da produção anual de cada família produtiva passou a não mais lhe pertencer, uma vez que o Soberano criador e dono de todas as coisas disse: esta porção é minha!

No trecho bíblico citado, notamos que a instituição do dízimo segue o princípio essencial de toda oferta requerida por Deus: somos mordomos do que não é nosso. Por isso, na vigência da Lei, Deus diz que as dízimas dos cereais e dos frutos da terra eram dele. Se o homem quisesse ficar com essa porção, deveria resgatá-la, ou seja, pagar o seu preço acrescido de 20%. Ora, as dízimas da terra eram resultado do trabalho do homem, de seu esforço, de sua dedicação. Mas, Deus diz: é meu!

É claro que Deus não fazia isso por capricho, pois os dízimos e as ofertas da Lei não tinham um fim em si mesma. Havia sempre um propósito de abençoar o homem pelo estabelecimento da comunhão e das demais dádivas advindas do perdão dos pecados. Deus não instituiu o dízimo como se ele precisasse dele para si. É bom recordar que tudo é dele, inclusive a Terra “e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam” (Sl 24:1; 1Co 10:26).

Portanto, estudar a lei do dízimo exige, inicialmente, que compreendamos que o Senhor não é um explorador da boa vontade humana, mas um Deus que deseja salvar a humanidade restabelecendo a comunhão perdida com a entrada do pecado no mundo. E antes de Jesus isso se fazia por meio de um ritual que exigia, entre outras coisas, sacrifício de animais e serviçais (levitas e sacerdotes) para sua realização.

Finalidade do dízimo na Lei

A leitura bíblica da história dos hebreus nos mostra que foi Deus quem os tirou da escravidão egípcia, conduziu-os e supriu-os no deserto até chegarem à terra de Canaã. Quando tomaram posse da terra, Deus ordenou sua repartição entre as tribos de Israel. Somente os filhos de Levi não deveriam receber sua porção, pois, desde a instituição da Lei, eles já haviam sido separados para servir ao Templo e ao culto de todo o povo. De fato, os sacerdotes e os levitas não receberam uma região como herança na terra de Israel, mas apenas 48 cidades com pastagens para seus animais (Josué 21), de modo que tinham que confiar em Deus para o provimento de suas necessidades. Os dízimos da produção das famílias de Israel foi o modo escolhido por Deus para sustentá-los, como podemos ver no texto a seguir:

“20 Disse também o SENHOR a Arão: Na sua terra, herança nenhuma terás e, no meio deles, nenhuma porção terás. Eu sou a tua porção e a tua herança no meio dos filhos de Israel. 21 Aos filhos de Levi dei todos os dízimos em Israel por herança, pelo serviço que prestam, serviço da tenda da congregação.” (Nm 18:20-21, grifo nosso).

Os levitas recebiam os dízimos do povo e repassavam 10% aos sacerdotes (Nm 18:26-28). Além dos dízimos recebidos dos levitas, os sacerdotes tinham direito a determinadas porções de diversos sacrifícios (Lv 6:14-16; Lv 7:28-38), bem como as primícias e os animais primogênitos (Nm 18:8-20). Assim, como os sacerdotes e os levitas não receberam herança na terra de Israel, tudo o que tinham era a garantia de Deus de que seriam supridos pelas demais tribos que haviam ganhado suas propriedades das mãos do Senhor, senão vejamos:

“1 Disse o SENHOR a Arão: Tu, e teus filhos, e a casa de teu pai contigo […] 5 Vós, pois, fareis o serviço do santuário e o do altar, para que não haja outra vez ira contra os filhos de Israel. 6 Eu, eis que tomei vossos irmãos, os levitas, do meio dos filhos de Israel; são dados a vós outros para o SENHOR, para servir na tenda da congregação. […] 8 Disse mais o SENHOR a Arão: Eis que eu te dei o que foi separado das minhas ofertas, com todas as coisas consagradas dos filhos de Israel; dei-as por direito perpétuo como porção a ti e a teus filhos. […] 19 Todas as ofertas sagradas, que os filhos de Israel oferecerem ao SENHOR, dei-as a ti, e a teus filhos, e a tuas filhas contigo, por direito perpétuo; aliança perpétua de sal perante o SENHOR é esta, para ti e para tua descendência contigo.” (Nm 18:1-19, grifo nosso).

Como se vê, Deus deu aos sacerdotes e aos levitas um encargo e prometeu-lhes uma recompensa, um salário. Eles não teriam que trabalhar no campo, nem na agricultura, nem na pecuária, nem no pastoreio e nem na piscicultura. Também, não seriam comerciantes, artífices ou profissionais autônomos. O ofício dos sacerdotes e dos levitas era exclusivamente cuidar do serviço do santuário, do altar e da tenda da congregação. O contrato de trabalho desses homens foi assinado pelo próprio Deus em ato público universal e previa suas obrigações e a forma como seriam remunerados (Nm 18:23-24). Na prática, os levitas se tornaram mais que operadores do culto levítico. Eles passaram a exercer funções equiparadas aos nossos serviços públicos de inspeção sanitária (Lv 13:1-57; Mc 1:44), policiamento (Mt 26:47; At 9:14), Departamento de Justiça (Mt 26:59; At 5:27), Suprema Corte (Dt 17:8-13), e Departamento da Educação (Ne 8:7; Mt 23:2-3).

Oliveira (2005, p. 51), esclarece que “Além dessas funções político-administrativas, os levitas conservavam as suas funções eclesiásticas originais. De acordo com I Crônicas eles eram supervisores na Casa do Senhor (23:4), atuando como coristas, músicos, guardas das portas e guardas do limiar (9:14-33). Atuavam também como oficiais, juízes, artesãos para os serviços do Templo, supervisores dos depósitos e dos pátios, e responsáveis pelos tesouros do Templo (I Cr 9:22, 26 -27; 23:4, 28; etc.)”

Como os sacerdotes e os levitas foram incumbidos de diversas tarefas em favor do povo e, além de não receberem herança ainda foram proibidos de exercer outras atividades, deixar de pagar-lhes o devido, além de uma injustiça para com eles seria uma desonra ao Senhor, que se comprometeu em sustentá-los por meio das ofertas e do dízimo de todo o povo (Dt 14:27-29). Essa foi a razão da indignação de Deus quando o povo deixou de sustentar os sacerdotes e os levitas, conforme veremos mais adiante no estudo do livro de Malaquias.

Afora a consumação da justiça aos sacerdotes e levitas, do ponto de vista do dizimista hebreu, a Lei deixa bastante claro que a entrega dos dízimos seria um momento de alegria e um memorial de gratidão pelo modo como Deus os tirou da escravidão, os sustentou no deserto e os deu a terra prometida por herança, senão vejamos:

“1 Ao entrares na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança, ao possuí-la e nela habitares, 2 tomarás das primícias [dízimas] de todos os frutos do solo que recolheres da terra que te dá o SENHOR, teu Deus, e as porás num cesto, e irás ao lugar que o SENHOR, teu Deus, escolher para ali fazer habitar o seu nome. […] 5 Então, testificarás perante o SENHOR, teu Deus, e dirás: Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. 6 Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão. 7 Clamamos ao SENHOR, Deus de nossos pais; e o SENHOR ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; 8 e o SENHOR nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; 9 e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel. 10 Eis que, agora, trago as primícias [dízimas] dos frutos da terra que tu, ó SENHOR, me deste. Então, as porás perante o SENHOR, teu Deus, e te prostrarás perante ele. 11 Alegrar-te-ás por todo o bem que o SENHOR, teu Deus, te tem dado a ti e a tua casa, tu, e o levita, e o estrangeiro que está no meio de ti.” (Dt 26:1-2; 5-11, grifo nosso).

Por fim, a última finalidade do dízimo era ensinar o temor a Deus. De algum modo, o Senhor sabe que o cumprimento de suas ordenanças sempre custa algo ao homem (esforço, deslocamento, tempo e dedicação) e isso é uma demonstração de temor e reverência diante do Soberano. Atos de fidelidade somente são realizados por quem teme a Deus. Quem não teme ao Senhor não se importa com os seus preceitos e apenas enxerga suas condições pessoais. Seja como for, o próprio Deus disse aos hebreus que, ao recolherem os dízimos e ao levá-los ao local indicado, assim estariam aprendendo a temer a Deus, como constatamos no seguinte trecho do livro de Deuteronômio:

“23 E, perante o Senhor, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu vinho, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer o Senhor, teu Deus, todos os dias. (Dt 14:23, grifo nosso).

Em resumo, os dízimos tinham o propósito de fazer justiça aos sacerdotes e levitas, que deveriam ser sustentados pelas tribos de Israel em contrapartida aos serviços que prestavam a todo o povo, seja no santuário, no altar, na tenda da congregação ou na prestação de atividades públicas. Mas, do ponto de vista do ofertante dizimista era um aprendizado sobre o temor a Deus e uma cerimônia memorial de alegria e gratidão por todo o bem que o Senhor havia feito ao povo. Afinal, se Deus não os tivesse livrado, sustentado e dado a terra, nada teriam a levar naquele momento.

A finalidade do dízimo, sob a Lei, pode ser expressa em três palavras: justiça, gratidão e temor!

O dízimo dos dízimos

Uma vez que todos os sacerdotes eram levitas, mas nem todos os levitas eram sacerdotes, 10% dos dízimos recebidos pelos levitas deveria ser repassado aos sacerdotes (descendentes de Arão) cujas responsabilidades específicas eram relacionadas à adoração no Templo, conforme vemos a seguir:

“25 Disse o SENHOR a Moisés: 26 Também falarás aos levitas e lhes dirás: Quando receberdes os dízimos da parte dos filhos de Israel, que vos dei por vossa herança, deles apresentareis uma oferta ao SENHOR: o dízimo dos dízimos. 27 Atribuir-se-vos-á a vossa oferta como se fosse cereal da eira e plenitude do lagar. 28 Assim, também apresentareis ao Senhor uma oferta de todos os vossos dízimos que receberdes dos filhos de Israel e deles dareis a oferta do Senhor a Arão, o sacerdote.”” (Nm 18:25-28, grifo nosso).

Portanto, que fique claro: os sacerdotes só recebiam 10% dos dízimos que eram destinados aos levitas. Oliveira (2005, p. 93) assevera que “devemos lembrar que são os levitas que recebem os dízimos, e não os sacerdotes”.

Curiosamente, as lideranças evangélicas que hoje utilizam a Lei para cobrar dízimos, não a usam na hora de aplicar as receitas dos dízimos. Tudo o que recebem a título de dízimos (100%) fica sob a livre administração dos pastores (sacerdotes?). Ora, se alguém quer cumprir a Lei, que a cumpra por inteiro, “Pois qualquer que guarda toda a Lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos” (Tg 2:10). E se alguém valoriza o livro de Malaquias, deve observar que ele chamou de desprezíveis e indignos aqueles que são parciais na aplicação da Lei (Ml 2:9).

A periodicidade da entrega do dízimo

Anual

Diferentemente das ofertas, que poderiam ser realizadas em vários momentos, por ocasião das festas ou das purificações determinadas pela Lei, os dízimos deveriam ser entregues ao final de cada ano. Isso porque em uma sociedade agropastoril e pecuarista os resultados da produção não aparecem em períodos curtos de tempo, senão vejamos:

“22 Certamente, darás os dízimos de todo o fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher do campo. 23 E, perante o Senhor, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu vinho, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer o Senhor, teu Deus, todos os dias.” (Dt 14:22-23, grifo nosso).

Assim, no tempo da Lei, Deus ordenou ao seu povo que entregasse 10% de sua produção (produto da terra e resultado da criação de animais) anualmente. Cada família deveria entregar seus dízimos no lugar determinado por Deus, para sustento dos levitas que, por sua vez, davam o dízimo dessas ofertas aos sacerdotes (Nm 18:20-32). Ao levar seus dízimos e contribuições ao santuário, as famílias poderiam desfrutar de uma refeição de ações de graças e, assim, ser renovados no temor ao Senhor (Dt 14:23). Não é difícil notar que esses preceitos da Lei não são aplicáveis à igreja que vive no tempo da graça.

Por isso, deixando a Lei de lado, as igrejas criaram suas próprias leis para recolher dízimos. Estes devem ser entregues em dinheiro, mensalmente, ao pastor, que fica com 100% da arrecadação ao seu livre dispor. De modo bem diferente, a Lei diz para entregar os “dízimos do teu cereal, do teu vinho, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas”, anualmente, ao levita, que repassará 10% dessa arrecadação ao sacerdote. Logo, a única semelhança que os dízimos da Lei possuem com as cobranças que se fazem hoje nas igrejas evangélicas é o percentual estipulado, isto é, utiliza-se a Lei apenas naquilo que é conveniente.

Trienal

Dízimo trienal é fonte de divergência na literatura cristã. Mesmo sabendo que tal discussão é infrutífera, uma vez que tais preceitos da Lei não se aplicam à igreja de Jesus, trataremos dessa questão apenas para conhecer o modo como Deus regulou a coleta e a distribuição dos dízimos na Lei. Vejamos todo o texto bíblico referente a esta Lei para que possamos escolher a melhor interpretação:

“22 Certamente, darás os dízimos de todo o fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher do campo. 23 E, perante o Senhor, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu vinho, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer o Senhor, teu Deus, todos os dias. 24 Quando o caminho te for comprido demais, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que o Senhor, teu Deus, escolher para ali pôr o seu nome, quando o Senhor, teu Deus, te tiver abençoado, 25 então, vende-os, e leva o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que o Senhor, teu Deus, escolher. 26 Esse dinheiro, dá-lo-ás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, ou ovelhas, ou vinho, ou bebida forte, ou qualquer coisa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o Senhor, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa; 27 porém não desampararás o levita que está dentro da tua cidade, pois não tem parte nem herança contigo. 28 Ao fim de cada três anos, tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os recolherás na tua cidade. 29 Então, virão o levita (pois não tem parte nem herança contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se fartarão, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem.” (Dt 14:22-29, grifo nosso).

Interpretando essa passagem, há quem diga que a cada três anos o povo deveria dar ao Senhor um dízimo a mais, ou seja, além do dízimo anual o dizimista teria que separar outros 10% para amparar os levitas que morassem em sua cidade, além dos estrangeiros, órfãos e viúvas, todos necessitados de amparo. Assim, a cada três anos a contribuição deveria ser de 20% e não apenas de 10%.

Sabemos que nem todos os levitas moravam em Jerusalém. Embora servissem no santuário, conforme seus turnos, boa parte deles moravam em outras cidades.

Oliveira (2005, p. 51) ensina que “Eles [levitas] foram colocados em localidades estratégicas e nas capitais provinciais de todo o país, para administrar propriedades da coroa, cobrar impostos e fortalecer as áreas não-israelitas.”

Os levitas que habitavam em Jerusalém (lugar que Deus escolheu, enfim, para ali fazer habitar o seu nome) eram sempre supridos pelos dízimos entregues anualmente na casa do tesouro, mas os levitas habitantes de outras cidades, espalhadas por todo o território de Israel, também deveriam ser mantidos pelos dízimos, mesmo distantes do Templo. Por essa razão, o Senhor determinou que a cada três anos os dízimos do povo fossem armazenados em cada cidade, para servir de provisão aos levitas que ali habitassem e, ainda, aos necessitados.

Argumentando, os que defendem a exigência de 20% no terceiro ano assim se posicionam: “Porém não desampararás o levita […]” (Dt 14:27). Seria esta, então, uma referência ao caráter adicional desse dízimo, já que o primeiro dízimo (anual) deveria ser levado a Jerusalém. Assim, acreditam que havia um terceiro dízimo, que não deveria ser confundido com o dízimo separado para os levitas de Jerusalém nem com o “dízimo dos dízimos” entregue pelos levitas aos sacerdotes.

Cremos que essa é uma visão apequenada, ou casuística, do texto bíblico de Dt 14:22-29. Aproximando as partes estruturais dessa passagem bíblica e encurtando alguns termos sem mudar o seu sentido temos o seguinte:

“Certamente, darás os dízimos que ano após ano se recolher do campo e os comerás perante o Senhor, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome. Quando o caminho te for comprido demais, vende o seu produto e leva o dinheiro na tua mão. Esse dinheiro, dá-lo-ás por tudo o que deseja a tua alma (vacas, ou ovelhas etc.). Come-o ali perante o Senhor, tu e a tua casa. Porém não desampararás o levita que está dentro da tua cidade. Ao fim de cada três anos, tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os recolherás na tua cidade. Então, virão o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se fartarão, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem.”

Ora, defendemos que uma visão mais aprofundada do citado trecho bíblico nos conduz à seguinte interpretação: o israelita deveria levar anualmente os seus dízimos ao lugar escolhido pelo Senhor (Jerusalém), exceto no terceiro ano, ocasião em que os dízimos deveriam ser armazenados na própria cidade para servir aos levitas locais e aos necessitados. Para que isso fique mais claro, vamos fazer uma nova aproximação dos termos da passagem de Dt 14:22-29 sem alterar o seu sentido original:

“Darás os dízimos ano após ano em Jerusalém. Se estiver muito distante, troque-os por dinheiro e, chegando lá, compre suas ofertas e coma-as com sua família diante do Senhor. Porém, não se esqueça dos levitas de sua cidade. A cada três anos os dízimos serão recolhidos na tua cidade. Então, virão o levita o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se fartarão, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem.”

Essa leitura fica confirmada mais adiante, no mesmo livro de Deuteronômio, quando se pode notar que os dízimos, no terceiro ano, deveriam ser separados para os levitas e necessitados da cidade do dizimista, senão vejamos:

“12 Quando acabares de separar todos os dízimos da tua messe no ano terceiro, que é o dos dízimos, então, os darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que comam dentro das tuas cidades e se fartem. 13 Dirás perante o SENHOR, teu Deus: Tirei de minha casa o que é consagrado e dei também ao levita, e ao estrangeiro, e ao órfão, e à viúva, segundo todos os teus mandamentos que me tens ordenado; nada transgredi dos teus mandamentos, nem deles me esqueci.” (Dt 26:12-13).

Importante notar que, ao separar os “todos os dízimosdo terceiro ano, “que é dos dízimos” (Dt 26:12), fica evidente que o dízimo do terceiro ano nada mais é que o dízimo da regra geral. Ordenando melhor os termos do verso 12 temos a seguinte leitura: “no terceiro ano, que é o ano dos dízimos (como os demais), os 10% recolhidos serão dados ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, todos habitantes da cidade do dizimista”. Cremos que, do modo como fizemos as leituras dos capítulos 14 e 26, alcançamos maior coerência em face dos princípios de Deus vistos até aqui, especialmente o da justiça, que ampara o levita sem aumentar a exigência sobre o contribuinte, bem como o da gratidão, que tira o peso da obrigação.

Devemos lembrar que o propósito do dízimo era levar o povo ao temor e à gratidão a Deus, ao mesmo tempo que se destinava a suprir os levitas e os sacerdotes, fazendo-lhes justiça. A finalidade do dízimo na Lei nunca foi explorar o povo para enriquecer ou entesourar a religião. Também, não podemos nos esquecer de que, além do dízimo, o povo tirava constantes ofertas de suas rendas na ocasião das festas e para o oferecimento de seus sacrifícios. Ora, uma vez que pela regra geral todos os levitas podiam ser atendidos, como já demonstramos, não haveria necessidade alguma de dobrar a “carga tributária” no terceiro ano. Tal procedimento apenas iria sobrecarregar um povo que já tinha muitos encargos e que não era rico. E Deus, mesmo em suas exigências, sempre considerava as condições do ofertante para não lhe ser pesado, senão vejamos:

“7 Se as suas posses não lhe permitirem trazer uma cordeira, trará ao SENHOR, como oferta pela culpa, pelo pecado que cometeu, duas rolas ou dois pombinhos: um como oferta pelo pecado, e o outro como holocausto. […] 11 Porém, se as suas posses não lhe permitirem trazer duas rolas ou dois pombinhos, então, aquele que pecou trará, por sua oferta, a décima parte de um efa de flor de farinha como oferta pelo pecado; não lhe deitará azeite, nem lhe porá em cima incenso, pois é oferta pelo pecado.” (Lv 5:7, 11, grifo nosso).

Como visto, até um pouquinho de farinha seria suficiente para que o necessitado não deixasse de cumprir as ordenanças da purificação. O mesmo Deus que não explora ninguém para satisfazer projetos egoístas é aquele que se preocupa com os pobres, revelando seu amor e misericórdia. Seu propósito é repartir e amparar e não entesourar ou enriquecer sacerdotes às custas do povo contribuinte:

“10 Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o SENHOR, vosso Deus.” (Lv 19:10).

“7 Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades, na tua terra que o SENHOR, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás as mãos a teu irmão pobre; […] 9 “Guarda-te não haja pensamento vil no teu coração, nem digas: Está próximo o sétimo ano, o ano da remissão, de sorte que os teus olhos sejam malignos para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada, e ele clame contra ti ao SENHOR, e haja em ti pecado.” […] 11 Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na tua terra.” (Dt 15:7-11, grifo nosso).

Justiça e misericórdia são princípios bíblicos que não podemos desconsiderar em nossa leitura do texto de Deuteronômio 14:22-29. É bom lembrar que a interpretação isolada pode ser fonte de heresias. Por isso, devemos levar em conta o modo como Deus se revela ao homem no conjunto dos livros das Escrituras Sagradas.

Do exame empreendido, entendemos que para a realização justiça pretendida por Deus, bastaria 10% para amparar os levitas em Jerusalém ou em qualquer outra cidade que habitassem. Considerando que o termo inicial da contagem dos três anos seria diferente entre as famílias, todos os anos haveriam contribuições deixadas em Jerusalém e, igualmente, em cada cidade em que os levitas habitassem. Por exemplo: num determinado ano a família “A” está no terceiro ano de sua contagem e deve deixar seu dízimo em sua cidade, enquanto a família “B” está no segundo ano de sua contagem e terá que levar seu dízimo a Jerusalém. No ano seguinte, a família “A” estará no primeiro ano de sua contagem e entregará seu dízimo em Jerusalém, enquanto a família “B” estará no terceiro ano de sua contagem e deixará seu dízimo para os levitas de sua cidade.

Portanto, além do fato de tal preceito da Lei não ser aplicável à igreja, apenas a título de esclarecimento da prática do passado, argumentamos que acolher a tese de um terceiro dízimo, somado ao dízimo regular anual a cada três anos seria fazer 10% virar 20%, o que, a nosso ver, não condiz com a proposta inicial do dízimo. Certamente, se Deus quisesse mudar a regra inicial, teria deixado isso bem claro.

Local de entrega e possibilidade de conversão em dinheiro

Inicialmente, é necessário esclarecer que os dízimos da Lei não eram contribuições em dinheiro ou qualquer outro tipo de valor monetário, mas um percentual de 10% da produção comum naquela época e região (agricultura e criação de animais). Deus quis assim. Por isso não se vê nenhuma ordem nas escrituras sagradas para que os israelitas dessem dízimos dos rendimentos das diversas profissões existentes naquele tempo. E veja-se que há registros de que haviam entre eles ourives (Is 40:19), artesãos (1 Cr 4:14), construtores (2 Rs 22:5-6) e comerciantes (Ne 13:20). Mesmo assim, ao especificar os produtos que deveriam constituir os dízimos, o Senhor referiu-se aos cereais do campo e fruto das árvores (Lv 27:30) e aos frutos das sementes, cereais, vinho, azeite, além de vacas e ovelhas (Dt 14:22-23), de modo que fica claro que não queria dízimos em dinheiro.

Para quem pensa que essa determinação bíblica devia-se ao fato de não existir dinheiro naquele tempo é bom esclarecer que desde Abraão, ou seja, antes mesmo da instituição da Lei já existiam comerciantes que utilizavam o dinheiro como moeda de mercado, senão vejamos:

“9 Disse mais Deus a Abraão: Guardarás a minha aliança, tu e a tua descendência no decurso das suas gerações. […] 13 Com efeito, será circuncidado o nascido em tua casa e o comprado por teu dinheiro; a minha aliança estará na vossa carne e será aliança perpétua.” (Gn 17:9,13, grifo nosso).

Desse modo, quando Deus estabeleceu que os dízimos seriam de produtos da terra e do pastoreio, e não valores correspondentes em dinheiro, era porque a função principal do dízimo era a provisão alimentícia dos levitas e dos sacerdotes. Quando Deus permitiu que se trocassem os dízimos por dinheiro, foi apenas para facilitar o transporte, conforme veremos a seguir.

Quanto ao local de entrega, todos os dízimos, à exceção do trienal, deveriam ser levados ao lugar em que o Senhor escolheu para ali pôr o seu nome:

“5 mas buscareis o lugar que o SENHOR, vosso Deus, escolher de todas as vossas tribos, para ali pôr o seu nome e sua habitação [Jerusalém]; e para lá ireis. 6 A esse lugar fareis chegar os vossos holocaustos, e os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos, e a oferta das vossas mãos, e as ofertas votivas [dos votos], e as ofertas voluntárias, e os primogênitos das vossas vacas e das vossas ovelhas. 7 Lá, comereis perante o SENHOR, vosso Deus, e vos alegrareis em tudo o que fizerdes, vós e as vossas casas, no que vos tiver abençoado o SENHOR, vosso Deus.” (Dt 12:5-7, grifo nosso).

“22 Certamente, darás os dízimos de todo o fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher do campo. 23 E, perante o Senhor, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos […] 24 Quando o caminho te for comprido demais, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que o Senhor, teu Deus, escolher para ali pôr o seu nome, quando o Senhor, teu Deus, te tiver abençoado, 25 então, vende-os, e leva o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que o Senhor, teu Deus, escolher. […] 27 porém não desampararás o levita que está dentro da tua cidade, pois não tem parte nem herança contigo.” (Dt 14:22-27, grifo nosso).

Importante observar que esta ordenança teria aplicação futura, uma vez que no tempo de Moisés o povo hebreu ainda estava no deserto e o local do sacrifício era o tabernáculo, rodeado pelas tribos israelitas (Nm 2:1-34). Portanto, as referências do texto em exame não se aplicavam ao período de deserto, mas a um tempo futuro. Os termos: “lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome”; “quando o caminho te for comprido demais”; e “o levita que está dentro da tua cidade”, indicam uma realidade futura.

Ao passo que Deus escolheu Jerusalém para fazer habitar seu nome, para lá deveriam ser levados os dízimos de toda a nação. Essa era a vontade do Senhor.

Entretanto, seria muito difícil para um israelita, morador de Dã (fronteira norte de Israel), levar os dízimos do seu rebanho mais a produção agrícola até Jerusalém, a aproximadamente 200 km de distância. A possibilidade de conversão desses dízimos em dinheiro certamente encurtaria tanto o tempo da viagem e permitiria à família se deslocar com mais tranquilidade.

Mas ao chegar em seu destino o dinheiro tinha que ser novamente trocado por alimentos e bebidas para ser entregue no santuário[2].

Em face dessas peregrinações do povo, ao chegar em Jerusalém cada família poderia participar de um banquete com o seu próprio dízimo (Dt 14:22-23). Então, as famílias banqueteavam com os levitas de sua cidade que também estivessem ali (Dt 12:17-18). O que não fosse consumido pelos dizimistas era entregue no Templo.

“22 Certamente, darás os dízimos de todo o fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher do campo. 23 E, perante o Senhor, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu vinho, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer o Senhor, teu Deus, todos os dias. 24 Quando o caminho te for comprido demais, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que o Senhor, teu Deus, escolher para ali pôr o seu nome, quando o Senhor, teu Deus, te tiver abençoado, 25 então, vende-os, e leva o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que o Senhor, teu Deus, escolher. 26 Esse dinheiro, dá-lo-ás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, ou ovelhas, ou vinho, ou bebida forte, ou qualquer coisa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o Senhor, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa;” (Dt 14:22-26, grifo nosso).

Como visto, apenas no caso das peregrinações os dizimistas participavam do que ofereciam. Quando os dízimos ficavam em sua própria cidade (dízimo trienal), somente os levitas locais, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas podiam dele comer, senão vejamos:

“17 Nas tuas cidades, não poderás comer o dízimo do teu cereal, nem do teu vinho, nem do teu azeite, nem os primogênitos das tuas vacas, nem das tuas ovelhas, nem nenhuma das tuas ofertas votivas, que houveres prometido, nem as tuas ofertas voluntárias, nem as ofertas das tuas mãos; 18 mas o comerás perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que o SENHOR, teu Deus, escolher [Jerusalém], tu, e teu filho, e tua filha, e teu servo, e tua serva, e o levita que mora na tua cidade; e perante o SENHOR, teu Deus, te alegrarás em tudo o que fizeres.” (Dt 12:17-18, grifo nosso).

“28 Ao fim de cada três anos, tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os recolherás na tua cidade. 29 Então, virão o levita (pois não tem parte nem herança contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se fartarão, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem.” (Dt 14:28-29).

Como os dizimistas não podiam participar dos dízimos trienais, estes não podiam ser convertidos em dinheiro. A finalidade da entrega do dízimo era exclusivamente o sustento do levita local, do estrangeiro, do órfão e da viúva e não o entesouramento de quem quer que fosse. Por isso, os dízimos entregues pelas famílias não podiam ser em dinheiro. O fato é que, além do dízimo da Lei serem inaplicável à igreja de Jesus, podemos destacar que, por princípio divino, os dízimos não podiam ser objeto de negócios. Também, não podiam ser utilizados para qualquer outra finalidade não prevista. Deveriam ser comidos pelos designados por Deus!

Beneficiários

Como já estudamos, os beneficiários dos dízimos eram os levitas, os sacerdotes, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas. Apenas no caso das peregrinações a Jerusalém os próprios dizimistas participavam dos seus dízimos. Isso se justifica, pois os dizimistas precisavam se alimentar tanto no caminho como no período que ficavam em Jerusalém. Nesses dias, o dizimista e toda a sua comitiva de filhos, noras, genros e servos se alimentavam de parte de seus dízimos “na presença do Senhor”, o que era uma verdadeira festa! (Dt 12:17-18).

Evidentemente, a porção usufruída pelos dizimistas, por mais que comessem, era muito pequena, já que levavam a Jerusalém 10% de toda a produção anual da família. E isso não dava para comer em poucos dias. Na prática, sobrava quase tudo. Essa era a porção que deveria ser entregue aos levitas que, após tirarem o dízimo dos dízimos, destinados aos sacerdotes, armazenavam o restante para a provisão de todos os levitas que habitavam em Jerusalém. Quanto aos levitas que moravam fora dos termos de Jerusalém, ao receberem dízimos (o trienal) deveriam retirar a melhor parte para os sacerdotes (dízimo dos dízimos) e o que restasse poderiam comer em qualquer lugar e não apenas em Jerusalém, senão vejamos:

“26 Também falarás aos levitas e lhes dirás: Quando receberdes os dízimos da parte dos filhos de Israel, que vos dei por vossa herança, deles apresentareis uma oferta ao Senhor: o dízimo dos dízimos. 27 Atribuir-se-vos-á a vossa oferta como se fosse cereal da eira e plenitude do lagar. 28 Assim, também apresentareis ao Senhor uma oferta de todos os vossos dízimos que receberdes dos filhos de Israel e deles dareis a oferta do Senhor a Arão, o sacerdote. 29 De todas as vossas dádivas apresentareis toda oferta do Senhor: do melhor delas, a parte que lhe é sagrada. 30 Portanto, lhes dirás: Quando oferecerdes o melhor que há nos dízimos, o restante destes, como se fosse produto da eira e produto do lagar, se contará aos levitas. 31 Comê-lo-eis em todo lugar, vós e a vossa casa, porque é vossa recompensa pelo vosso serviço na tenda da congregação.” (Nm 18:26-31, grifo nosso).

Resgate de dízimos

Analisamos no capítulo dois o que a Lei estabeleceu para a prática das ofertas. Tudo o que era consagrado ao Senhor passava a lhe pertencer e deveria ser entregue ou resgatado por preço, segundo as instruções constantes em Levítico, capítulo 27. No caso de animais e bens patrimoniais, caso o israelita quisesse ficar com o que era do Senhor deveria, então, pagar seu preço acrescido de 20%. O resgate, pois, era a quantia que se pagava pelo que pertencia ao Senhor, mas que estava de posse do homem. Esse é o caso do dízimo que, segundo o próprio Deus, lhe pertencia:

“30 Também todas as dízimas da terra, tanto dos cereais do campo como dos frutos das árvores, são do Senhor; santas são ao Senhor. 31 Se alguém, das suas dízimas, quiser resgatar alguma coisa, acrescentará a sua quinta parte sobre ela.” (Lv 27:30-31, grifo nosso).

Dízimos, por sua vez, pertenciam ao Senhor porque foram separados por Deus mediante sua Lei. Assim, caso o dizimista quisesse ficar com alguma porção do que pertencia ao Senhor (cereais, por exemplo), deveria resgatá-la entregando aos levitas o seu preço acrescido de 20%. Os valores dos resgates constituíam os recursos para a manutenção do Templo.

Portanto, de modo semelhante às ofertas, o resgate de dízimos era uma possibilidade apresentada ao povo hebreu que vivia sob a Lei. Uma vez que a igreja não vive debaixo de tais ordenanças, não há como imaginar a cobrança de resgates hoje.

Conclusão

Desse exame, podemos concluir que os dízimos não foram instituídos antes da Lei de Moisés, mas por sua ocasião e com a finalidade principal de fazer justiça aos descendentes de Arão que não receberam herança quando o povo tomou posse da terra prometida e ainda ficaram com diversos encargos e responsabilidades diante da nação de Israel.

Ao contrário do que muitos acreditam, não havia na Lei três tipos diferentes de dízimos, mas apenas o dízimo geral (anual) e o “dízimo dos dízimos”, que era a participação destinada aos sacerdotes da parte recebida pelos levitas. Assim, o dízimo trienal não é um dízimo adicional, mas o dízimo geral que, a cada três anos, era recolhido na cidade do dizimista para sustento dos levitas que ali habitassem, bem como dos estrangeiros, dos órfãos e das viúvas, todos necessitados de amparo. Nos demais anos, todos os dízimos deveriam ser levados a Jerusalém e, por ocasião dessa peregrinação, os dizimistas poderiam converter os dízimos de sua produção em dinheiro para facilitar o transporte. Mas, ao chegarem em Jerusalém deveriam comprar alimentos e bebidas novamente e, na presença do Senhor, podiam participar do que pudessem comer desses dízimos antes de serem entregues aos levitas.

Também, apresentamos os argumentos que demonstram que os dízimos não podiam ser objeto de negociação e, por isso, Deus não os requisitou em dinheiro, para que não perdessem o vínculo com sua função principal de sustentar fisicamente os levitas, os sacerdotes e os necessitados. Dízimos eram alimentos e deviam ser utilizados como tais. Para a manutenção do Templo e aquisição de utensílios os sacerdotes já dispunham da taxa de recenseamento (Êx 30:11-16) e dos resgates e votos (Êx 13:1-2, 15; Lv 5:14-16; Lv 27:1-34).

Constatamos que a coleta de dízimos, determinada pela Lei e para os que por ela viviam, jamais poderia servir de pretexto para qualquer outra coisa que não fosse primordialmente a alimentação dos levitas, dos sacerdotes e dos necessitados. Do modo como foi estabelecido o dízimo, o enriquecimento de levitas ou de sacerdotes era algo fora de questão. Os dízimos simplesmente não se prestavam a isso!

Assim sendo, além do dízimo não ser aplicável à prática da igreja, o que se vê hoje em nada se parece com o que Deus determinou aos hebreus, exceto quanto ao percentual cobrado sob argumento de que essa seria uma exigência de Deus para seu povo, inclusive para a igreja. Não sabemos o quanto os pastores, normalmente teólogos, ignoram todo o teor da Lei de Moisés, mas estamos convictos de que escolheram retirar da Lei apenas o que lhes interessam.

 

CAPÍTULO 4

PERÍODO PRÉ-EXÍLICO

Neste capítulo vamos buscar os registros bíblicos sobre a prática do recolhimento de ofertas e de dízimos no período dos reis de Israel, mais precisamente, antes do exílio do povo na Babilônia.

Reinado de Joás

Desde que o rei Josafá, de Judá, aliou-se com Acabe (2Cr 18:1; 2Cr 19:2) e, depois, com Acazias (2Cr 20:35-37), reis de Israel, a idolatria e o paganismo foi ganhando espaço em Jerusalém, a ponto de levar o Templo à ruína (2Cr 24:7). Tal situação levou o profeta Elias a enviar uma carta ao rei Jeorão, filho e sucessor de Josafá, profetizando uma sentença por seus atos iníquos (2Cr 21:12-14).

Por volta de 835 a 796 a.C., já sob o reinado de Joás, neto de Jeorão, iniciou-se uma reforma religiosa em Judá. Na ocasião, o rei ordenou a restauração do Templo e dos seus serviços (2Cr 24:4), reativando fielmente o sistema de dízimos e ofertas da Lei. Evidentemente, essa empreitada exigia recursos para que tudo ficasse como antes. Então, o rei Joás determinou aos sacerdotes que saíssem pelas cidades de Judá e recolhessem ofertas voluntárias, bem como o “imposto de Moisés” (2Cr 24:5-6; 2Rs 12:4-5), certamente se referindo à taxa de recenseamento (Êx 30:11-16) e aos valores correspondentes aos resgates (Êx 13:1-2,15; Lv 5:14-16; Lv 27:1-34), senão vejamos:

“4 Disse Joás aos sacerdotes: Todo o dinheiro das coisas santas que se trouxer à Casa do Senhor, a saber, a taxa pessoal, o resgate de pessoas segundo a sua avaliação e todo o dinheiro que cada um trouxer voluntariamente para a Casa do Senhor, 5 recebam-no os sacerdotes, cada um dos seus conhecidos; e eles reparem os estragos da casa onde quer que se encontrem.” (2Rs 12:4-5, grifo nosso).

Uma vez que os sacerdotes não se empenharam na tarefa (2Rs 12:6), o próprio rei Joás decidiu assumir essa arrecadação.

“8 Deu o rei ordem e fizeram um cofre e o puseram do lado de fora, à porta da Casa do Senhor. 9 Publicou-se, em Judá e em Jerusalém, que trouxessem ao Senhor o imposto que Moisés, servo de Deus, havia posto sobre Israel, no deserto. 10 Então, todos os príncipes e todo o povo se alegraram, e trouxeram o imposto, e o lançaram no cofre, até acabar a obra.” (2Cr 24:8-10, grifo nosso).

Acredita-se que foi exatamente esta providência de Joás que instituiu a prática do lançamento de ofertas no gazofilácio, presente inclusive no tempo de Jesus (Lc 21:1; Jo 8:20). É bom destacar que Joás não lança mão dos dízimos para incrementar a restauração do Templo (2Rs 12:9-16). Os dízimos eram recolhidos exclusivamente para o sustento dos levitas, dos sacerdotes e dos necessitados. Mas, com a morte do sacerdote Joiada, Joás afastou-se do Senhor (2Cr 24:14-18) e Judá entrou num declínio espiritual que durou até uma seguinte grande reforma, a de Ezequias.

Reinado de Ezequias

Por volta de 729 a 686 a.C., o rei Ezequias, chamou todo o povo para um reavivamento e tomou medidas financeiras para restaurar a atividade do Santuário (2Cr 31:2-21; 2Rs 18:3-4). O rei assumiu a responsabilidade de suprir o que fosse necessário à realização das cerimônias diárias da manhã e da tarde, dos sábados, luas novas e festas fixas, conforme a Lei do Senhor (2Cr 31:3; Nm 28:1-31). O povo, por sua vez, comprometeu-se em cumprir com suas responsabilidades no que diz respeito aos dízimos, resgates e ofertas. O resultado foi surpreendente: Deus abençoou sobremaneira o povo e houve abundância tal que o rei mandou transformar as grandes salas do templo em despensas para armazenar as primícias trazidas pelo povo (cereais, vinho, azeite, mel e demais produtos do campo):

“4 Além disso, ordenou ao povo, moradores de Jerusalém, que contribuísse com sua parte devida aos sacerdotes e aos levitas, para que pudessem dedicar-se à Lei do Senhor. 5 Logo que se divulgou esta ordem, os filhos de Israel trouxeram em abundância as primícias do cereal, do vinho, do azeite, do mel e de todo produto do campo; também os dízimos de tudo trouxeram em abundância. […] 8 Vindo, pois, Ezequias e os príncipes e vendo aqueles montões, bendisseram ao Senhor e ao seu povo de Israel. 9 Perguntou Ezequias aos sacerdotes e aos levitas acerca daqueles montões. 10 Então, o sumo sacerdote Azarias, da casa de Zadoque, lhe respondeu: Desde que se começou a trazer à Casa do Senhor estas ofertas, temos comido e nos temos fartado delas, e ainda há sobra em abundância; porque o Senhor abençoou ao seu povo, e esta grande quantidade é o que sobra. 11 Então, ordenou Ezequias que se preparassem depósitos na Casa do Senhor. 12 Uma vez preparados, recolheram neles fielmente as ofertas, os dízimos e as coisas consagradas; disto era intendente Conanias, o levita, e Simei, seu irmão, era o segundo.” (2Cr 31:4-5; 8-12, grifo nosso).

Esta passagem nos dá notícia da origem dos “depósitos na Casa do Senhor”, que, ao que tudo indica, é o que Neemias e Malaquias chamaram de “Casa do Tesouro” (Ne 10:38; Ml 3:10). Nela haviam oficiais encarregados de proteger e administrar essa grande quantidade armazenada de vinho, de azeite, de mel e de todo produto do campo. O rei Ezequias, foi zeloso em dar a correta destinação aos dízimos da Casa do Tesouro. Designou encarregados de promover a distribuição das porções dos dízimos e das ofertas aos levitas que trabalhavam em seus turnos. Não havia distinção entre grandes e pequenos, nem restrições aos que moravam nos campos dos arredores de suas cidades, senão vejamos:

“14 O levita Coré, filho de Imna e guarda da porta oriental, estava encarregado das ofertas voluntárias que se faziam a Deus, para distribuir as ofertas do Senhor e as coisas santíssimas. 15 Debaixo das suas ordens estavam Éden, Miniamim, Jesua, Semaías, Amarias e Secanias, nas cidades dos sacerdotes, para com fidelidade distribuírem as porções a seus irmãos, segundo os seus turnos, tanto aos pequenos como aos grandes; […] 18 Deles, foram registrados as crianças, as mulheres, os filhos e as filhas, uma grande multidão, porque com fidelidade se houveram santamente com as coisas sagradas. 19 Dentre os sacerdotes, filhos de Arão, que moravam nos campos dos arredores das suas cidades, havia, em cada cidade, homens que foram designados nominalmente para distribuírem as porções a todo homem entre os sacerdotes e a todos os levitas que foram registrados.” (2Cr 31:14-19, grifo nosso).

Como visto, os dízimos estavam sendo utilizados nos fins para os quais foram instituídos e não havia falta para a provisão dos levitas e sacerdotes, nem mesmo dos que moravam distantes de Jerusalém. Provavelmente, havia o correto recolhimento dos dízimos trienais nas próprias cidades em que habitavam e estes eram administrados pelos superintendentes nomeados para essa função. O resultado da aplicação correta dos dízimos foi a provisão tanto dos trabalhadores do campo como dos oficiais do culto realizado no Templo. O que Ezequias fez foi simplesmente obedecer às diretrizes que se encontravam na Lei e nos estatutos de Deus (2Cr 31:21). Não eram ideias originais do rei, mas um retorno ao modelo divino abandonado durante a apostasia.

Reinado de Josias

Com a morte de Ezequias, o trono de Judá foi sucedido por seu filho, Manassés, um rei que, além de ser muito mau foi o que reinou por mais tempo (55 anos). Ele conduziu todo o povo à idolatria e a muitas outras abominações detestáveis aos olhos do Senhor. Por isso, há quem o considere como o pior rei de que Judá teve. Manassés simplesmente arrasou com Judá. Ele praticava feitiçaria e necromancia, tendo chegado ao ponto de queimar seus filhos como oferta a outros deuses (2Cr 33:1-9; 2Rs 21:1-9).

Apesar do arrependimento do rei Manassés (2Cr 33:10-16), somente no tempo do rei Josias (640 a 609 a.C.), neto de Manassés, Judá recuperou o mesmo padrão de fidelidade do período de Joás e de Ezequias. Ao propor em seu coração a reparação do Templo, o rei Josias ordenou que as ofertas voluntárias e o imposto de Moisés, que continuavam sendo depositadas na caixa à porta do Santuário, fossem utilizadas para o pagamento dos trabalhadores que ficassem encarregados desse trabalho e para a compra de materiais necessários à manutenção do edifício:

“3 No décimo oitavo ano do seu reinado, o rei Josias mandou o escrivão Safã, filho de Azalias, filho de Mesulão, à Casa do Senhor, 4 dizendo: Sobe a Hilquias, o sumo sacerdote, para que conte o dinheiro que se trouxe à Casa do Senhor, o qual os guardas da porta ajuntaram do povo; 5 que o deem nas mãos dos que dirigem a obra e têm a seu cargo a Casa do Senhor, para que paguem àqueles que fazem a obra que há na Casa do Senhor, para repararem os estragos da casa: 6 aos carpinteiros, aos edificadores, e aos pedreiros. e que comprem madeira e pedras lavradas, a fim de repararem a casa.” (2Rs 22:3-6, grifo nosso).

Importante notar que até as vésperas do exílio de Judá o sistema de dízimos e ofertas, inclusive as financeiras (ofertas voluntárias, impostos e resgate), depositadas no gazofilácio desde o tempo do rei Joás, continuavam operantes e com suas finalidades preservadas, ou seja, esses valores monetários serviam aos reparos do Templo (2Cr 34:8-11).

 

CAPÍTULO 5

PERÍODO PÓS-EXÍLICO

Até aqui vimos quando, como e por que razão os dízimos foram instituídos por Deus. Podemos, agora, examinar o modo como os judeus estavam lidando com esse instituto centenas de anos depois, após o retorno do povo de Israel do exílio na Babilônia. Para tanto, vamos utilizar principalmente os livros de Neemias e de Malaquias.

O governo de Neemias

Em 538 a.C, Ciro, o grande rei da Pérsia e conquistador da Babilônia, publicou um decreto permitindo que os exilados de Judá na Babilônia voltassem para sua terra e reconstruíssem seu Templo (2Cr 36:22-23; Ed 1:1-11). Cerca de cinquenta mil judeus aceitaram o desafio (Ed 2:64-65) e, em 516 a.C., depois de muita demora, concluíram o Templo. Esdras subiu à Jerusalém em 458 a.C. Em 445 a.C., Neemias é compungido pela situação de Jerusalém e recebe autorização do rei Artaxerxes para regressar à sua terra. Sua missão era a reconstrução dos muros da cidade. Neemias tornou-se governador da terra de Judá, função que ocupou por doze anos (Ne 5:14).

Realizado todo o trabalho, o povo estava muito feliz e grato a Deus. Tanto que decidiu renovar sua aliança com o Senhor, prometendo sustentar o ministério do Templo segundo a prescrição de Lei de Moisés (Ne 10:32-39). E assim fizeram. Todos levavam seus dízimos e ofertas e se alegravam. Os oficiais do Templo tinham um comportamento exemplar tanto em sua pureza pessoal quanto em sua obediência à palavra de Deus. Depois de recolhidos, em produtos diversos, os dízimos e as ofertas, eram levados a depósitos próprios para cada dádiva e entregues aos tesoureiros eleitos naqueles dias. Seguiu-se o mesmo padrão do rei Ezequias, separando-se oficiais para administrar as câmaras do tesouro na cidade de Jerusalém. Assim, cuidava-se das distribuições aos levitas e sacerdotes, segundo o estabelecido por Deus na Lei de Moisés:

“44 Ainda no mesmo dia, se nomearam homens para as câmaras dos tesouros, das ofertas, das primícias e dos dízimos, para ajuntarem nelas, das cidades, as porções designadas pela Lei para os sacerdotes e para os levitas; pois Judá estava alegre, porque os sacerdotes e os levitas ministravam ali; 45 e executavam o serviço do seu Deus e o da purificação; como também os cantores e porteiros, segundo o mandado de Davi e de seu filho Salomão.” (Ne 12:44-45, grifo nosso).

Entretanto, Neemias teve que voltar à Babilônia e só retornou depois de algum tempo (Ne 13:6). Em sua ausência muitas coisas aconteceram. O sacerdote Eliasibe, encarregado das câmaras do Templo, aparentou-se com Tobias e fez aposentos para ele em um dos depósitos que antes era utilizado para armazenar dízimos e ofertas (Ne 13:4-5). Também, cessaram as distribuições dos dízimos aos levitas, de modo que eles deixaram seus ofícios e migraram para o campo (Ne 13:10). Ao que indica Ne 13:12, o povo havia cessado de trazer seus dízimos e ofertas ao Templo. Mas, não é só! O povo deixou a aliança do sábado e as elites praticavam comércio no sábado (Ne 13:15-18), além de terem casado seus filhos com mulheres estrangeiras, permitindo os casamentos mistos, inclusive de sacerdotes (Ne 13:23-29).

Neemias encerra seu livro afirmando que se insurgiu contra todos esses pecados do povo, mas que foi bem sucedido em reordenar os serviços sacerdotais, reativar o funcionamento do ritual do Templo e purificar o povo de toda a estrangeirice provocada pelos casamentos mistos, senão vejamos:

 

“9 Então, ordenei que se purificassem as câmaras e tornei a trazer para ali os utensílios da Casa de Deus, com as ofertas de manjares e o incenso. 10 Também soube que os quinhões dos levitas não se lhes davam, de maneira que os levitas e os cantores, que faziam o serviço, tinham fugido cada um para o seu campo. 11 Então, contendi com os magistrados e disse: Por que se desamparou a Casa de Deus? Ajuntei os levitas e os cantores e os restituí a seus postos. 12 Então, todo o Judá trouxe os dízimos dos cereais, do vinho e do azeite aos depósitos. […] 17 Contendi com os nobres de Judá e lhes disse: Que mal é este que fazeis, profanando o dia de sábado? […] 22 Também mandei aos levitas que se purificassem e viessem guardar as portas, para santificar o dia de sábado. […] 23 Vi também, naqueles dias, que judeus haviam casado com mulheres asdoditas, amonitas e moabitas. […] 27 Dar-vos-íamos nós ouvidos, para fazermos todo este grande mal, prevaricando contra o nosso Deus, casando com mulheres estrangeiras? 28 Um dos filhos de Joiada, filho do sumo sacerdote Eliasibe, era genro de Sambalate, o horonita, pelo que o afugentei de mim. […] 30 Limpei-os, pois, de toda estrangeirice e designei o serviço dos sacerdotes e dos levitas, cada um no seu mister,” (Ne 13:9-30, grifo nosso).

Portanto, o livro de Neemias nos mostra todo o esforço empreendido não somente para a reedificação dos muros de Jerusalém, mas para se retomar o culto do Templo com seus sacrifícios, seus oficiais e sacerdotes, bem como para restabelecer o compromisso do povo com a aliança da Lei, tanto em relação aos dízimos e ofertas como em relação à santificação do matrimônio.

O profeta Malaquias

Malaquias, profeta do Senhor, além de tratar especificamente do tema deste livro, foi o último profeta que deixou suas mensagens por escrito. São, portanto, os registros mais próximos da vinda do mensageiro, João Batista (400 anos depois), que prepararia o caminho de chegada do Messias, Jesus Cristo. O nome Malaquias significa “Meu mensageiro” (MI 3:1). Não há em seu livro informações sobre seus antepassados, seu chamado ou sua vida pessoal. Sua mensagem, entretanto, revela características históricas que permitem identificar o período em que foi escrita.

Ao estudar o livro de Neemias, notamos que no período em que ele esteve ausente de Jerusalém, por ter voltado ao seu posto em Susã (Ne 13:6, 7), a situação da cidade tornou-se calamitosa. Quando ele retorna, teve de tomar algumas medidas drásticas para reformar a nação. Tudo indica que foi nessa oportunidade que o profeta Malaquias apresenta a mensagem de Deus que denuncia os pecados do povo e dos sacerdotes, chamando-os ao arrependimento para a renovação da aliança com Deus. O fato é que algumas das condições descritas no livro de Neemias coincidem exatamente com as questões tratadas por Malaquias em seu livro, em especial os casamentos mistos com pagãos (Ml 2:11), contaminação do sacerdócio (Ml 1:6-14), a falta de apoio para o Templo (MI 3:8-10) e um descaso generalizado para com a religião (MI 3:13-15). Foi um tempo de declínio espiritual em Judá, e o povo precisava ouvir a Palavra de Deus.

Logo, ao que tudo indica, o livro do profeta Malaquias se situa entre a reconstrução do Templo (Ml 1:10; Ml 3:10; Ed 6:1-22) e antes da proibição oficial dos casamentos mistos do tempo de Neemias e Esdras (Ed 9:1-10:44).

Temas abordados por Malaquias

Malaquias aborda seis temas em um estilo de diálogo com os sacerdotes que detêm o monopólio do Templo, mas, também, com o povo e com as elites que controlam a sociedade, a economia e a política de Judá. A tarefa de Malaquias era perigosa como a de qualquer pessoa que aponta o pecado. Normalmente, quem se arrisca a denunciar o pecado e a injustiça acaba sofrendo com a ira dos pecadores que se acham justos e que não gostam de ser repreendidos.

Em sua responsabilidade de repreender toda uma nação, Malaquias usou uma abordagem sábia: antecipou-se às prováveis objeções do povo e já as combateu com a resposta de Deus. “É isto que Deus diz”, declarava o profeta, “mas vocês dizem […]” e, em seguida, passava a responder às queixas dos judeus. A estrutura de seus diálogos segue, portanto, sempre o mesmo esquema:

  1. a) uma afirmação inicial do profeta, ou de Deus através do profeta (Ml 1:2a);
  2. b) objeção dos ouvintes, que por meio de uma pergunta repetem a palavra do profeta (Ml1:2b);
  3. c) o profeta justifica sua palavra inicial e demonstra as consequências (Ml 1:2c-5).

Não há nenhuma ordem especial nos seis temas tratados por Malaquias, o que indica que podem ter sido pronunciados em momentos distintos da vida da comunidade naquele período.

Vejamos, a seguir os temas tratados no livro de Malaquias:

1 – O amor de Deus por Israel

Este trecho apresenta o amor de Deus por seus escolhidos. O profeta demonstra esse amor comparando Jacó com Esaú, ou seja, os judeus e os edomitas que há pouco haviam sofrido uma invasão dos árabes. Assim como outras nações daquela região, Edom sofreu durante a invasão dos babilônios a Israel, mas o Senhor não prometeu restaurar a terra do povo de Edom como fez com os judeus. Os edomitas orgulhosos vangloriavam-se dizendo que, em pouco tempo, restaurariam sua terra (Ml 1:4), mas Deus tinha outros planos. Ele chamou Edom de “Terra de Perversidade”, mas a Israel chamou de “terra santa” (Zc 2:12). Não devemos esquecer que os edomitas eram comprovadamente um povo perverso (Ob 8-14), que merecia repreensão. Para os judeus, a invasão da Babilônia foi uma disciplina, mas para os edomitas foi um juízo.

Assim, como a disciplina é destinada a quem Deus ama, o povo judeu sofreu exílio na Babilônia (Jr 29:1-32), mas findo o tempo da correção, Deus moveu Ciro para que publicasse o decreto permitindo aos cativos voltarem a Judá e reconstruírem o Templo. As lideranças do povo foram restabelecidas por meio do sumo sacerdote Josué, de Zorobabel e de Neemias. Também, não faltou ministério profético para orientar o povo, a exemplo de Ageu, Zacarias e Malaquias. Se o povo tivesse obedecido às estipulações da aliança, o Senhor os teria abençoado ainda mais. Por certo, eram um remanescente frágil, mas o Senhor estava com eles e prometeu abençoá-los.

Mas, em resposta à declaração de amor de Deus, sem atentarem para a soberania de Deus, que pode disciplinar seus filhos a quem ama, o povo diz: “[…] Em que nos tens amado? […]” (Ml 1:2a). Era como se o povo quisesse confrontar a Deus, dizendo: “Veja a terra ressequida, as ervas devoradas pelos gafanhotos, as mulheres infelizes, abandonadas por seus maridos, a confusão e a contenda na terra; como Deus pode ser um Deus de amor e permitir que todas estas coisas aconteçam?”

Parece que a dificuldade de entendimento do povo daquela época é a mesma de alguns cristãos hoje. Supõem que a prosperidade material é a prova do amor de Deus e que as riquezas funcionam como sinal da sua bênção. Entretanto, essa não é uma relação verdadeira. Fosse assim, que dizer dos mártires dos dias do Império Romano? Estes não somente foram despojados de seus bens, como também perderam a própria vida. Logo, é um grave erro supor que o fato de um homem ser desprovido dos bens materiais seja uma evidência da falta do amor de Deus ou de sua bênção. Veremos isso em detalhes mais à frente.

Não podemos negar, entretanto, que Deus pode corrigir o homem do modo como quiser, inclusive abatendo-o quando isso é necessário para abrir seus olhos, especialmente quando ele perde o temor a Deus. Isso aconteceu com Judá. Após o cativeiro, o povo desprezou a Lei do Senhor e, tratando-o com descaso, ofereciam animais defeituosos, retendo os animais perfeitos para si mesmos. Os sacerdotes secularizaram o ritual religioso e somente trabalhavam por boas recompensas materiais. Não queriam abrir as portas do Tempo, nem acender as luzes sem receber algum tipo de pagamento. Precisavam ser repreendidos! Mas, era importante que soubessem o quanto Deus os amava e que a própria repreensão era um ato de amor.

 

2 – O pecado dos sacerdotes

Malaquias faz uma forte crítica aos sacerdotes porque não ensinavam o povo a verdade (Ml 2:7,8a), não exigiam respeito em relação às coisas santas (Ml 1:7-8), julgavam com parcialidade (Ml 2:9), não davam bons exemplos (Ml 2:8) e desonravam a Deus (Ml 1:6) admitindo que o povo apresentasse ofertas imperfeitas. Quando alguém lhes trazia animais doentes e defeituosos, eles deveriam rejeitar a oferta e repreender o ofertante. Mas, ao contrário disso, aceitavam suas ofertas indignas e as ofereciam no altar do sacrifício (Ml 1:7-8), violando a aliança de Deus e fazendo o povo tropeçar.

Assim, os sacerdotes, em vez de ensinarem o povo a cumprir a Lei de Deus, contribuíam para a sua transgressão, uma vez que eles próprios a desobedeciam. Poluíam o altar do Senhor e encorajavam o povo a adorar a Deus de maneira desprezível e descuidada. Ao passo que eles mesmos não estavam dando a Deus o que tinham de melhor, não corrigiam o povo por fazer o mesmo que eles. “Por isso, como é o povo, assim é o sacerdote” (Os 4:9; Jr 5:30-31). O contrário é verdadeiro: assim como é o sacerdote, assim é o povo, pois nenhum grupo eleva-se além de seus líderes. Antes, as características de um são observáveis no outro.

3 – O matrimônio

Este tema enfrenta dois problemas: casamentos mistos e divórcio. Quando os assírios deportaram a população do reino de Israel para outros países, deixando na terra apenas os pobres, misturou-os com povos trazidos de outras regiões (2Rs 17:1-41). Naquela convivência, israelitas começaram a se casar com pagãos estrangeiros. Dessa mistura, surgiu uma raça mista cuja religião era uma combinação de judaísmo e de paganismo. Este povo passou a ser chamado de samaritano. Anos depois, os babilônios tomaram o reino de Judá e levaram sua população cativa. Enquanto o grupo principal de judeus permanecia cativo na Babilônia, os samaritanos apossaram-se da melhor parte da terra e se estabeleceram. Assim, experimentaram de superior prosperidade em relação aos exilados que retornaram da Babilônia após o decreto de Ciro (LINDSAY, 2004, p. 40).

Alguns judeus, cobiçando a riqueza dos samaritanos, faziam com eles alianças matrimoniais. Mesmo casados, divorciavam-se de suas mulheres e tomavam samaritanas como esposas.

Sobre esses casamentos mistos, Malaquias reforça o que Deus já havia prescrito em Êx 34:11-16 e Dt 7:3-4. Especialmente naquele momento em que a nação estava sendo restabelecida, a questão fundamental não era a raça, pois todos, midianitas, samaritanos ou judeus, são seres humanos. O que estava em questão era a lealdade ao Deus de Israel. O Senhor chamou Israel para um propósito único: ser o veículo pelo qual ele traria ao mundo o Messias (Rm 9:4-5). Qualquer coisa que corrompesse tal meio exerceria oposição ao maravilhoso plano de salvação.

Por isso, Deus ordenou a Israel que fosse um povo separado, não porque fosse melhor do que qualquer outra nação, mas porque tinha reservado para eles uma tarefa especial a realizar. Qualquer coisa que quebrasse esse muro de separação favoreceria o maligno, que fez todo o possível para impedir o nascimento do Messias. Não foi sem razão que Malaquias reprovou os casamentos mistos e conclamou o povo ao arrependimento, denunciando a prática que afetaria a própria cultura judaica ao atrair a idolatria (Ne 10:29-31; Ne 13:23-31; Dt 7:3-4).

No que diz respeito ao divórcio, Malaquias critica a liberalidade com que alguns da comunidade, entre eles os próprios sacerdotes do Templo, divorciam-se para se casar de novo com mulheres estrangeiras. Malaquias adverte que o Senhor rejeita orações, ofertas e sacrifícios das pessoas que não guardam suas alianças (Ml 2:3).

Em geral, os judeus casavam muito jovens e com mulheres de sua raça: “a mulher de sua juventude”. Por suas próprias interpretações, passaram a se achar no direito de repudiar a primeira mulher e se casar com uma estrangeira, por amor ou por conveniências sociais e políticas.

Entretanto, para Deus o divórcio e o recasamento significam o rompimento de uma aliança (Gn 2:24; Ml 2:10; Mc 10:2-9), equiparada à aliança entre Deus e a nação de Israel (Ez 16:8). Os casamentos em Israel eram realizados na presença de testemunhas e do próprio Deus. Como em geral se fazia para celebrar os acontecimentos importantes da vida do povo, os casamentos eram ratificados com ofertas de sacrifícios. Por isso, o profeta insiste: não adianta chorar, Deus não pode aceitar a oferta de vocês, visto que não foram fiéis ao primeiro compromisso do qual ele mesmo foi testemunha (Ml 2:13-15).

Coisa semelhante vemos em nossos dias. Há quem realize suas próprias interpretações da vontade de Deus, para forçá-lo a se encaixar em seus interesses pessoais e egoístas. Estes se casam, descasam-se e recasam-se e dizem: a vontade de Deus é ver o homem feliz. Assim, em suas concepções, Deus não tem outra escolha a não ser abençoá-los para que se sintam felizes, ainda que isso implique em prejuízos a terceiros, especialmente, aos filhos. Por sentimentos assim, Malaquias denunciou uma prática que era comumente aceita pelo sacerdócio e pela sociedade da época, mas que era abominável ao Senhor. Quem conhece Deus sabe que ele não vê apenas os interesses egoístas do indivíduo, mas a necessidade do grupo. Admitir casamentos e recasamentos, além de ser a prevalência do egoísmo significaria um desamparo à mulher que, naquele tempo, vivia exclusivamente às custas do marido. Então, “a mulher da juventude”, bem como seus filhos, ficariam desamparados e sem proteção, o que aumenta a injustiça social.

Mulher repudiada, viúva ou filhos órfãos de pais vivos, são casos que Deus sempre tratou com muito cuidado. Quem provoca esses desamparos desafia a Deus. Isso é sério! Uma mulher abandonada, sem “herança”, sem estrutura familiar, estaria a um passo da prostituição. Filhos soltos, sem família, estariam destinados à escravidão. Por isso, Malaquias se levanta em defesa da família e da identidade da nação. Nesse ponto, há um distanciamento de Dt 24:1-4, que admite o divórcio.

Apenas para contextualizar, no livro de Deuteronômio Moisés está dando suas últimas instruções ao povo egresso de um cativeiro de 400 anos no Egito, onde conviveu com uma cultura diferente da sua. Pratas (2011, p. 163-164) ensina que, na sociedade egípcia, “ao homem era permitido ter outras esposas, além da ‘senhora da casa’ (título de respeito), desde que possuísse uma posição econômica mais elevada (fato ainda presente na cultura e na religião). […] O divórcio era simples e não necessitava de muito tempo para ser obtido. Entre os principais motivos de divórcios estavam os maus tratos, o adultério e a infertilidade”. Como a questão do divórcio ficou de fora dos mandamentos no Sinai, certamente havia essa preocupação e cobrança do povo sobre Moisés querendo um posicionamento a esse respeito. Entretanto, Jesus adverte que isso nunca esteve no coração de Deus. (Mt 19:1-9).

Sob a Velha Aliança, Deus não deixa qualquer margem para dúvida ou interpretações modernas, culturais ou justificativas humanas: DEUS ODEIA O DIVÓRCIO!

(Ml 2:16)

Como alguém pode pretender agradar a Deus fazendo, admitindo ou consentindo no que Deus odeia? Malaquias diz que não há sacrifício aceitável para quem assim procede. Depois de cometer esses pecados, os homens levavam ofertas ao Senhor, buscando aprovação. Os sacerdotes as aceitavam, porque estavam igualmente corrompidos e insensíveis à vontade de Deus. Mas o Senhor não aceita, diz Malaquias.

Talvez, os homens daquela geração pensassem que podiam fazer o que Deus detesta com a intenção de, mais tarde, voltar para Deus e pedir perdão. Mas, por conhecer os corações, em vez de perdoá-los, Deus estava pronto para “eliminá-los”. Nas passagens Ml 2:17 e Ml 3:5 o profeta dá uma resposta àqueles que estão duvidando da retribuição divina. Que ninguém se engane! O mal não ficará impune. Mesmo que isso “hoje” não seja evidente à percepção humana em razão da aparente aceitação dessas práticas pela sociedade e pela religião instituída, a colheita virá, alerta o profeta.

É certo que muitos estavam errando por falha do próprio sacerdócio que não ensinava mais a verdade e não honrava a Deus nem sua aliança. Por isso os sacerdotes mereceram uma advertência especial no livro de Malaquias. Os sacerdotes eram maus exemplos quando tratavam as coisas santas como se fossem comuns. Mas, o Senhor valoriza a aliança e não deixará que essa desonra siga impune. O profeta garante que o dia do julgamento virá! O Senhor premiará os justos e castigará os maus. Sua vinda será precedida pelo “mensageiro”, que mais tarde será identificado com Elias (Ml 3:1; 4:5).

Cabe aqui algumas indagações: por que a paixão pelo livro de Malaquias não envolve todo o seu conteúdo? Por que não se trata a questão do divórcio com a mesma sacralidade que se tratam os dízimos e as ofertas? Por que as lideranças evangélicas contemporâneas não se levantam contra a impureza no meio da igreja? Por que os pregadores contaminados pelo neopentecostalismo, que defendem a aplicação da lei do dízimo, não dão aos dízimos a destinação prevista na Lei? Por que são parciais na obediência aos estatutos desta Lei quando o próprio Malaquias chama de desprezíveis e indignos aqueles que são parciais em sua aplicação? (Ml 2:9).

4 – O pecado das elites, o adultério e a feitiçaria

Em Ml 3:5, a advertência quanto ao juízo vindouro inclui a prática de feitiçarias, adultério, mentira (falso testemunho), exploração injusta das classes trabalhadoras e a despreocupação com a causa social do povo. O profeta diz que essas pessoas não temem a Deus. Por óbvio o principal destinatário dessa advertência era a elite do povo que, além de explorarem os trabalhadores e não lhes pagarem um salário justo, acumulavam riquezas torcendo o direito dos estrangeiros e, em sua ganância, oprimiam até os órfãos e as viúvas, os quais Deus sempre desejou proteger, inclusive com os dízimos do povo.

Mas, não podemos deixar de observar que a advertência alcança também as pessoas que desprezam a aliança com Deus, seja desrespeitando o matrimônio ou praticando feitiçarias. Essa prática nada mais era que um abandono da Lei de Deus, seus sacrifícios, seus preceitos morais, sociais e cultuais para se adotar as práticas pagãs dos povos cujo deus não era o Senhor. Esses dois pecados mereceram destaque, pois afrontam a essência da vida do povo de Deus: a família e a fé no único Deus.

Retomamos a pergunta feita no tópico anterior: por que as lideranças evangélicas hodiernas que tanto anunciam trechos de Malaquias em seus cultos, não estão dispostas a eliminar o adultério, a injustiça, a exploração, o comércio, a impiedade e a feitiçaria infiltrada na igreja?

5 – A inobservância da lei do dízimo e das ofertas

No contexto de Malaquias, pós-exílio, o dízimo reassumiu suas funções vitais. O Templo era elemento essencial para integrar o povo e lhe dar unidade. Ali se ofereciam os sacrifícios agregando os moradores de todo o Israel e, também, era local de ensinamento. Ora, a manutenção do Templo e dos seus funcionários, bem como o serviço que prestavam à comunidade, dependiam dos dízimos e das ofertas. Devido à inobservância da lei do dízimo, muitos levitas estavam indo para o interior para sobreviver. Para conter a migração dos levitas, o profeta chama a atenção do povo que não estava entregando seus dízimos anuais, apelando para o relacionamento pessoal do homem com Deus. Qual é, pois, a base desse relacionamento? A lealdade, a fidelidade, o amor e a gratidão.

Por isso, diz Deus:

“6 Eu, o Senhor, não mudo […] [mas, vós] 7 Desde os dias de vossos pais vos desviastes dos meus estatutos, e não os guardastes; tornai-vos para mim e eu me tornarei para vós outros, diz o SENHOR dos Exércitos; mas vós dizeis: Em que havemos de tornar? 8 Roubará o homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas. 9 Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me roubais, vós, a nação toda.” (Ml 3:6-9, grifo nosso).

Malaquias insiste: Deus não muda. Embora o povo seja infiel, ele perdoa e continua amando-o. O povo é que precisa mudar seu comportamento, fazer o caminho de volta para que as maldições sejam substituídas por bênçãos (Ml 3:10-12).

Malaquias mostra que as más colheitas e a praga de gafanhotos (insetos, literalmente) estavam relacionadas ao afastamento do povo da vontade de Deus. Aponta, também, que esse distanciamento se verifica não somente na falta de fidelidade aos preceitos divinos, mas, também, na desonestidade. Certamente, a avareza e o egoísmo estavam na raiz do problema, já que o povo não queria apresentar o melhor a Deus os melhores animais, sem defeitos (perfeitos), além de negar seus dízimos. Segundo o profeta, eliminando-se as causas, seus efeitos desapareceriam. Nos versos 13 a 18 do capítulo 3, nota-se uma nova crítica aos que duvidam da retribuição divina. Mais uma vez o profeta afirma que julgamento de Deus definirá quais são os justos e quais são os ímpios.

Importante observar é que a acusação sobre a inobservância da lei do dízimo (um roubo a Deus) não foi dirigida aos sacerdotes, mas ao povo, “a nação toda” (Ml 3:9). Curiosamente, hoje, no tempo da graça, ainda há pessoas que pensam que somente os líderes influenciados pelo neopentecostalismo são gananciosos. A sequência deste título revelará que a ganância, a mesquinhez e a falta de generosidade e de amor fraternal não é privilégio das lideranças evangélicas.

6 – A vinda do Messias e do juízo

No capítulo 4, versos 1 a 3 Malaquias retoma o tema da vinda do Dia do Senhor, assunto introduzido no terceiro capítulo, quando o profeta afirma que o Messias virá e trará juízo e justa retribuição às elites exploradoras do povo, aos feiticeiros e aos adúlteros. A advertência é que Deus castigará os malfeitores. Os pecadores serão queimados como o fogo consome o restolho; eles se tornarão como cinzas sob os pés dos santos! Mas os verdadeiros crentes verão o amanhecer de um novo dia, no qual nascerá o “sol da justiça” (Lc 1:78,79). Então, Jesus reinará como Rei dos reis e seu povo saltará como bezerros soltos da estrebaria!

Malaquias foi fiel como mensageiro de Deus e encerrou seu livro lembrando o povo de outros dois profetas fiéis, Moisés e Elias (Ml 4:4-6). A Lei de Moisés ainda era a regra de vida dada pelo Senhor aos judeus e, se eles obedecessem, Deus os abençoaria. A promessa de Malaquias sobre a vinda de um mensageiro (João Batista) para preparar o caminho do Messias (Ml 3:1; 4:5) foi examinada e discutida com frequência por rabinos judeus que perguntavam: “Quem é o Elias que o Senhor enviará?”. Os líderes judeus interrogaram João Batista sobre esse assunto (Jo 1:19-21), e Pedro, Tiago e João fizeram a Jesus uma pergunta relacionada a isso (Mt 17:10).

Elias é mencionado pelo menos trinta vezes no Novo Testamento, e dez dessas referências o relacionam a João Batista. Porém, João Batista disse claramente que ele não era Elias (Jo 1:21,25). Ele veio no “espírito e poder” de Elias e converteu muitos dos filhos de Israel, dos pais aos filhos (Lc 1:16-17), ou seja, João Batista não era a reencarnação de Elias. Sem preocupação em esclarecer esses detalhes, Malaquias apenas afirma que Elias (o mensageiro) viria (Ml 4:5) e que essa vinda estará relacionada ao “Dia do SENHOR”, que queimará os perversos como restolho (MI 4:1).

Como o “Dia do SENHOR” ainda não ocorreu, há quem afirme que João Batista não era o Elias prometido, ainda que tivesse ministrado de maneira semelhante a Elias. Assim, essa profecia ainda estaria para se cumprir. Poderia, nesta hipótese, tratar-se de uma das duas testemunhas referidas em Ap 11:3-12, pois os sinais que esses dois homens realizarão nos lembram dos milagres de Elias. E depois do ministério das testemunhas, o Senhor derramará sua ira sobre a Terra (Ap 11 :18; 16:1ss), e o Dia do SENHOR irromperá no mundo com grande furor.

Entretanto, nada impede que a figura do mensageiro apontado por Malaquias tenha cumprimento prévio em João Batista e desdobramentos no livro de Apocalipse. Seja como for, a mensagem deste tema aponta para um Deus justo que não deixará o mal impune, ainda que em determinado momento o homem tenha a sensação de que Deus não está se importando com o modo como estão vivendo. Há quem pense, inclusive, que o Senhor está aprovando seus comportamentos, já que não percebem sua indignação no tempo em que estão realizando seus propósitos contrários à expressa palavra de Deus. Este tema, portanto, é uma séria advertência: prepare-se pecador, o dia do Senhor virá!

Enfim, o livro de Malaquias fala do amor de Deus pela nação de Israel, mas exorta os sacerdotes e o povo em geral, para que abandonem o pecado, especialmente aqueles que afetam o casamento, a família, o relacionamento do homem com seu Deus e a assistência aos levitas, aos estrangeiros, aos órfãos e às viúvas. Após apontar o pecado do povo, Malaquias faz questão de lembrar que a justiça de Deus virá juntamente com a vinda do Messias. Logo, o exame do livro do profeta Malaquias não pode se limitar a trechos de promessas ou de ameaças sem contextualizá-los.

A questão do dízimo

Nos seis temas tratados no livro de Malaquias, não há qualquer indicação de que Deus tenha alterado suas expectativas em relação ao cumprimento da Lei até então. Mesmo considerando-se um tempo em que o povo estava recém egresso de um exílio de 70 anos, tempo em que ficou privado do exercício pleno dos rituais da Lei, Deus continuava esperando que seu povo observasse seus preceitos. Tudo isso fica bem claro no livro de Malaquias. Em sua exortação, exige que a Lei seja cumprida exatamente como era antes do exílio, tanto na questão das ofertas de animais (o melhor do rebanho) como na apresentação dos dízimos, que visavam ao sustento dos levitas, dos sacerdotes e um socorro aos necessitados, estrangeiros, órfãos e viúvas. Nada deveria sofrer alteração. Apenas em relação ao divórcio Malaquias resgata o projeto original de Deus para o matrimônio deixando bem claro que Deus odeia o divórcio.

Como podemos ver no relato de Neemias, no regresso do povo exilado, os depósitos do Templo estavam vazios, e muitos sacerdotes e levitas haviam abandonado o serviço para voltar para casa e trabalhar no campo, a fim de prover sustento para suas famílias (Ne 13:10). O povo havia prometido solenemente que daria o dízimo (Ne 10:29-39), mas não havia cumprido a promessa. Assim, Malaquias aproveita os maus tempos em que o povo estava vivendo (pouca colheita e pragas de gafanhotos) para relacioná-los com o abandono do compromisso de levar à Casa do Tesouro os dízimos da produção anual das famílias.

“Levem à casa do Tesouro de Deus todos os dízimos e ofertas que lhe são de direito!” Essa era a ordem! Isso era justo para com os levitas que não receberam herança! A terra que deveria ser dos levitas foi repartida entre as demais tribos. Em troca, elas deveriam sustentar os levitas com um percentual fixo de 10%. Negar esse pagamento seria um roubo! Deus toma essa afronta sobre si próprio, pois quando instituiu os dízimos afirmou que essa porção era consagrada, ou seja, era dele (Lv 27:30-34). Os dízimos, portanto, deveriam ser levados à Casa do Tesouro, que eram depósitos especiais para guardar cereais, frutos, massas, vinho, azeite e sementes que o povo levava para o Senhor em obediência a sua Lei.

Importante observar que, embora o nome fosse Casa do Tesouro, não se tratava de cofres de moedas, ouro, prata, pedras preciosas ou outros valores monetários. Na verdade, eram armazéns para depósito dos dízimos, que eram alimentos e bebidas, como podemos constatar no trecho esclarecedor de Neemias, que transcrevemos a seguir:

“35 E que também traríamos as primícias da nossa terra e todas as primícias de todas as árvores frutíferas, de ano em ano, à Casa do Senhor; 36 os primogênitos dos nossos filhos e os do nosso gado, como está escrito na Lei; e que os primogênitos das nossas manadas e das nossas ovelhas traríamos à casa do nosso Deus, aos sacerdotes que ministram nela. 37 As primícias da nossa massa, as nossas ofertas, o fruto de toda árvore, o vinho e o azeite traríamos aos sacerdotes, às câmaras da casa do nosso Deus; os dízimos da nossa terra, aos levitas, pois a eles cumpre receber os dízimos em todas as cidades onde há lavoura. 38 O sacerdote, filho de Arão, estaria com os levitas quando estes recebessem os dízimos, e os levitas trariam os dízimos dos dízimos à casa do nosso Deus, às câmaras da casa do tesouro. 39 Porque àquelas câmaras os filhos de Israel e os filhos de Levi devem trazer ofertas do cereal, do vinho e do azeite; porquanto se acham ali os vasos do santuário, como também os sacerdotes que ministram, e os porteiros, e os cantores; e, assim, não desampararíamos a casa do nosso Deus.” (Ne 10:35-39, grifo nosso).

Sabendo disso, Malaquias diz: “trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa […]” (Ml 3:10, grifo nosso). Ora, mantimento é o termo que expressa exatamente o que se levava à casa do tesouro: alimentos, comida (VINE; UNGER; WHITE JÚNIOR, 2007, p. 772) e bebidas para o sustento dos levitas, dos sacerdotes e dos necessitados, estrangeiros, órfãos e viúvas. No contexto de Malaquias, dada a urgência de suprir os levitas e evitar a cessação do culto do Templo, o apelo é: parem de roubar porque assim Deus não pode cumprir sua promessa de abençoá-los (Lv 26:3ss). “O SENHOR determinará que a bênção esteja nos teus celeiros e em tudo o que colocares a mão; e te abençoará na terra que te dá o SENHOR, teu Deus” (Dt 28:8). A terra havia sido invadida por insetos (“o devorador”, Ml 3:11), e os grãos e frutos não estavam amadurecendo.

A afirmação de Malaquias 3:10, portanto, estava associada à aliança que os israelitas haviam feito com o Senhor (Dt 28:1-14), de modo que, se eles obedecessem fielmente, Deus seria fiel em cumprir suas promessas, a exemplo da seguinte: “O SENHOR te constituirá para si em povo santo, como te tem jurado, quando guardares os mandamentos do SENHOR, teu Deus, e andares nos seus caminhos. E todos os povos da terra verão que és chamado pelo nome do SENHOR e terão medo de ti” (Dt 28:9-10). O próprio Malaquias, falando pelo Senhor, apresenta uma promessa em forma de desafio: “[…] provai-me nisto, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida.” (Ml 3:10).

Embora o povo precisasse de chuva, para as plantações e para o pasto, Deus vai além. Promete que as janelas do céu seriam aberturas de canais de bênção em abundância. Ora, bênção é mais que chuva: é todo o bem que alguém pode esperar sobre sua vida, sua família, sua cidade, sua nação. Além disso, a promessa incluía o fim das pragas dos gafanhotos que destruíam as lavouras, bem como o fim das videiras inférteis, sem frutos (Ml 3:11).

Concluindo o exame do dízimo no período de Malaquias, percebemos que a única novidade em relação ao período de sua instituição foi o apelo feito pelo profeta, levando essa prática a um nível de relacionamento pessoal com Deus. Na Lei a exigência era exclusivamente tratada no sentido da gratidão, do temor e da justiça aos levitas, aos sacerdotes e aos necessitados, estrangeiros, órfãos e viúvas. Já em Malaquias, surge a questão da lealdade em um relacionamento com Deus, onde a desobediência, a desonestidade, a avareza e o egoísmo enfraquecem essa relação e atraem consequências devastadoras, chamadas de maldição. Por outro lado, a fidelidade e a confiança aproximam Deus, afastam o mal e atraem suas bênçãos.

Evidentemente, essa é a regra geral no relacionamento do homem com Deus desde Adão. Ou seja, enquanto Adão viveu em obediência, fiel ao mandamento de Deus, não sofreu mal algum, mas quando desobedeceu à palavra do Senhor atraiu o mal sobre si. Malaquias aplicou essa regra à questão do dízimo porque naquele momento era urgente evitar a falência do culto a Deus, já que os oficiais do Templo estavam migrando para o interior por falta de provisão na Casa do Tesouro.

Enfim, para o povo que vivia sob a Lei, os dízimos no livro de Malaquias são exatamente os mesmos instituídos anteriormente. A finalidade é a mesma, sua materialidade também é idêntica (alimentos e bebidas) e o local de armazenamento também é o mesmo. A diferença, então, fica por conta da relação que o profeta faz com a bênção pela obediência da Lei e a maldição pelo seu descumprimento, exatamente como anteriormente previsto no livro em Deuteronômio, capítulo 28. A obediência traria as diversas bênçãos derramadas por janelas do céu, inclusive chuvas a seu tempo (Dt 28:12; Ml 3:10). Também, a obediência afastaria as maldições da Lei, inclusive a da improdutividade da terra e a do ataque de gafanhotos (Dt 28:38; Ml 3:11) que, pelo visto, era a situação que eles já estavam vivenciando.

 

CAPÍTULO 6

A REVOGAÇÃO DA LEI DE MOISÉS

Antes de entrarmos no ministério de Jesus, precisamos firmar posição em relação a uma questão muito importante para o desdobramento das interpretações que se seguirão. Jesus afirmou que não veio ao mundo para revogar, mas para cumprir a Lei. Se formos descuidados na leitura, seremos levados a ficar apenas com a primeira informação (“não vim para revogar”) e desprezar a sua conclusão, que define a questão: “Eu vim para cumprir a Lei”. Entender essas afirmações do Mestre é essencial à compreensão da prática do dízimo e das ofertas, que somente é bem definida no Velho Testamento, a partir da Lei de Moisés, e não antes, como vimos nos capítulos dois e três deste livro.

Inicialmente, vamos observar que Jesus, nascido sob a Lei, era um zeloso cumpridor de seus preceitos, inclusive quanto ao mandamento da guarda sábado. Veremos mais detalhes dessa afirmação mais adiante. Entretanto, importa adiantar que, ao curar nos sábados, o Mestre não estava trabalhando em favor de suas causas pessoais e materiais, o que era proibido, mas deixando o poder de Deus fluir livremente no dia em que o Senhor separou para que o povo estivesse dedicado a Ele. Era exatamente isso o que acontecia quando Jesus curava aos sábados: estava inteiramente dedicado aos propósitos do reino de Deus (Lc 4:18) e o sábado foi o dia separado pelo Criador para que os homens descansassem dos trabalhos diários e se dedicassem à causa espiritual.

Fora a questão do sábado, mesmo nos momentos em que o nosso Senhor foi provado quanto ao cumprimento de preceito traumático da Lei, não houve da parte dele qualquer incentivo à sua desobediência. Ao levarem a Jesus a mulher flagrada em adultério os religiosos esperavam que Jesus defendesse a vida da adúltera. Se assim fizesse, estaria admitindo publicamente que a Lei podia ser descumprida, uma vez que a ordem para esse caso era o apedrejamento (Lv 20:10). Para a surpresa de todos, Jesus livrou a mulher ao mesmo tempo em que respeitou o dispositivo da Lei de Moisés.

“4 disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. 5 E na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes? […] 7 Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra.” (Jo 8:4-7, grifo nosso).

Quando Jesus afirmou que não veio para revogar a Lei, mas para a cumpri-la, acrescentou que, antes que o mundo deixasse de existir, a Lei não passaria até que fosse cumprida. E era exatamente isso que ele estava fazendo, cumprindo-a.

“17 Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. 18 Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. 19 Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. 20 Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.” (Mt 5:17-20, grifo nosso).

É bom reforçar! Jesus afirmou categoricamente que a Lei não sofreria qualquer alteração até que perdesse sua utilidade, exaurindo-se pela satisfação de seu objetivo. Para que isso fique mais claro, vamos ver um exemplo do nosso plano jurídico. O artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988, instituiu o seguinte:

“No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” (BRASIL, 2014).

Então, o que aconteceu no dia 7 de setembro de 1993? Essa norma constitucional, embora existente até hoje em nossa Constituição, sem ser revogada ou alterada, perdeu a razão de existir, uma vez que seu dispositivo exauriu-se quando ocorreu o plebiscito. Se no dia marcado, o plebiscito não tivesse ocorrido, essa norma ainda estaria pendente e produzindo efeitos pela exigibilidade de conduta dos governantes até que convocassem o plebiscito. Mas, como já se consumou, não tem mais efeitos a produzir. O mesmo aconteceu com a Lei de Moisés. Segundo o apóstolo Paulo, ela, que foi instituída por causa das transgressões, perdeu sua razão de ser a partir de Jesus, o descendente da promessa feita a Abraão. O Jesus prometido já veio, cumpriu o que tinha que cumprir e, assim, exauriu a Lei pela consumação – “Está consumado!”.

“30 Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito.” (Jo 19:30, grifo nosso).

Desde então, a vida do justo estaria amparada na fé e não mais no cumprimento da Lei, que só tinha razão de existir como um “aio” (guia) até que Jesus se manifestasse. Jesus veio e o “aio” perdeu sua função. O homem não tem mais de viver pelo “aio”, que o conduziu até Cristo, mas vive pelo próprio Cristo, mediante a fé.

“19 Qual, pois, a razão de ser da lei? Foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem se fez a promessa, […] 23 Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela encerrados, para essa fé que, de futuro, haveria de revelar-se. 24 De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé. 25 Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio.” (Gl 3:19-25, grifo nosso).

Não obstante a clareza desse texto, há quem prefira não compreendê-lo. Mas, não é só! O escritor da carta aos hebreus ratifica esse entendimento, ensinando que a Lei projetava algo que haveria de ser aperfeiçoado, na medida em que a realidade daquilo que representava se manifestasse. Por isso, ela foi chamada de “sombra das coisas que estavam por vir” (Hb 8:1-5). Ora uma sombra é apenas uma representação de uma realidade. Uma vez que estamos diante da realidade, não faz sentido continuarmos a contemplar a sombra.

“16 Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, 17 porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo.” (Cl 2:16-17, grifo nosso).

“1 Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem.” (Hb 10:1, grifo nosso).

Agora, vejamos que o próprio Jesus, após sua ressurreição, revela esse mistério a seus discípulos, abrindo-lhes o entendimento da realidade que antes eles só conheciam como sombra:

“44 A seguir, Jesus lhes disse: São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco: importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. 45 Então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras;” (Lc 24:44-45, grifo nosso).

Os exemplos bíblicos dessa verdade são diversos. Jesus cumpriu a Lei desde o seu nascimento, pois foi “nascido sob a lei” (Gl 4:4, grifo nosso) e seus pais realizaram todos os rituais prescritos para um menino judeu e ninguém nunca foi capaz de acusá-lo de qualquer pecado. Além disso, ele cumpriu os tipos e as cerimônias do Antigo Testamento para que não fossem mais necessários ao povo de Deus (Hb 9:1-10:39).

Ainda, é fácil constatar que a oferta de holocausto pelo pecado, instituída pela Lei (Lv 7:37) era apenas uma sombra (imperfeita) de algo que se cumpriria de modo real, em Cristo, ao ser este totalmente consumido no Calvário para a expiação do pecado do homem. A partir dessa consumação, o sacrifício representativo poderia ser abolido sem qualquer receio, pois foi substituído pelo fato real: “[…] nem um i ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5:18, grifo nosso).

“8 Depois de dizer, como acima: Sacrifícios e ofertas não quiseram, nem holocaustos e oblações pelo pecado, nem com isto te deleitaste (coisas que se oferecem segundo a lei), 9 então, acrescentou: Eis aqui estou para fazer, ó Deus, a tua vontade. Remove o primeiro [sacrifício segundo a Lei] para estabelecer o segundo [sacrifício de Jesus].” (Hb 10:8-9, grifo nosso).

Também, em sua morte e ressurreição, Jesus cumpriu a Lei de maneira especial, pois levou sobre si a maldição da Lei (Gl 3:13). Uma vez que Jesus se fez maldição, consumou-a e ela deixou de existir para todo cristão. Desse modo, Jesus, ao cumprir a Lei, eliminou-a (Cl 2:14 – 2Co 3:14-16), substituindo-a por outra mais completa, fundamentada na graça e na espiritualidade. Jesus colocou de lado a antiga aliança e firmou uma nova (WIERSBE, 2006, p. 25).

“4 Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê.” (Rm 10:4, grifo nosso).

“18 Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa de sua fraqueza e inutilidade 19 (pois a lei nunca aperfeiçoou coisa alguma), e, por outro lado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus.” (Hb 7:18-19, grifo nosso).

14 Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, 15 aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, 16 e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade.” (Ef 2:14-16, grifo nosso).

Ao cumprir a Lei mosaica, Jesus a extinguiu (consumou), substituindo-a por outra mais completa, fundamentada na essência da graça e da espiritualidade.

Eis, portanto, sólidos fundamentos bíblicos que nos permitem afirmar que, a partir de Cristo, a religião cristã e suas doutrinas não podem estar firmadas na Lei, mas na graça e nos ensinamentos do Mestre Jesus. Isso vale, obviamente, para a cobrança de dízimos e de ofertas.

 

CAPÍTULO 7

O MINISTÉRIO DE JESUS

Nascido sob a Lei

Antes de examinarmos o modo como Jesus tratou a questão do dinheiro, do dízimo e das ofertas em seu ministério, é importante destacar que o Filho de Deus veio ao mundo na época em que a Lei de Moisés regia a prática religiosa dos israelitas. A carta de Paulo escrita aos gálatas diz que “vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei,” (Gl 4:4, grifo nosso).

Por isso, os pais terrenos de Jesus o submeteram aos rituais prescritos para um menino judeu, a exemplo da circuncisão e da apresentação no Templo, como podemos ver a seguir:

“21 Completados oito dias para ser circuncidado o menino, deram-lhe o nome de Jesus, como lhe chamara o anjo, antes de ser concebido. 22 Passados os dias da purificação deles segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor,” (Lc 2:21-22, grifo nosso).

Em seu desenvolvimento, Jesus também participou dos eventos prescritos pela Lei de Moisés. Lucas afirma que “quando ele atingiu os doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume da festa.” (Lc 2:42, grifo nosso). Em outra ocasião, Jesus sobe à Jerusalém para celebrar a Páscoa (Jo 2:13). Vale lembrar que o próprio Mestre afirmou que lhe cumpria obedecer aos preceitos da Lei e não revogá-la (Mt 5:17). Importante saber que Jesus não abre a porta da graça com o seu nascimento ou com o seu ministério, mas com sua morte e ressurreição. A salvação pela graça só se aplica ao homem após a consumação do sacrifício substitutivo de Jesus, conforme atestam os versos seguintes:

“7 no qual temos a redenção, pelo seu sangue [sacrifício], a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça,” (Ef 1:7, grifo nosso).

“5 e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, — pela graça sois salvos, “6 e, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; “7 para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus. “8 Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus;” (Ef 2:5-8, grifo nosso).

Assim, uma vez que o período da graça não se inicia antes da ressurreição de Jesus, é perfeitamente compreensível que o Mestre respeitasse a Lei de Deus, dada por Moisés, durante todo o tempo em que desenvolveu seu ministério aqui na terra.

As tradições dos anciãos

No tempo de Jesus, além da Lei de Moisés, a “tradição dos antigos” estava enraizada na cultura judaica. Inicialmente, tratava-se de regras transmitidas ao povo verbalmente, ao longo das gerações, segundo os costumes culturais judaicos. Com o tempo, dada a quantidade de acréscimos, aproximadamente 700, essas regras constituíram um código de leis israelitas chamado Mishna. Essas leis não faziam parte da Lei de Moisés, mas a força dos costumes era tamanha que o Mishna passou a ser religiosamente tão importante quanto as próprias leis de Deus.

Guardiões da tradição, os fariseus apesar de não acharem em Jesus nenhum pecado ou atitude de desrespeito à Lei de Moisés, perceberam que o Mestre não obedecia às leis do Mishna. De fato, o Nazareno não estava comprometido com a escravidão do ritualismo da tradição, mas com a essência da vontade de Deus para os homens.

Os fariseus, por sua vez, distorciam a Lei de Moisés com os acréscimos da tradição e, por vezes, quando convinha, colocavam a tradição acima da própria Lei. Jesus os censurou dizendo que eles estavam negligenciando o mandamento de Deus e guardando a tradição dos homens (Mc 7:8). Nessa ocasião, o Mestre os chamou de hipócritas, afirmando que seus corações estavam distantes de Deus e que suas adorações eram vãs (Mc 7:6-7). Para exemplificar a hipocrisia, Jesus acusou-os de afastar o mandamento de honrar pai e mãe (inclusive financeiramente), substituindo-o pela tradição que eles mesmos criaram e que admitia que esse mandamento fosse desobedecido se o filho dissesse que o sustento financeiro que lhes devia segundo a Lei era “corban” (Mc 7:11), isso é, seria usado para Deus.

Assim, os fariseus foram desmascarados por Jesus exatamente no momento em que eles estavam acusando seus discípulos de comerem sem antes cumprir a tradição de lavar as mãos, senão vejamos:

“1 Então, vieram de Jerusalém a Jesus alguns fariseus e escribas e perguntaram: 2 Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos, quando comem. 3 Ele, porém, lhes respondeu: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? […] 10 E, tendo convocado a multidão, lhes disse: Ouvi e entendei: 11 não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina o homem. […] 18 Mas o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina o homem. 19 Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. 20 São estas as coisas que contaminam o homem; mas o comer sem lavar as mãos não o contamina.” (Mt 15:1-20, grifo nosso).

Para os fariseus e escribas, lavar as mãos antes das refeições não era uma simples questão de higiene, mas de uma das tradições do Mishna. Ao voltar do mercado, se não se lavassem, não comiam. Eles consideravam que isto fazia parte da santidade de vida, tanto que se tornou um ritual obrigatório, com vários regulamentos, envolvendo lavagem não só antes, como depois, e mesmo durante as refeições. As mãos tinham que ser imersas; a água tinha que ser “pura”; e os utensílios também tinham que estar cerimonialmente “limpos”. Havia, inclusive, talhas próprias para a água usada nas purificações (Jo 2:6-8). O Senhor Jesus admitiu que os discípulos haviam transgredido as tradições, mas, para ele, isso não era importante. Muito mais sério era não conter os maus desígnios do coração e que se constituem em verdadeiros pecados contra Deus e contra o próximo.

Ora, quando Jesus os confronta, em relação à assistência aos pais, essa questão tornou insignificante qualquer discussão sobre lavar ou não as mãos antes de comer. Jesus mostrou aos fariseus que a Lei de Deus estava sendo anulada pela conduta interesseira deles, e que a falha deles em relação à Lei era muito mais grave do que a falha de seus discípulos em relação às tradições dos homens. Para além da questão específica das tradições judaicas, o exemplo de Jesus nos serve de advertência para não inserirmos em nossa religião elementos que não constem da Lei e da vontade de Deus, simplesmente em razão de nossos interesses ou de nossas justificativas humanas.

Enfim, esses exemplos mostram como Jesus estava realmente empenhado em cumprir e respeitar a Lei de Moisés, em toda a sua essência, mas não as tradições humanas.

Sobre os dízimos

Jesus, nascido sob a Lei, enquanto a consumava, evidentemente não tinha o propósito de se levantar contra os dízimos, tão necessários ao sustento dos oficiais do Templo e do próprio ritual religioso que apontava para o projeto de Deus que, pouco depois, iria se cumprir nele. Por isso, quando critica o comportamento dos fariseus, que eram criteriosos no cumprimento da lei do dízimo, mas deixavam de lado as coisas mais importantes exigidas pela Lei, o Mestre não diz que entregar os dízimos estava errado, mas diz que todo o zelo dos fariseus era inútil, porque eles eram casuístas ao cumprir apenas o que lhes interessavam. Também, eram incoerentes, pois, ao mesmo tempo em que defendiam a Lei, descumpriam-na em sua parte mais relevante. Assim, erravam e induziam seus seguidores ao erro.

“23 Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas! 24 Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo!” (Mt 23:23-24, grifo nosso).

Importante a observar é que Jesus não demonstra qualquer insatisfação contra a prática do dízimo pelo povo. Se fizesse isso, além de cometer uma injustiça contra os oficiais do Templo, que não receberam herança e mereciam aquele sustento, revelaria uma insubordinação à Lei de Deus, a qual Ele também estava sujeito enquanto não a consumasse. Ora, bem sabemos que Jesus não era injusto e, como consumador da lei, não poderia descumpri-la. Ele próprio disse que “[…] digno é o trabalhador do seu alimento” (Mt 10:10). Logo, era justo que os trabalhadores levitas e sacerdotes fossem sustentados pelos dízimos do povo, já que viviam a serviço do ritual do Templo.

Diferentemente dos fariseus, Jesus não era incoerente. Se ele mesmo havia afirmado, expressamente, que tinha vindo ao mundo para “cumprir a Lei” (Mt 5:17), não havia, pois, razão para incentivar a cessação de seu preceito que visava, inclusive, a misericórdia, já que os dízimos também eram destinados ao sustento dos necessitados, estrangeiros, órfãos e viúvas (Dt 14:28-29). Aos olhos de Jesus, sob a Lei, não havia nada de errado no recolhimento do dízimo. Estes eram parte integrante desta Lei e seu cumprimento expressava a fé, a justiça e a misericórdia. O problema não estava no cumprimento da Lei, mas em seu descumprimento. Por isso, dízimos e ofertas só são abolidos após a morte e ressurreição de Jesus (consumação da Lei), o que explica o fato dele não ter recriminado sua cobrança enquanto ela ainda vigorava.

Em outra oportunidade, quando Jesus ensinava a respeito da oração, contou uma parábola para exemplificar o quanto nosso coração é sondado aos elevarmos a Deus nossas orações. Disse Jesus:

“10 Dois homens subiram ao Templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. 11 O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; 12 jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. 13 O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! 14 Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado”. (Lc 18:10-14, grifo nosso).

Como visto, o propósito da parábola não era ensinar sobre dízimos, mas sobre oração. A questão do dízimo foi citada somente para mostrar uma vaidade que estava no coração do fariseu, que se autoelogiava por ser um cumpridor da Lei. O Mestre não estava fazendo nenhum tipo de avaliação se o modo de dizimar do fariseu era correto. Estava apenas mostrando que isso era um dos motivos do orgulho daquele religioso. Por isso, a passagem bíblica do fariseu e do publicano não se presta a sustentar qualquer afirmação ou doutrina sobre o dever ou sobre o modo de se entregar dízimos.

Ao analisar estas mesmas passagens, Oliveira (2005, p. 86-87), conclui que:

 “O Mestre não está falando a respeito do assunto [dízimo], e sua intenção não é ensinar nada sobre ele. Ao contrário, suas palavras são uma crítica profunda ao modo de vida hipócrita dos fariseus, que adotavam uma religiosidade formal, mais dada às práticas exteriores do que a uma real e verdadeira contrição na presença do Eterno. […] Tanto mais isto é verdadeiro, quanto nos lembramos de que o dízimo sempre se restringiu aos produtos mencionados em Dt 8:8, de modo que dizimar com relação a coisa como hortelã, arruda, hortaliças, endro ou cominho, constitui-se em um exagero completo. Dessa forma, a raiz da hipocrisia atacada por Jesus nestes textos reside exatamente nessa prática legalista do dízimo. […] Ora, por que interpretar essas palavras de Jesus como uma aprovação do dízimo, quando na verdade elas são uma condenação dessa oferta, pelo menos na forma deturpada como os fariseus o praticavam? E é evidente que para um judeu o cumprimento da Lei deveria ser integral, o que inclui o dízimo na sua forma correta.” […] E isso é tudo. Nada mais encontramos nos Evangelhos que se refira ao dízimo, seja com intenção, seja de passagem. A minha questão é esta: como é possível com tão pouco, afirmar categoricamente que Jesus aprova e recomenda o dízimo como regra de contribuição para a prática da Igreja? Com essa pequena e duvidosa base, é lícito afirmar que o dízimo é também uma doutrina do Novo Testamento?”.

Portanto, sobre a questão do dízimo é importante ressaltar que o Mestre, em seu ministério, insurgiu-se contra a hipocrisia, a tradição dos fariseus, o pecado, o egoísmo, a falta de misericórdia, a vingança e tudo o que estava errado em seu tempo. Mas, deixou de fazer uma crítica direta ao recolhimento do dízimo e das ofertas previstas na Lei, porque, como já foi dito, sob a Lei, enquanto o Templo funcionava e os levitas e sacerdotes trabalhavam, essa era a forma justa de manutenção de seu ritual.

Sobre as ofertas

Como vimos até aqui, Jesus não criou obstáculos aos homens que cumpriam a Lei. Durante seu ministério, o sistema de ofertas e sacrifícios estava em plena atividade. O Templo funcionava com seus levitas e sacerdotes em atenção às regras instituídas pela Lei de Moisés, mesmo que acrescidas das equivocadas interpretações dos fariseus.

Ofertas de sacrifícios

Prova disso é a passagem bíblica de Mt 5:23-24, em que Jesus ensina como realizar uma oferta aceitável no altar do sacrifício. Daí podemos perceber que o Mestre, apesar de saber que em um futuro não muito distante aquele ritual cessaria, faz questão de reafirmar sua utilidade em cumprimento aos preceitos da Lei, fazendo apenas uma observação para que a oferta atingisse seu objetivo, senão vejamos:

“23 Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta.” (Mt 5:23-24, grifo nosso).

Ora, mesmo sabendo que o sacrifício de animais era apenas uma “sombra” do que haveria de se cumprir nele, não sendo apto a tornar perfeito o ofertante (Hb 10:1), Jesus aproveita aquela figura da Lei para ensinar que uma oferta, por mais que custe ao homem, e mesmo que siga um ritual religioso bem preparado, jamais terá valor algum para Deus, caso não haja arrependimento de pecados por parte do ofertante e uma busca sincera pela reconciliação. É importante que se note que a passagem bíblica citada não se refere a ofertas financeiras ou de bens materiais para livre utilização e disposição daqueles que a recebiam. A oferta utilizada como exemplo por Jesus era a oferta de sacrifício, sobre as quais tratamos no capítulo dois deste livro.

Apenas para recordar, somente as ofertas de sacrifício e as de manjares eram oferecidas sobre o altar, que era o local construído para se queimar a oferta. Assim, quando Jesus se refere à oferta levada ao altar, obviamente, está falando da oferta de um animal ou de um manjar, cuja destinação era o fogo. E por se referir às ofertas apresentadas no altar, não há que se confundi-las com as ofertas, resgates ou impostos em dinheiro depositados nos gazofilácios do Templo.

Ofertas em dinheiro

Estudamos no capitulo três, que os dízimos eram produtos alimentícios. Também já ficou esclarecido que, a partir do reinado de Joás, foram colocadas caixas junto à porta do Templo para ali serem recolhidos os impostos, as ofertas voluntárias e o preço do resgate. Mas, essas caixas ainda existiam no tempo de Jesus? Sim, tanto existiam como passaram a ser chamadas de gazofilácio, como podemos ver a seguir:

“41 Assentado diante do gazofilácio, observava Jesus como o povo lançava ali o dinheiro. Ora, muitos ricos depositavam grandes quantias. 42 Vindo, porém, uma viúva pobre, depositou duas pequenas moedas correspondentes a um quadrante. 43 E, chamando os seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta viúva pobre depositou no gazofilácio mais do que o fizeram todos os ofertantes. 44 Porque todos eles ofertaram do que lhes sobrava; ela, porém, da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento.” (Mc 12:41-44, grifo nosso).

Do mesmo modo que Jesus não condenou o cumprimento do ritual de ofertas do Templo, também não criticou o fato de haver gazofilácios no Templo para o recolhimento das quantias estipuladas pela Lei. O que Jesus fez foi criticar a atitude de certos ofertantes ricos e exaltar a disposição do coração da viúva pobre.

Mais uma vez, o Mestre não condena o preceito da Lei, mas mostra que as pessoas não conseguem cumprir seus reais propósitos. Segundo Jesus nos mostra, o importante não era a quantidade da oferta, mas a disposição do coração. Se em relação à oferta no altar Jesus observou corações cheios de ódio e falta de conciliação, diante do gazofilácio ele identificou corações cheios de avareza. Isso mesmo! Os avarentos entregavam sobras no gazofilácio, ou seja, valores que não lhes faria falta alguma – uma esmola. Por outro lado, a viúva, entrega sua vida ao depositar suas últimas moedas.

Assim, Jesus não critica o sistema de ofertas e nem mesmo estava preocupado com o que seria possível fazer com as quantias depositadas. Mas, em plena sintonia com o modo como tratou a questão financeira em todo o seu ministério, Jesus critica a indisposição dos corações em se entregarem completamente a Deus quando o dinheiro está entre eles. Esmolas devem ser dadas aos pobres e não ao Senhor!

Sobre os impostos religiosos

É verdade que Jesus não hesitou em quebrar as tradições humanas dos fariseus, mas teve o cuidado de obedecer à Lei de Deus. Como vimos no capítulo três, a Lei estabeleceu um imposto, inicialmente chamado de “taxa de recenseamento” (Êx 30:11-14). O dinheiro da primeira coleta foi utilizado para fazer as bases de prata onde eram encaixadas as colunas do Tabernáculo (Êx 38:25-27). Posteriormente, o imposto arrecadado passou a ser usado para a manutenção do Tabernáculo e, depois, do Templo. Estando Jesus em Cafarnaum, os cobradores do Templo indagaram a Pedro se Jesus pagaria o imposto, senão vejamos:

“24 Tendo eles chegado a Cafarnaum, dirigiram-se a Pedro os que cobravam o imposto das duas dracmas e perguntaram: Não paga o vosso Mestre as duas dracmas? 25 Sim, respondeu ele. Ao entrar Pedro em casa, Jesus se lhe antecipou, dizendo: Simão, que te parece? De quem cobram os reis da terra impostos ou tributo: dos seus filhos ou dos estranhos? 26 Respondendo Pedro: Dos estranhos, Jesus lhe disse: Logo, estão isentos os filhos. 27 Mas, para que não os escandalizemos, vai ao mar, lança o anzol, e o primeiro peixe que fisgar, tira-o; e, abrindo-lhe a boca, acharás um estáter. Toma-o e entrega-lhes por mim e por ti.” (Mt 17:24-27, grifo nosso).

Duas coisas podemos notar na leitura desse texto. Primeiramente, Jesus não tinha dinheiro guardado. O que entrava na bolsa (Jo 12:6) era utilizado para o seu sustento e não para a aquisição de bens. Nosso Senhor não tinha campos ou casas (Lc 9:58) e nem animais (Lc 19:29-33). Tampouco cobiçou isso de alguém (Lc 18:22).

Certamente, Jesus vivia exatamente do modo como ensinava aos seus discípulos. Não entesourou nesta terra e, por isso, tinha exemplo e autoridade para nos ensinar a fazer o mesmo. Ao treinar seus discípulos, enviou-os para uma missão ensinando-os a confiar na providência divina para o sustento diário, sem reservas (Lc 9:1-4).

 

A segunda observação a se fazer é que mesmo sabendo que aquele preceito da Lei não se aplicava a ele, cumpriu-o, confirmando sua validade. Isto é, Jesus mais uma vez mostra que as exigências da Lei estavam em pleno vigor e mereciam ser observadas, inclusive no que dizia respeito ao recolhimento do imposto do Templo. Assim, sob a Lei, contribuir financeiramente para a manutenção do Templo era legal e justo, razão pela qual Jesus não se insurge contra esse recolhimento financeiro.

Sobre os impostos civis

Quando Jesus fala das solicitudes da vida, as ansiedades humanas, ele sabia o quanto o homem tem dificuldades de fazer a opção pelo reino de Deus em um mundo que provê facilidades aos desonestos e embaraços aos honestos. No Brasil, por exemplo, boa parte dos empresários fazem grande esforço para evitarem o pagamento dos impostos sobre suas operações. Alguns chegam a dizer que se pagassem tudo o que é devido perderiam a capacidade de concorrer com os demais comerciantes do seu ramo, que sonegam impostos e, assim, conseguem vender a preços mais baixos.

Entretanto, esse aspecto do relacionamento do homem com o dinheiro e com suas obrigações cidadãs não passou despercebida no ministério de Jesus. Ao ser indagado quanto à obrigação do pagamento de impostos cobrados pelo Império Romano, Jesus trouxe a resposta certa: sim! Nós bem sabemos que a pergunta foi feita por herodianos, inimigos dos fariseus e aliados à Roma. Sabemos, também, que a intenção era fazer com que a resposta de Jesus o colocasse em situação delicada. Por um lado, poderia provocar revolta nos fariseus (contrários aos impostos); por outro, poderia mostrar insubmissão ao governo romano. Sabiamente, sem cair na armadilha dos herodianos, Jesus não deixou de dar a resposta certa. Ora, independentemente se achamos justo ou não o pagamento de impostos, nossa obrigação é pagá-los, senão vejamos:

“17 Dize-nos, pois: que te parece? É lícito pagar tributo a César ou não? 18 Jesus, porém, conhecendo-lhes a malícia, respondeu: Por que me experimentais, hipócritas? 19 Mostrai-me a moeda do tributo. Trouxeram-lhe um denário. 20 E ele lhes perguntou: De quem é esta efígie e inscrição? 21 Responderam: De César. Então, lhes disse: Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. 22 Ouvindo isto, se admiraram e, deixando-o, foram-se.” (Mt 22:17-22, grifo nosso).

Assim, por mais difícil que seja, temos que entender que para seguirmos a Cristo temos que abrir mão de toda injustiça, desonestidade, falsidade ou qualquer outro comportamento incompatível com os ensinamentos do nosso Senhor, mesmo que isso implique diminuição patrimonial.

Sobre dinheiro, bens, tesouros, riqueza e prosperidade

Sobre dinheiro e recursos materiais Jesus foi muito claro: o objetivo do evangelho é o céu e não a terra. Por isso, as questões terrenas são tratadas pelo Mestre como meios e não como fins. Esse é o princípio básico que veremos nos exemplos que apresentaremos em seguida.

O egoísmo

Nós bem sabemos que é difícil fazer algo de modo desinteressado. Normalmente, só nos movemos por interesses pessoais, ainda que sejam nobres e necessários. Há sempre algum interesse pessoal por trás de nossas ações. Então, onde está o problema? Ele aparece quando buscamos nossos interesses e “passamos por cima” do alheio, como se vivêssemos sozinhos no planeta Terra. É quando buscamos o nosso bem a todo custo, sem procurar saber se nessa empreitada estamos fazendo mal a terceiros.

É bom lembrar que boa parte dos vícios são exacerbações de comportamentos ou sentimentos naturais. Na visão do filósofo Aristóteles, virtude e vício diferem apenas em termos de grau e não pela diferenciação de seus princípios. Por exemplo, amor próprio dá-nos um sentido de autopreservação natural, mas quando imoderado, exagerado ou descontrolado pode ser classificado como orgulho, egoísmo ou vaidade, conforme o caso. O egoísmo, portanto, como a própria definição do nosso dicionário nos ensina é “amor excessivo ao bem próprio, sem consideração aos interesses alheios” (FERREIRA, 2010). Logo, um vício de comportamento que distorce as mais sinceras intenções de defendermos nossos interesses.

Sabemos que neste mundo temos que conviver em paz com nossos semelhantes, mesmo que os nossos interesses conflitem com os deles. No céu, para onde queremos ir, há igualmente uma multidão de pessoas com quem teremos que compartilhar muitas coisas. Por isso, aqui na terra somos preparados para entrar no céu. A escola é aqui e não lá. E o Mestre já nos deu suas lições teóricas e vários exemplos com sua própria vida.

Agora, nós só precisamos fazer a lição de casa. A mais importante lição de Jesus no sentido de aplacar nosso egoísmo foi exatamente o ensino do amor. Mas, para que não venhamos a confundir o amor bíblico com um simples sentimento, devemos aproveitar o esclarecimento que Paulo nos deixou em 1Co 13:1-13. Nessa passagem, fica bem claro que a essência do amor são as atitudes e, no caso deste ensino, vamos destacar a atitude que combate o egoísmo, qual seja: não buscar nosso próprio interesse, mas o alheio:

“4 O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, 5 não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal;” (1Co 13:4-5, grifo nosso).

Em reforço, podemos apresentar o registro feito por Oliveira (2005, p. 107-108):

Na igreja não existem imposições ou legalismos, mas ao contrário todas as ações devem ser movidas pelo amor genuíno, pela visão das necessidades e pela fé. O impulso para dar nasce da capacidade de cada cristão de se colocar no lugar daquele que está em dificuldades, e dessa experiência vicária brota o desejo de servir, não apenas com os nossos bens, mas também com a nossa própria vida. Imitamos a Cristo, que se colocou em nosso lugar.

Agora que já sabemos que o egoísmo é um vício de comportamento e que o amor é a atitude capaz de eliminá-lo, vamos ver como Jesus tratou com uma das questões que mais causam conflitos de interesse neste mundo: o dinheiro.

A hipocrisia do ofertante trombeteiro

Quando ouvimos dizer que alguém fez uma doação para uma causa social ou mesmo deu uma esmola a um necessitado, logo pensamos que foi movido pela generosidade, pela misericórdia e pelo amor, no sentido de acudir a causa alheia. Não há dúvidas de que esse tipo de doação pode, realmente, revelar essas características da vida do doador. Entretanto, em seu ensino, Jesus fez questão de advertir que pode haver outras intenções ocultas em um ato, aparentemente nobre, de doação, senão vejamos:

“2 Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. 3 Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; 4 para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mt 6:2-4, grifo nosso).

Na verdade, Jesus sabia que na vida dos religiosos fariseus havia muita hipocrisia. A motivação deles não era a generosidade, a misericórdia e o amor. Eles gostavam de chamar a atenção dos homens para suas próprias vidas. Queriam ser admirados, elogiados e respeitados. Logo, a motivação deles era a vaidade e não o amor.

A contribuição perde o valor para Deus se a motivação estiver errada. Nunca podemos nos esquecer de que Jesus consegue ver o que está em nossos corações, a exemplo do que ocorreu em relação aos ofertantes que Jesus observou dando grandes quantias em dinheiro no gazofilácio: ele viu que os homens davam esmolas a Deus, embora a aparência era de que estavam dando uma boa contribuição ao serviço santo (Mc 12:41-44).

Sob o ponto de vista de Jesus, os atos de generosidade, compaixão ou socorro podem revelar virtudes ou vícios de comportamento, amor ou hipocrisia. Se eu dou, ajudo ou faço algo por outrem sem que ninguém saiba o que eu fiz, temos aí uma virtude, um ato de amor reconhecido por Deus.

De modo diferente, se eu divulgo essas ações no jornal, na rádio, na televisão, na internet ou mesmo em cultos especiais, de modo que meus “atos de bondade, generosidade ou amor” sejam vistos pelos homens, temos aí um vício de comportamento classificado por Jesus como hipocrisia.

Assim, segundo o Mestre, os aplausos dos homens serão a recompensa dos “ofertantes trombeteiros”, uma vez que tais atos não merecem reconhecimento de Deus, porque não se amoldam aos ensinos espirituais de Jesus.

O tesouro no céu

Como vimos, Jesus recomendou a prática da esmola aos necessitados. Ele não disse “se você der esmola”, mas “quando você der esmola” (Mt 6:2). Jesus esperava que seus discípulos exercessem misericórdia com os pobres regularmente, do mesmo modo que deveriam fazer em relação à oração (“quando orardes”) e ao jejum (“quando jejuardes”). É claro que, no que diz respeito à esmola, o egoísmo e a avareza têm de ser afugentados da vida do homem para dar lugar ao amor ágape. Importante saber que Jesus, logo após referir-se a essas práticas (esmola, oração e jejum), falou sobre o ajuntar tesouros no céu com as seguintes palavras:

“19 Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; 20 mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam;” (Mt 6:19-20, grifo nosso).

Curioso é que o cristão moderno entendeu bem o recado quanto ao jejum e à oração, mas não absorveu bem o estímulo à prática da misericórdia com os pobres. Não vemos hoje a igreja estimulando seus membros a dar esmolas, mas apenas a orar, jejuar, dar dízimos e ofertas. Ao que parece, a esmola foi substituída pelo auxílio financeiro à igreja. Entretanto, não podemos excluir um dos “quandos” de Mt 6, julgando que apenas dois deles sejam importantes. Todos, igualmente, estão relacionados ao modo de se ajuntar tesouro no céu, conforme podemos ver a seguir:

“Quando, pois, deres esmolas […]” (Mt 6:2)

“[…] ajuntai para vós outros tesouros no céu […]” (Mt 6:20)

“E, quando orardes […]” (Mt 6:5)

“Quando jejuardes […]” (Mt 6:16)

No caso da misericórdia com os pobres, há uma passagem bíblica onde Jesus reforça sua relação com o ajuntamento de tesouro no céu. Em Mt 19:21 “Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me.” (grifo nosso). O mestre relaciona o socorro ao necessitado a um entesouramento no céu. Ainda, afirma que o acúmulo de riquezas nesta terra é alvo de ataques dos homens e da própria natureza corruptível, enquanto as atitudes de amor e misericórdia são permanentemente conservadas no céu.

Assim, notamos que oração, jejum e, principalmente, esmolas (amor ágape) são modos como podemos ajuntar tesouro no céu. E tudo isso deve ser feito sem qualquer pretensão de projeção pessoal diante de outros homens. Ou seja, a motivação do coração deve estar no fim pretendido por Deus e não na autopromoção desejada pelas vaidades e pretensões humanas.

 

A atitude do homem em relação ao dinheiro é reveladora

Logo após Jesus ensinar seus discípulos sobre como e onde deveriam ajuntar tesouros, faz uma advertência para que ninguém fique enganado: “porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração.” (Mt 6:21). O coração do homem se apega ao local onde colocou o seu tesouro, inevitavelmente. Por isso, se alguém quer saber onde está, de fato, seu coração, basta identificar o local onde está aplicando o seu dinheiro. Vale a pena repetir: o objetivo do evangelho é o céu e não a terra. Infelizmente, isso nunca foi algo fácil de entender. Desde o tempo de Jesus, havia quem pensasse que o materialismo, o egoísmo e a avareza não criavam nenhum obstáculo ou impedimento de acesso ao reino dos céus.

Para ilustrar como os bens materiais, tesouros terrenos, afetam nossas escalas de valores, ficou registrado na Bíblia a passagem em que Jesus prova o coração de um jovem religioso que se aproximou dele expressando interesse em saber mais sobre a vida eterna. Jesus, sem perguntar nada sobre sua condição material, disse-lhe que vendesse seus bens, desse o valor correspondente aos pobres e o seguisse. Mas o jovem era rico e não conseguiu compreender que a vida eterna vale muito mais que tudo aquilo que o homem possa juntar nesta vida. Vejamos o texto:

“16 E eis que alguém, aproximando-se, lhe perguntou: Mestre, que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna? 17 Respondeu-lhe Jesus: Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom só existe um. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. 18 E ele lhe perguntou: Quais? Respondeu Jesus: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirás falso testemunho; 19 honra a teu pai e a tua mãe e amarás o teu próximo como a ti mesmo. 20 Replicou-lhe o jovem: Tudo isso tenho observado; que me falta ainda? 21 Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. 22 Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades.” (Mt 19:16-22, grifo nosso).

Segue-me! Essa era a resposta de Jesus! O caminho e a vida estavam diante dele! O que poderia valer mais que a vida eterna? O Mestre apresenta a ordem correta aos ouvintes ao mesmo tempo em que colocou o coração do jovem, aparentemente piedoso, à prova.

A pergunta que ecoa até hoje é: o que vale mais? A vida eterna ou a terrena? (Mc 8:36). Se alguém realmente crê na vida eterna e a almeja, sinceramente, saberá investir naquilo que a realizará. Seja como for, Jesus deixou claro que nossas opções revelarão muito a nosso respeito.

Quem tem R$ 100 mil pode gastar essa quantia de várias formas. Pode, por exemplo, comprar uma casa ou um carro ou consumir tudo em viagens. Certamente, sua escolha revelará o que é mais importante ou o que mais satisfaz o anseio do seu coração. No caso do jovem, seu coração estava em suas propriedades. Para ele, Jesus não valia tanto assim. Seguir a Jesus não era mais importante que seu dinheiro. Outras pessoas mostraram comportamento inverso. Uma mulher despejou sobre Jesus um perfume precioso, que equivalia a um ano inteiro de trabalho. Para ela, Jesus valia mais que trezentos denários (Mc 14:3-7).

Portanto, quando o assunto é dinheiro, nossas atitudes revelam nossas preferências, nossos gostos, nossos anseios e no que cremos. Vale repetir: o modo como gastamos nosso dinheiro e onde o empregamos revela muito sobre nós. Jesus, por exemplo, com suas atitudes, deixou bastante claro que o dinheiro não era a prioridade de sua vida e nem do seu ministério. Jesus não possuía dinheiro guardado, não possuía propriedades, não desfrutava do conforto que o dinheiro proporciona aos homens, não era avarento, não era egoísta, não era vaidoso e não explorava os pobres e nem os ricos sob argumento da realização da obra de Deus. Ao contrário, nosso Senhor tinha misericórdia dos pobres e necessitados e deixava os ricos fazerem suas opções livremente. Onde, então, estava o coração de Jesus? No reino de Deus e na sua justiça!

Dificilmente um rico entrará no reino dos céus

Passa o tempo e a história se repete. O mesmo que impediu o jovem rico de seguir a Jesus tem impedido muitas pessoas de seguirem os ensinamentos do Mestre. O materialismo forma uma barreira entre o homem e Jesus. Para o materialista, nosso Senhor não tem tanto valor como seu patrimônio. O Nazareno só é chamado de mestre até colocar-se entre a fortuna do homem e Deus. Pensam que é melhor continuar a seguir uma religião sem Jesus do que ficar pobre. O Carpinteiro não lhe serve como padrão nessas horas. Certamente, o jovem rico jamais pensou que o Mestre poderia tocar naquilo que ele mais amava, seu patrimônio.

Jesus bem sabia o quanto aquilo era difícil para aquele moço, mas não amenizou a situação. Do mesmo modo radical que tratou com o pecado tratou com o materialismo, pois ambos afastam o homem de Deus. O Mestre chega a fazer uma afirmação que causou espanto a seus discípulos: “um rico dificilmente entrará no reino dos céus”. Então, indagaram eles, “quem pode ser salvo?”

“23 Então, disse Jesus a seus discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. 24 E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus. 25 Ouvindo isto, os discípulos ficaram grandemente maravilhados e disseram: Sendo assim, quem pode ser salvo? 26 Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é possível.” (Mt 19:23-26, grifo nosso).

Ora, desde aquele tempo os homens acreditam que a prosperidade material era uma evidência de bênçãos de Deus. Esse pensamento surgiu em razão das promessas de bênçãos e maldições inseridas em Dt 27:1-28:68. Daí veio a teologia da retribuição (recompensas e castigos) que vigorou até a implantação do período da graça, exceto para aqueles que disseminam a cultura neopentecostal do medo. O fundamento dessa teologia inicia-se na Lei. Desde Moisés, essa era a força normativa que levava o povo a buscar e a temer a Deus: bênçãos ou maldições. Mas, Jesus estava propondo uma mudança de mentalidade, apresentando o amor como a principal motivação da nossa religião.

É natural que eles, judeus zelosos, tivessem dificuldade para entender aquela declaração, pois, em suas mentes, se um homem rico não podia ser salvo, então, que esperança haveria para eles, que eram pobres? Talvez não tivessem entendido naquele momento, mas, como presenciaram os demais ensinamentos e a coerência do Mestre, aos poucos foram percebendo que os padrões de relacionamento com Deus eram diferentes a partir de Jesus. Se antes a riqueza era evidência de bênção, agora, Jesus mostra que são verdadeiras barreiras que só podem ser removidas mediante a fé e a sua graça: “pela graça sois salvos, mediante a fé e isso não vem de vós […]” (Ef 2:8).

Invertendo os valores tradicionais, o Nazareno mostrou que as bênçãos espirituais interiores são muito mais importantes do que o lucro material e mesmo que nosso comportamento tente esconder nossas verdadeiras intenções, Deus vê o coração. O fato é que o nosso Senhor espera encontrar em nós atitudes condizentes com o amor, no sentido de olhar para o outro e tirar o foco de si mesmo. Por isso, nos ensinou com suas palavras e exemplos a afugentar o vício do egoísmo e o apego exagerado aos bens materiais.

Afinal, repetimos, o evangelho aponta para o céu e não para a terra. Se não entendermos esse princípio tão básico, nossa salvação estará sob risco, pois toda a nossa religiosidade só servirá para nos fixar cada vez mais à terra e para desenvolver em nós vícios ao invés de virtudes. E se alguém pensa que vícios de comportamento (excessos, descontroles e incontinências), não são impeditivos à entrada no céu é bom lembrar que “nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus” (Ef 5:5), assim como não entrarão os injustos, os adúlteros, os efeminados, os sodomitas, os ladrões, os bêbados e os maldizentes (1Co 6:1-10).

Riqueza e favor de Deus

Como já foi dito, desde o tempo de Moisés existia na imaginação dos hebreus a crença de que a riqueza estava relacionada ao favor de Deus. A Lei associava bênçãos à obediência e maldições à desobediência. Entre outras promessas de provisão divina, Moisés disse ao povo em Dt 28:8 que “O Senhor determinará que a bênção esteja nos teus celeiros e em tudo o que colocares a mão; e te abençoará na terra que te dá o Senhor, teu Deus.” (grifo nosso). Em contrapartida, entre diversas maldições, Moisés afirma em Dt 28:29 que o desobediente “Apalparás ao meio-dia, como o cego apalpa nas trevas, e não prosperarás nos teus caminhos; porém somente serás oprimido e roubado todos os teus dias; e ninguém haverá que te salve.” (grifo nosso). Por conclusão óbvia, quando os judeus viam alguém pobre ou doente pensavam que isso era resultado de pecado ou um desfavor de Deus. Por Jesus ser pobre, os fariseus, por exemplo, chegaram a escarnecer quando o Mestre lhes falou sobre a impossibilidade de se servir a Deus e às riquezas ao mesmo tempo:

“13 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas. 14 Os fariseus, que eram avarentos, ouviam tudo isto e o ridicularizavam. 15 Mas Jesus lhes disse: Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece o vosso coração; pois aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus.” (Lc 16:13-15).

Jesus aponta para o interior do homem e não para o seu exterior. Ora, o Mestre veio romper com a mentalidade de se julgar a felicidade e o contentamento humano pelas circunstâncias exteriores, mostrando que é possível a plenitude da satisfação e da bem-aventurança associada ao aspecto interior do homem. Isso, é claro, sem afastar a importância da obediência à vontade de Deus.

Citando Dt 8:3, Jesus resiste à tentação do Diabo e afirma que “[…] não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.” (Mt 4:4). Ao aproximar-se da samaritana, ele ensinou que “aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna.” (Jo 4:14). Logo depois da multiplicação dos pães e dos peixes (Jo 6:1-12), ao perceber que pessoas o estavam procurando por causa da fartura material, repreendeu-os (Jo 6:26) e “declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede.” (Jo 6:35). Também, quando seus discípulos viram um cego de nascença, perguntaram ao Mestre: “quem pecou, ele ou seus pais?” Ao que Jesus respondeu: “Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus.” (Jo 9:3).

Em todos esses exemplos Jesus mostrou-se fiel à palavra de Deus, pleno de vida e capaz de saciar a sede e a fome da humanidade. Referia-se à fartura da alma. Além disso, mostrou que nem mesmo a aparente miséria humana pode ser associada ao pecado quando o homem faz parte de um propósito para trazer a glória de Deus como testemunho ao mundo. Enquanto o pobre cego, incluído em um plano divino, estava exultante, o jovem saudável e rico estava se afastando tristemente da sua salvação (Mt 19:16-22).

Pobreza e favor de Deus

Em momento algum Jesus afirma que segui-lo seria fácil. O caminho para a vida é estreito (Mt 7:13-14), todos estamos advertidos. Também, Jesus alertou que no mundo teríamos aflições (Jo 16:33), mas encorajou-nos a não desanimar. Até quando falou das recompensas terrenas, esclareceu que haveria perseguições (Mc 10:29-30). Segui-lo, implicava em tomar a cruz e seguir em direção ao sacrifício (Lc 9:23). Além de tudo isso, Jesus nos mostraria com sua própria vida que a pobreza  não era nenhum demérito, pois ele mesmo havia escolhido a pobreza (2Co 8:9)para nos transmitir diversas lições, inclusive sobre a possibilidade de ser pobre e feliz.

 

“20 Então, olhando ele para os seus discípulos, disse-lhes: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus. 21 Bem-aventurados vós, os que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir. 22 Bem-aventurados sois quando os homens vos odiarem e quando vos expulsarem da sua companhia, vos injuriarem e rejeitarem o vosso nome como indigno, por causa do Filho do Homem. 23 Regozijai-vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso galardão no céu; pois dessa forma procederam seus pais com os profetas.” (Lc 6:20-23).

Jesus consola os pobres. Não os ensina a se revoltarem contra a pobreza ou contra as desventuras da vida enquanto estivessem ao seu serviço. Antes, garante que tudo isso é passageiro. Há uma eternidade para se viver. Trocar “um momento” por “uma eternidade” é uma verdadeira tolice. Jesus estava falando para os pobres sofredores do seu tempo e para todos os seus que viessem depois dele: olhem para mim, vejam o meu exemplo e sigam os meus passos:

“25 Quem ama a sua vida perde-a; mas aquele que odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna. 26 Se alguém me serve, siga-me, e, onde eu estou, ali estará também o meu servo. E, se alguém me servir, o Pai o honrará. 27 Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta hora. 28 Pai, glorifica o teu nome. Então, veio uma voz do céu: Eu já o glorifiquei e ainda o glorificarei.” (Jo 12:23-28).

“aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou.” (1Jo 2:6).

Jesus, em momento de dor e angústia da alma não reclama por sua missão ser muito difícil nesta terra. Não se rebela e nem se desespera. Antes pede ao Pai que a sua vida o glorifique. Então o Todo Poderoso se manifesta do céu para que todos saibam que ele está e sempre estará no controle.

Portanto, não há melhor exemplo do que o do próprio Filho de Deus que nos ensinou que a pobreza e a desventura do crente não são demérito, castigo ou fraqueza, mas circunstâncias pelas quais muitos já passaram e outros ainda terão que passar. O fato é que o mundo é um lugar perigoso, cheio de malignidade e não é acolhedor para quem não se rende às suas concupiscências. Mas, como Jesus sempre soube que todas essas coisas são passageiras, diz ao pobre, ao que tem fome e ao que chora: “bem aventurados sois vós”! Em outras palavras, não se entristeçam por causa da pobreza!

Ai dos ricos

Na passagem das bem-aventuranças (Mt 5:3-12), Jesus não se refere ao dinheiro, à abundância material ou à prosperidade como fontes da felicidade. Na mesma linha, no evangelho de Lucas, o Mestre é bastante incisivo em nos mostrar que a riqueza não é sinal de vitória ou garantia de que alguém encontrou o favor de Deus. Ao contrário, o Mestre lamenta (ai) por alguns estarem nessa condição, chegando a afirmar que dificilmente esses conseguirão entrar no reino de Deus. Disse Jesus: “Mas ai de vós, os ricos! Porque tendes a vossa consolação” (Lc 6:24).

Em nossa mentalidade terrena, dizemos: “coitado do pobre!”. Mas, o Mestre diz diferente: “coitado do rico!”. O fato é que o pobre padece necessidades, humilhações e frustrações nesta vida, mas pode se consolar com as palavras de Jesus de que um dia tudo isso passará e que ele pode esperar por um tempo de plena satisfação no reino dos céus, onde não haverá mais choro, nem pranto nem dor (Mt 5:4; Ap 21:3-4). Entretanto, o rico, tem poucos motivos para ansiar pela vida eterna, uma vez que considera sua vida muito boa aqui, bem acima da média das demais pessoas (Lc 12:15-21). Quando o rico fica triste, ele não busca consolo no reino dos céus. Antes, diz: “eu não tenho motivos para estar assim, pois eu tenho tudo que alguém pode desejar”. Desse modo, como disse Jesus, seu consolo está em sua riqueza.

Ai dos ricos! Ser rico e não amar como Jesus mandou só aumenta sua condenação. Jesus já sabia que muitos ricos não saberiam ser ricos e discípulos ao mesmo tempo. Ora, ser rico e discípulo implica em perdas e não em ganhos. Na medida em que o discípulo tem que praticar o amor, buscando o interesse do outro, se for rico terá muito mais a dar do que a receber[3]. Mas, a grande maioria dos ricos que conhecemos não pratica a generosidade. Se procurarmos em nossas memórias, veremos que a maioria deles tem extrema dificuldade em dar alguma coisa para alguém. Muitos sequer conseguem repartir 10% dos seus ganhos com a igreja. Outros tantos, quando são generosos em dízimos e ofertas na verdade estão visando ao aumento de suas posses. Fazem isso para que as janelas dos céus se abram sobre suas cabeças e eles tenham cada vez mais. Ou seja, a motivação do dar não é o amor, mas suas próprias cobiças.

Ai dos ricos!

A promessa: “cem vezes mais”

Ante os desdobramentos da mensagem dirigida ao jovem rico, Pedro indaga o Mestre quanto à situação dos discípulos que haviam deixado tudo para segui-lo. Como seriam recompensados? Jesus, de modo coerente com seus ensinamentos e com seus próprios exemplos, não negocia com eles, não faz promessas de prosperidade material e não demonstra nenhum receio de que eles o abandonassem. Em sua resposta novamente aponta para o céu e não para a terra, senão vejamos:

“27 Então, lhe falou Pedro: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos; que será, pois, de nós? 28 Jesus lhes respondeu: Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. 29 E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe [ou mulher], ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais e herdará a vida eterna. 30 Porém muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros.” (Mt 19:27-30, grifo nosso).

É preciso muita atenção para não sermos confundidos nessa passagem! Jesus faz questão de deixar claro que os valores eternos e futuros são muito mais valiosos do que qualquer patrimônio terreno. Se alguém hoje deixar alguma coisa por causa dele não estará perdendo, mas investindo para um rendimento muito superior no futuro. Mas, então, Jesus estaria prometendo prosperidade material? Não, absolutamente!

Esse trecho de Mt 19:27-30 deixa muito claro que a multiplicação prometida virá “na regeneração”, quando “o Filho do Homem se assentar no trono da sua glória”, “todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe [ou mulher], ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais e herdará a vida eterna.” Por essa passagem, a promessa de multiplicação (muitas vezes mais) e a herança da vida eterna somente se realizarão quando Jesus estiver assentado no seu trono.

Entretanto, no evangelho de Marcos, há uma promessa de consolo e acolhimento para aqueles que deixassem algo para seguir a Cristo. O texto afirma que para esses a multiplicação viria “já no presente” e na quantidade de “cem vezes”, senão vejamos:

“29 Tornou Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do evangelho, 30 que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e, no mundo por vir, a vida eterna.” (Mc 10:29-30, grifo nosso).

Mas, atenção! O texto não fornece bases coerentes para quem pretende afirmar uma multiplicação material. De modo diverso, trata-se de um consolo para encorajar aqueles que desejassem seguir em frente. Enquanto Mateus aponta para uma recompensa no céu, Marcos aponta para um consolo já nesta vida. Mas, que consolo seria esse? Antes de desvendá-lo, precisamos fazer algumas observações.

Primeiramente, é preciso notar que o consolo prometido sob a forma de multiplicação só incide sobre aquilo que alguém tiver deixado. Ou seja, o simples fato de seguir a Jesus não seria garantia de multiplicação de nada. Por exemplo: se alguém começou a seguir a Jesus e nada deixou, receberá cem vezes nada, que é igual a zero.

Em segundo lugar, devemos notar que a multiplicação não tem significado físico ou material. A leitura do texto deixa isso bem claro. Se alguém deixou seu pai porque ele não quis seguir a Jesus, como essa pessoa seria recompensada? Com cem pais? Isso seria possível do ponto de vista físico ou natural? Evidentemente que não!

Logo, essa passagem de Marcos só é aplicável se a elevarmos ao sentido espiritual e fraternal. Isto é, se alguém deixar o seu pai, porque ele não quis seguir a Jesus, na família de Deus aqui na terra terá muitos irmãos que poderão acolhê-lo e ampará-lo como filho. Ora, se o texto precisa ser espiritualizado para ser aplicável, então as cem casas também devem ser consideradas como famílias que amparem aquele que deixar sua casa por amor a Jesus.

Então, se o evangelho aponta para o céu, qual o propósito de uma promessa de multiplicação? Marcos deixa isso claro. Os crentes em Jesus precisariam se fortalecer com o amparo uns dos outros para suportar a perseguição. Por isso, aquele que, porventura, tiver que deixar seu ambiente de conforto para seguir a Cristo receberá “[…] já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, [juntamente] com perseguições […]” (Mc 10:30).

Em resumo, reunindo as duas passagens sobre a multiplicação, Mt 19:27-30 e Mc 10:29-30, extraímos o seguinte ensinamento de Jesus: se alguém deseja segui-lo, mas está preocupado com suas propriedades, não poderá ser seu discípulo. Por outro lado, quem segui-lo, mesmo perdendo seu conforto natural, será tremendamente recompensado aqui na terra com consolo durante as perseguições e na vinda de Cristo com uma grande vitória.

Seja em Mt 19:27-30 ou em Mc 10:29-30, simplesmente não é possível apoiar qualquer teologia de prosperidade material como promessa para aqueles que se tornam crentes na atualidade.

Não bastasse a impossibilidade de adequação bíblica, há que se notar que, principalmente hoje, os novos seguidores da igreja evangélica contemporânea nada querem deixar para seguir a Jesus.

Então, o dilema do jovem rico permanece. Eu preciso, realmente, perder o que eu mais gosto para seguir a Jesus? Ora, se o meu coração estiver assim tão preso a esta terra, provavelmente a única resposta possível é a mesma que Jesus deu no passado ao jovem rico: “vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me”. Ou seja, enquanto não nos desligarmos da prisão do materialismo, das vaidades humanas, da ganância e do egoísmo, não conseguiremos seguir a Jesus. No máximo, poderemos seguir alguma religião que não se importe com essas coisas. Mas, a Jesus, não!

Os dois senhores: Deus e as riquezas

Sabendo o quanto o coração das pessoas é vaidoso e está inclinado a valorizar e a amar o dinheiro, o Mestre as confrontavam, mostrando-lhes seus pecados, suas fraquezas e o quanto seus discursos estavam distantes de suas práticas. Em alguns casos, a intervenção de Jesus parece radical, como quando tratou da questão material e financeira no sermão do monte, senão vejamos:

“24 Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt 6:24, grifo nosso).

Para Jesus, não há meio termo. Se não nos deixarmos dominar pela mente de Cristo (misericordiosa, generosa, amorosa, mas avessa ao materialismo) seremos dominados pelas riquezas (ou Mamom), cujas bases são o materialismo, o egoísmo, a avareza, a vaidade e a ganância (Cl 3:5; Ef 5:5). Segundo o Mestre, estamos diante de uma incompatibilidade absoluta: é impossível que alguém sirva a Mamom e a Deus ao mesmo tempo. É como luz e trevas – a presença da luz significa a ausência de trevas, e vice versa. Por isso, quando notamos alguém avarento e ganancioso, não temos dúvidas: é um servo de Mamom. Ora, é impossível que um servo de Mamom seja um seguidor de Jesus. Ele pode até ser seguidor de uma religião, ou, quem sabe, ser o próprio líder dela, mas certamente não segue a Jesus, por absoluta incompatibilidade de princípios.

Loucos! Materialistas e avarentos!

Se, por um lado, Jesus afirma que o suprimento das necessidades básicas do homem já lhe é suficiente, por outro, o Mestre assegura que o entesouramento na terra é perigoso quando não se é rico para com Deus, o autor da própria vida.

“13 Nesse ponto, um homem que estava no meio da multidão lhe falou: Mestre, ordena a meu irmão que reparta comigo a herança. 14 Mas Jesus lhe respondeu: Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós? 15 Então, lhes recomendou: Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui. 16 E lhes proferiu ainda uma parábola, dizendo: O campo de um homem rico produziu com abundância. 17 E arrazoava consigo mesmo, dizendo: Que farei, pois não tenho onde recolher os meus frutos? 18 E disse: Farei isto: destruirei os meus celeiros, reconstruí-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens. 19 Então, direi à minha alma: tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e regala-te. 20 Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? 21 Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus.” (Lc 12:13-21).

Interessante notar que o ensino de Jesus sobre a avareza (retenção de dinheiro/bens de modo egoísta e mesquinho) foi trazida exatamente quando dois irmãos procuram o Mestre para tratar de seus interesses materiais. Por certo, um dos dois poderia estar certo ou, quem sabe, cada um pudesse ter sua parcela de razão. Entretanto, o Mestre afasta completamente a possibilidade de cuidar de interesses pessoais materiais mesquinhos. Seu propósito, sua obra e seu ministério era, como já dissemos, apontar o caminho do céu e, aproveitando-se daquela situação Jesus reafirma a importância de se ajuntar tesouro no céu. Jesus deixa bem claro aos dois irmãos: não me busquem para satisfazer seus interesses pessoais, materiais e mesquinhos!

Portanto, fica o alerta para os que hoje estão correndo para as igrejas em busca de satisfação de suas ansiedades terrenas. Jesus não veio para isso, mas para apontar o caminho da salvação da alma e, nesse sentido, foi ungido para “[…] evangelizar os pobres; […] proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos” (Lc 4:18).

Todas as coisas serão acrescentadas?

É comum ouvirmos pregadores dizendo que Jesus nos prometeu acrescentar “todas as coisas”, dando um sentido de satisfação de todos os nossos sonhos materiais, irrestritamente. O limite seria, então, nossa capacidade de sonhar e de pedir. Tal pensamento, entretanto, mostra-se incoerente com os princípios ensinados por Jesus e também não confere com os exemplos de sua própria vida e de seu ministério. O Mestre, como já vimos, aponta em direção contrária: o da perda material para segui-lo. Certamente, o jovem rico da passagem citada anteriormente (Mt 19:16-22) teve que enfrentar um dilema: seria razoável seguir a Cristo e perder seu patrimônio? Jesus tinha o direito de esperar isso de alguém? Qual seria a recompensa para tamanho sacrifício?

Precisamos, então, observar melhor o texto bíblico para ver se Jesus foi incoerente. O contexto é o seguinte: após dizer que ninguém poderia “servir a Deus e às riquezas” (Mt 6:24), Jesus, sabendo que segui-lo implicaria até mesmo em perseguições e perdas, trouxe aos seus ouvintes uma palavra de consolo e encorajamento. Em outras palavras, o Mestre afirmou que, ainda que alguém viesse a perder algo, seria suprido por Deus, de modo a ter o suficiente para suas necessidades básicas:

“25 Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes? 26 Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? (Mt 6:25-26, grifo nosso).

Na sequência, em Mt 6:31-33, Jesus reforça essa mesma ideia de amparo aos seus seguidores. Não se nota promessa de riquezas, de bens e ou de prosperidade material. Em vez disso, o Mestre garante acrescentar “estas coisas” básicas: comida, bebida e vestes, senão vejamos:

“31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? 32 Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; 33 buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mt 6:31-33, grifo nosso).

Importante notar que o pronome demonstrativo “estas” deixa evidente quais coisas, precisamente, estariam garantidas. Por isso, mesmo que ampliemos o alcance das palavras do nosso Senhor, no máximo, podemos dizer que Ele nos prometeu o suprimento de nossas necessidades básicas, ainda que hoje tenhamos outras além das citadas. Não se pode dar ao texto uma interpretação que vá além disso.

Vida abundante

Uma vez que Jesus garantiu aos seus discípulos apenas a satisfação de suas necessidades básicas, o que ele quis dizer, então, quando afirmou que veio ao mundo para que tenhamos vida abundante? Sim, o Mestre disse que “O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10:10). Sem entrar no mérito de quem seja o ladrão, o que ele está disposto a fazer, segundo o texto, é roubar, matar e destruir.

Ora, enquanto os verbos roubar e destruir estão associados a questões materiais e físicas, matar só pode se relacionar à vida em si, ou seja, ao fôlego de existência. Pois bem, se o ladrão pode tirar uma vida, Jesus pode dá-la. Mas, quando o Mestre se refere à vida abundante, por certo, está figuradamente referindo-se à vida que não cessa, que vai além da passagem aqui na terra, isto é, a vida eterna da alma, que só ele pode dar.

Jesus não estava associando a vida (existência) à quantidade de bens que alguém pode ter enquanto vive.

Tal entendimento pode ser melhor compreendido quando vemos Jesus afirmar que ele é o “pão da vida” que afasta definitivamente a fome (Jo 6:35) ou como o doador de uma água que jorra para a vida eterna (Jo 4:14). Nestes casos, ninguém tem dúvida de que o Mestre só pode estar falando em um sentido figurado, ou seja, a um pão e a uma água que sacia a fome e a sede da alma, respectivamente.

Portanto, não há como interpretar a referida “vida em abundância” como “vida abundante de bens materiais”. Além de ser forçada e ilógica tal interpretação, vai contra todo o ensinamento, princípios e exemplo de Jesus, o que faria dele um Deus incoerente. E, certamente, isto Ele não é.

A mensagem do evangelho e a riqueza

Jesus não cessa de repetir, insistentemente, as mesmas coisas: “Não deixem que a avareza os impeçam de ajuntar tesouro no céu!”; “Ai dos ricos!”; “Não estejam ansiosos pelas necessidades materiais!”; “Não me procurem por causa do pão que perece!”; “Não me procurem para solucionar suas questões materiais egoístas!”; “Quem quer servir a Deus não pode servir ao dinheiro!”. Agora, mais uma vez, ele toca na questão das riquezas e diz que a “fascinação das riquezas” (amor ao dinheiro) é uma das causas impeditivas para que a semente do evangelho permaneça no coração do homem que recebeu a palavra de Deus.

Jesus conta uma parábola sobre um semeador que saiu lançando suas sementes na terra. Parte das sementes cai à beira do caminho; outra parte cai em solo rochoso; outra parte cai entre espinhos; e outra porção cai em terra boa. Com essa ilustração, Jesus mostra o quanto a palavra da salvação pode ser temporária na vida do homem que a recebe. As sementes que caem entre os espinhos, por exemplo, apesar de germinarem e crescerem, não dão os frutos esperados pelo semeador. Por quê? Porque os espinhos sufocam a planta. Assim, essa planta ocupa a terra com sua “vida aparente” (raiz, caule e folhas verdes), mas não cumpre o propósito daquele que a semeou.

“22 O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados do mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera.” (Mt 13:22, grifo nosso).

Então, na explicação da parábola pelo próprio Mestre, o que vêm a ser os espinhos que impedem que o homem evangelizado e aparentemente cheio de vida produza o fruto esperado por Deus? A fascinação das riquezas e os cuidados do mundo!

Todo homem que recebe a palavra da salvação com um coração espinhoso, fascinado por riquezas, ganancioso e avarento, apesar da sinceridade com que possa ter recebido a mensagem da salvação, no caminho do seu crescimento está fadado a ser um crente que não cumpre o propósito divino nesta terra.

Assim são as pessoas que recebem o evangelho e pensam que as coisas mundanas, os interesses materiais e egoístas fazem parte de seu ambiente natural depois da germinação da palavra de Deus em seus corações. Não! Se alguém tem este coração, precisa de um coração novo, livre dos arbustos espinhosos. Se não houver essa mudança de base para a germinação e para o crescimento, não haverá frutos. E sem frutos não nos identificamos com Cristo.

E qual fruto Deus espera que o crente produza? O fruto do Espírito Santo, que é “22 […] amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, 23 mansidão, domínio próprio. […]” (Gl 5:22-23). Muita atenção! Logo o primeiro da lista é o amor, que na descrição do próprio apóstolo Paulo “[…] não procura os seus interesses […]” (1Co 13:5). Portanto, a todo coração que está encantado com a possibilidade de usar o evangelho como pretexto para prosperar, ficar famoso e satisfazer suas paixões e vaidades pessoais, fica mais um alerta: “Não se deixem enredar pela vontade de serem ricos! Pois, “[…] os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição […] foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão […] Toma posse da vida eterna […]” (1Tm 6:9-12).

Autoridade e glória

Quem não gostaria de exercer autoridade sobre os homens deste mundo e desfrutar de toda a glória disponível aos governantes? Ora, autoridade satisfaz a vaidade de dar ordens e de não ter que se sujeitar a ninguém. Sem dúvida, quem tem autoridade é honrado e não humilhado. Além disso, a glória que envolve os governantes é percebida e invejada por todos. Luxo, bajulação, roupas caríssimas, carros espetaculares, imóveis suntuosos, viagens maravilhosas, hotéis requintados, joias preciosas etc. Quem não desejaria ter essas coisas? Jesus! O Nazareno dispensou tudo isso para viver humildemente, sem posses nem luxo.

“5 E, elevando-o, mostrou-lhe, num momento, todos os reinos do mundo. 6 Disse-lhe o diabo: Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos, porque ela me foi entregue, e a dou a quem eu quiser. 7 Portanto, se prostrado me adorares, toda será tua. 8 Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele darás culto.” (Lc 4:5-8, grifo nosso).

Por que Jesus rejeitou a vida que a nossa natureza terrena gostaria de ter? Por que preferiu a pobreza e a aceitou resignadamente? Por que nada exigiu do Pai em suas orações? Por que não invocou seus direitos “legais” de filho? Por que não lembrou seu Pai que os patriarcas foram ricos e abençoados? Por que não reivindicou as promessas de bênçãos e de prosperidade da Lei de Moisés? Por que não quis ter riquezas e conforto dos grandes reis de Israel, a exemplo de Davi e Salomão?

Simples! Jesus veio salvar o homem que Satanás havia prendido pela paixão materialista. O príncipe das trevas estava controlando a humanidade aproveitando-se da ganância do homem. Sua principal estratégia era exatamente oferecer ao homem a “satisfação de suas vaidades e de sua ganância em troca de adoração”. Como Jesus mesmo disse, uma vez que alguém se dispõe a servir a Mamom, perde toda a condição de servir a Deus.

Sabendo disso, e com o firme propósito de libertar o homem das garras de Satanás, Jesus vem ao mundo para livrá-lo do amor ao dinheiro. Pois, mudando completamente a razão da vida do homem, ele mudaria seus objetivos, seus anseios e suas atitudes. A partir do momento que alguém deixa de ter a vida material como a razão de sua existência, livra-se do principal laço de Satanás para prendê-lo.

Naturalmente, nossa visão se fixa ao lugar que queremos chegar para, assim, guiarmos nossos passos. Logo, o homem que visa ao céu não está com seus olhos fixos na terra. Por isso, o Mestre veio ao mundo pobre, viveu pobre e morreu pobre. Com sua própria vida, apesar de ser o Rei dos reis, mostrou ao mundo que é possível servir a Deus e não a Mamom. Provou que as tentações de Satanás são resistíveis quando temos o firme propósito de habitar no céu. Vejamos, pois, o que disse Jesus a respeito de sua missão, logo após resistir à tentação do Diabo:

“18 O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos,” (Lc 4:18, grifo nosso).

Observando a obra completa de Jesus, por meio dos evangelhos, notamos a realidade do texto citado. Jesus tanto libertava o homem que estava possesso de espíritos malignos como trazia um ensino poderoso e contundente visando a libertá-lo de suas vaidades, de seu egoísmo, de seu orgulho e, especialmente, do seu amor ao dinheiro, que é a raiz de todos os males (1Tm 6:10).

Riqueza, não é algo bom nem ruim em si mesma. Não é ela que escraviza o homem e o leva a produzir e a sofrer toda sorte de males. O que prende o homem ao mal é o amor ao dinheiro, revelado em sua ganância, em suas atitudes para obter mais dinheiro e em seu desejo pela glória, pela autoridade e pelos prazeres que dele advém. Por isso, quem está obcecado por ganhar mais e mais dinheiro, desprendendo-se dos valores, princípios e exemplos deixados por Jesus, certamente necessita de libertação, pois é um escravo de Satanás.

Por fim, a boa nova é que Jesus tem poder e autoridade para expulsar demônios e para libertar qualquer pessoa que esteja presa a Satanás, servindo a Mamom, em razão da atração pelo desejo da glória dos reinos deste mundo.

A grande missão: evangelizar sem dinheiro.

Pensar que modernamente a evangelização é mais difícil e que necessita de mais recursos do que no tempo de Jesus é um equívoco. O fato é que naquele tempo a missão de apresentar a Cristo era tão custosa como é hoje. Havia limitações físicas, financeiras, resistências sociais, culturais e espirituais tanto quanto há hoje.

Sendo assim, por que parece que hoje o dinheiro é o motor da evangelização? Por que temos a impressão de que sem dinheiro não podemos realizar a nossa missão? Qual a razão de tantos apelos por dinheiro, como se dele dependesse toda a nossa ação evangelística? Afinal, a missão de levar a mensagem de Cristo só pode ser cumprida se tivermos muitos recursos materiais? Por que se utiliza a evangelização como pretexto para se recolher dinheiro dos fiéis?

 

Não há como responder a essas perguntas sem enfrentar o exemplo deixado por Jesus quando enviou seus discípulos para a missão de anunciá-lo. Ao comandar a primeira missão de evangelismo, Jesus coloca em ação os seus ensinamentos. O Mestre sai da teoria e parte para a prática, a fim de demonstrar que é possível, sim, anunciá-lo sem qualquer provisão material.

Para demonstrar que a sua palavra é a expressão da verdade e que sua obra não estaria condicionada à posse de recursos materiais, ele enviou seus discípulos a uma cruzada evangelística sem qualquer reserva de mantimentos, roupas, calçados, bebidas ou dinheiro. Eles teriam que confiar exclusivamente na providência divina. E nós bem sabemos que nenhum deles voltou envergonhado.

“5 A estes doze enviou Jesus, dando-lhes as seguintes instruções: Não tomeis rumo aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; 6 mas, de preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel; 7 e, à medida que seguirdes, pregai que está próximo o reino dos céus. 8 Curai enfermos, ressuscitai mortos, purificai leprosos, expeli demônios; de graça recebestes, de graça dai. 9 Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos; 10 nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento.” (Mt 10:5-10, grifo nosso).

Entretanto, o texto citado traz uma aparente contradição. Ao mesmo tempo que Jesus diz que os discípulos poderiam receber, com dignidade, o sustento enquanto estivessem naquela missão, registrou que eles deveriam entregar de graça o que foram levar. Ou seja, se iriam receber algo em troca, a entrega não seria gratuita.

A aparente contradição se desfaz na medida em que percebemos que o sustento recebido era apenas para suprir o custo da entrega e não o seu pagamento em si.

Jesus não os orientou a recolher ofertas para cumprir a missão recebida, de modo que eles deveriam ser sustentados por aqueles que os recebessem – este era o custo da missão.

Já as curas, as libertações e a mensagem do evangelho (o produto a ser entregue) não tinham preço – eram de graça. Assim, o sustento que os discípulos receberiam não teria relação direta com o que eles levariam ao povo. Se levaram a cura, nada poderia ser recebido em troca dela, pois isso seria considerado lucro e não um simples custeio da missão (alimentação e hospedagem).

Ora, Jesus, mantendo a coerência com os ensinamentos sobre dízimos vistos até aqui, não admitiu que seus discípulos recebessem lucros para cumprirem uma missão em seu nome. No máximo, o missionário poderia ter suas necessidades supridas. Assim ele orientou seus discípulos e assim foi a sua própria vida.

“58 Mas Jesus lhe respondeu: As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” (Lc 9:58).

O comércio no Templo

Ora, se Jesus não admite lucro no exercício de uma missão em seu nome, obviamente, também não admite comércio. E isso ficou bem claro quando ele expulsou os comerciantes do Templo. É bom que se diga que o comércio de animais, mel, azeite e bebidas era até necessário para a realização dos rituais (Dt 14:24-26), mas Jesus não concordou com o comércio que havia se instalado no Templo com o propósito de explorar os homens que estavam ali para prestar seu culto Deus.

“12 Tendo Jesus entrado no templo, expulsou todos os que ali vendiam e compravam; também derribou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas. 13 E disse-lhes: Está escrito: A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a transformais em covil de salteadores.” (Mt 21:12-13, grifo nosso).

Portanto, Jesus não admitiu comércio de elementos imprescindíveis ao culto. Se a ideia era promover o culto, ajudar ou facilitar as coisas para quem vinha de longe apresentar seu sacrifício, ou trazer suas ofertas, os facilitadores não poderiam tirar lucro disso. Os que assim fizeram foram considerados como aproveitadores, dignos da mais dura repreensão do Mestre.

A usura entre irmãos

Ao mesmo tempo que Jesus reprovava a atividade comercial e o lucro a pretexto de missão ou serviço religioso, ele também considerava imprópria a usura entre irmãos e disse que essa era uma prática própria de pecadores gananciosos que emprestavam um tanto para receber outro tanto.

“34 E, se emprestais àqueles de quem esperais receber, qual é a vossa recompensa? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto. […] 35 Amai, porém, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem esperar nenhuma paga; será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. […]” (Lc 6:34-35, grifo nosso).

Portanto, mais uma vez, Jesus deixa claro que o amor é o princípio básico das relações entre irmãos, onde cada um deve procurar atender aos interesses dos outros e não os seus próprios. Dos discípulos espera-se o exercício da piedade (compaixão e misericórdia), da generosidade e do amor. Se essas virtudes estiverem presentes na vida do povo de Deus, certamente será o fim das explorações entre os ditos crentes em Jesus.

“Daí e dar-se-vos-á”

Jesus, no sermão apresentado em Lc 6:17-49, inclui: as bem-aventuranças (Lc 6:20-23); as advertências aos ricos, abastados e famosos (Lc 6:24-26); a ordem para se substituir o desejo de vingança pela sujeição (Lc 6:27-31); a ordem se para fazer o bem especialmente aos inimigos (Lc 6:32-36); a ordem para não julgar outras pessoas antes de olhar para si mesmo (Lc 6:39-42); a advertência para se olhar para os frutos que cada um produz (Lc 6:43-45); e o dever de praticar seus ensinamentos e não de apenas ouvi-los (Lc 6:46-49).

É de se destacar que em nenhum momento Jesus se refere a ofertas financeiras, a dízimos ou mesmo a questões da caridade. Quando Jesus diz “daí e dar-se-vos-á” está tratando de questão do julgamento humano, senão vejamos:

“36 Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai. 37 Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados; 38 dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos darão; porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também.” (Lc 6:37-38, grifo nosso).

De fato, Jesus está afirmando que o retorno daquilo que dirigirmos às outras pessoas poderá ser em maior proporção. “Boa medida” é a tradução de metron kalon, que na Bíblia Viva aparece como “medida cheia” e indica que será usado um saco maior para a devolução. Parafraseando, o Mestre diz: “o julgamento que você sofrerá será maior do que aquele que você fez acerca de outras pessoas – você receberá uma boa medida, recalcada, sacudida e transbordante do mal que você dirigiu a outrem. Certamente, serão generosos em retribuir-lhe o mal”. Por isso, o conselho de Jesus é “faça aos outros como você gostaria que fizessem com você” (Lc 6:31) e “decida perdoar, generosamente, os seus ofensores, se você gostaria de ser perdoado por aqueles que você ofendeu” (Lc 6:37).

A expressão “dai e dar-se-vos-á” está exatamente nesse contexto das relações humanas.

Enfim, todo o contexto de Lc 6:27-42 diz respeito ao relacionamento interpessoal. Mesmo que forçássemos incluir aí um princípio da proporcionalidade ou de “causa e efeito”, estas relações seriam entre homens e não entre Deus e os homens. Não é difícil percebermos que a citada expressão dita por Jesus não teve a menor intenção de ensinar sobre ofertas em dinheiro e retribuição divina com bênçãos financeiras ou prosperidade material. A generosidade desse contexto é a medida da retribuição dos homens.

Por isso, se por um lado devemos ser cuidadosos ao dirigirmos nossos julgamentos aos outros, por outro, devemos ser generosos em oferecer perdão aos nossos ofensores. Se alguém retira a expressão de Jesus de seu contexto, certamente não age de boa-fé e seu fruto não é bom (Lc 6:43-44).

O evangelho e o amor ágape (atitude)

Já no fim do seu ministério, Jesus faz uma relação entre o modo como gastamos nosso dinheiro, bens, saúde e tempo nesta vida. Se por um lado o Mestre garante que as necessidades básicas dos seus discípulos serão supridas, por outro, ele ensina aos que possuem além do básico a entesourar no céu. Como? Orando, jejuando e socorrendo os necessitados, como já estudamos neste mesmo capítulo. Com essas instruções básicas sobre o amor (ágape), Jesus se assegura de que ninguém ficará desamparado. Além disso, o Mestre sabe que, agindo assim, o juízo não apanhará o homem de surpresa.

“31 Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; 32 e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; 33 e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; 34 então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. 35 Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; 36 estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. 37 Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? 38 E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos? 39 E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? 40 O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. 41 Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. 42 Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; 43 sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu, não me vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me. 44 E eles lhe perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso e não te assistimos? 45 Então, lhes responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer. 46 E irão estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna.” (Mt 25:31-46, grifo nosso).

Quando Jesus se refere aos pequeninos nesse texto não está falando de crianças, mas de seus discípulos que o servem, mas neste mundo não são honrados, exaltados ou reconhecidos como grandes homens. Antes, são desprezados, humilhados e considerados como pessoas insignificantes, pequenas. Tanto crentes como não crentes prestarão contas do modo como trataram esses servos do Senhor, desde o tempo da igreja primitiva até hoje. No caso dos crentes que possuem além do básico, a responsabilidade é grande. Na igreja de Cristo há muitas pessoas verdadeiramente necessitadas de amparo, em todos os lugares. Quem os socorre? Para onde vão as altas somas de dinheiro doadas à igreja?

Para pensar: Se um orfanato tivesse 50 crianças passando fome e recebesse uma doação em dinheiro, o que o administrador dessa instituição deveria fazer? Uma reforma e ampliação para acolher mais crianças ou dar de comer aos 50 famintos que ali estão?

Infelizmente, a igreja tem priorizado construir e reformar templos para alcançar mais pessoas antes mesmo de cuidar da necessidade dos que já estão ali. É preciso muita atenção, pois aqui Jesus está falando de juízo e castigo eterno! O julgamento é individual e alcança a todos os que estão vendo, presenciando e se omitindo. Jesus não diz que somente os líderes serão julgados, mas todos os que não socorrem, não visitam, não abrem as portas e não alimentam os necessitados dentro da própria igreja, ou seja, não praticam o amor ágape, que é atitude caridosa.

Ao traduzir o termo “amor” (αγάπη), Vine, Unger e White Júnior (2007, p. 395) inclui a seguinte citação: “O amor cristão, quer exercido para com os irmãos, quer para com os homens em geral, não é um impulso dos sentimentos, nunca flui com as inclinações naturais, nem se gasta somente naqueles por quem se descobre ter um pouco de afinidade. O amor busca o bem-estar de todos (Rm 15:2), e não faz mal a ninguém (Rm 13:8-10); o amor busca a oportunidade de fazer o bem ‘a todos, mas principalmente aos domésticos da fé’ (Gl 6:10). Veja mais detalhes em 1Co 13:1-13 e Cl 3:12-14 (extraído de Notes on Thessalonians, de Hogg e Vine, p. 105).”

Portanto, cada um deve assumir a sua responsabilidade diante de Deus e praticar o amor em seu sentido essencial, a começar pelos domésticos da fé. Corroborando com Jesus, ao tratar do amparo familiar, Paulo advertiu que “se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos da própria casa, tem negado a fé e é pior do que o descrente.” (1Tm 5:8). O fato de outros, ou a própria liderança da igreja, não estarem fazendo o que deve ser feito não nos servirá de desculpa diante de Deus, por não estarmos fazendo a nossa parte. Cada um responderá por si mesmo diante do Senhor.

Jesus ensina a orar

Soberba, arrogância e orgulho são adjetivos que não combinam com os discípulos de Cristo. Se alguém possui tais características e não procura se corrigir é porque não compreendeu o evangelho de Jesus. Há quem, sob o pretexto da fé, ensine o cristão a fazer orações exigindo seus direitos. Além de ser uma atitude presunçosa e arrogante, não há precedentes bíblicos para esse ensino, de modo que pode ser considerado herético. O próprio Mestre, o Filho de Deus, além de dar exemplos com sua própria vida, ensinou-nos que nosso relacionamento com o Pai é sempre em atitude de sujeição e submissão à sua vontade. Jesus nunca se impôs diante do Pai para satisfazer um desejo do seu coração.

O maior exemplo disso foi quando desejou evitar a cruz e “adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e sim como tu queres.” (Mt 26:39, grifo nosso). Apesar de sua própria vontade e de ser um filho amado do Pai, a oração de Jesus é humilde e resignada, aceitando o seu sofrimento, se isso era o desejo de Deus. Tal oração estava plenamente coerente com aquela que Jesus deixou como exemplo quando ensinava seus discípulos na montanha.

“10 venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; 11 o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; 12 e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores;” (Mt 6:10-12, grifo nosso).

Além de ser um exemplo de humildade e sujeição, em relação às necessidades materiais, Jesus se mantém coerente com o que disse sobre o cuidado do Pai com as nossas necessidades básicas. Por isso, em seu exemplo, ensinou seus discípulos a pedir pelo sustento diário do pão e, ainda, admitiu o prejuízo pelo perdão. Evidentemente, para um soberbo, materialista e avarento, essa oração não consegue ser praticada, pois ele exige o que acha que tem direito de Deus, é ganancioso por riquezas, além de nunca admitir prejuízo. Se alguém lhe deve e não paga, enfrentará o tribunal.

Portanto, mais uma vez, Jesus deixa claro que, o comportamento esperado de seus discípulos é a humildade diante do Pai, a sujeição à vontade de Deus, o contentamento mesmo com o pouco e o combate ao materialismo avarento.

 

CAPÍTULO 8

O PERÍODO DA GRAÇA

Jesus morreu e ressuscitou, aleluia! A Lei foi consumada na cruz e um novo e vivo caminho se abriu para o homem (Hb 10:19-21), especialmente para os gentios (Gl 3:13-14). O pecador, agora, é perdoado e justificado pela fé e não mais pela Lei (Rm 3:28; 6:14; 11:6). Não há preço a ser pago, não há troca a se fazer, não há ritual a se cumprir (Ef 2:4-9). Jesus pagou o preço, entregou sua vida no lugar do pecador e cumpriu o rito da Lei como o cordeiro que tira o pecado do mundo (Jo 1:29). Os apóstolos, testemunhas do ministério do Messias, começaram a anunciar o evangelho da salvação pela graça (At 20:24) e a igreja despontou como Corpo de Cristo vinculado à graça e não à Lei (Rm 7:4).

Após, inúmeras experiências diversas, um livro narrando os primeiros anos da igreja foi escrito por Lucas[4], o médico (At 1:1), e desde o ano 50 d.C. um conjunto doutrinário foi se formando a partir das cartas que os apóstolos escreviam a algumas pessoas e às igrejas para tratar dos problemas que surgiam (1Co 11:18) e edificá-las (Ef 4:11-12), sempre com o auxílio do Espírito Santo (1Ts 1:5).

E é exatamente com base nos livros e cartas que compuseram o conjunto doutrinário utilizado para a estruturação da igreja é que pretendemos atestar sua plena sintonia com os ensinamentos de Jesus acerca das questões que envolvem dinheiro, dízimos e ofertas. Sabemos que a história relatada pelos evangelhos (vida e obra de Jesus) transcorreu sob a Lei e que o restante do Novo Testamento foi composto no período da graça, mas, por certo, a moral cristã no trato desses assuntos não se alterou desde os escritos dos evangelhos até a última carta dirigida à igreja, embora percebamos que os ensinos dirigidos à igreja moderna têm se afastado dos princípios que fundamentaram a fé cristã em sua origem.

No tocante à contribuição, destacamos, desde logo, a observação de Oliveira (2005, p. 84) que afirma que “o Novo Testamento ignora o dízimo como prática válida na igreja primitiva. […] colocando de lado os preconceitos, temos de examinar a questão em quatro etapas, estudando seguidamente o que nos dizem os Evangelhos, o livro de Atos, as Cartas Gerais e, por fim, as Cartas Paulinas.”

Dinheiro, riqueza, dízimos e ofertas em Atos

No livro de Atos dos Apóstolos, Lucas faz um relato da obra do Espírito Santo na igreja e por meio dela. Depois da ressurreição de Jesus, ele permaneceu na terra por mais 40 dias e ministrou aos seus discípulos. Já abrira a mente deles para que compreendessem a mensagem do Antigo Testamento acerca do Messias e sobre a consumação da Lei, que agora daria lugar à graça. Mas ainda havia outras lições que precisavam ser transmitidas. Nesses 40 dias Jesus mostrou a realidade de sua ressurreição, falou sobre a vinda de seu reino, sobre o poder do Espírito Santo e sobre a certeza de sua volta (At 1:1-11). Agora sim, eles estavam prontos para seguir sozinhos, independentemente das circunstâncias, pois havia muito trabalho pela frente.

 

A condição socioeconômica dos apóstolos

Nenhum cristão tem dúvida quanto à importância do trabalho dos apóstolos para a formação da igreja do Senhor Jesus. Entretanto, logo após a partida de Jesus, eles ainda estavam ligados ao Templo e às horas tradicionais de oração. O relato dos 10 primeiros capítulos de Atos dos Apóstolos nos mostra como ocorreu a transição de Israel para os gentios, do “cristianismo judaico” para a unidade do corpo de Cristo incluindo os gentios.

Para os fins deste estudo, iniciamos apontando a condição socioeconômica dos apóstolos, a exemplo de Pedro e João. Eles não faziam parte das classes sociais mais destacadas da sociedade judaica. Nem mesmo tinham dinheiro para dar esmolas. Eram pescadores, homens simples, iletrados e sem iniciação na cultura grega ou romana daquele tempo (At 4:13). A passagem do mendigo junto à porta Formosa serve bem para mostrar qual riqueza importava aos discípulos de Jesus.

“1 Pedro e João subiam ao templo para a oração da hora nona. 2 Era levado um homem, coxo de nascença, o qual punham diariamente à porta do templo chamada Formosa, para pedir esmola aos que entravam. 3 Vendo ele a Pedro e João, que iam entrar no templo, implorava que lhe dessem uma esmola. 4 Pedro, fitando-o, juntamente com João, disse: Olha para nós. 5 Ele os olhava atentamente, esperando receber alguma coisa. 6 Pedro, porém, lhe disse: Não possuo nem prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, anda! 7 E, tomando-o pela mão direita, o levantou; imediatamente, os seus pés e tornozelos se firmaram; 8 de um salto se pôs em pé, passou a andar e entrou com eles no templo, saltando e louvando a Deus.” (At 3:1-8, grifo nosso).

Por essa passagem, podemos compreender a razão para Paulo ter afirmado que “[…] nosso Senhor Jesus Cristo, […], sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos.” (2Co 8:9). De fato, os apóstolos não estavam preocupados com o fato de serem pobres, de não possuírem as riquezas deste mundo, pois haviam descoberto a maior riqueza que alguém pode possuir e estavam prontos para compartilhar isso com o mundo.

Tudo em comum

Logo no início do livro de Atos dos Apóstolos temos uma importante indicação de que a igreja estava nascendo amparada no princípio do amor, onde os convertidos abandonavam seus interesses pessoais e egoístas e privilegiavam o interesse do outro, porque o amor não busca seus interesses (1Co 13:5). O batismo no Espírito Santo não ficou apenas nas emoções, na festa, na euforia e na novidade do milagre. Foi muito além! Cheios do Espírito Santo, os novos crentes, além de anunciar o evangelho, produziam o seu fruto, prova de que a manifestação do batismo era legítima, sem dúvida! Vejamos o texto:

“31 Tendo eles orado, tremeu o lugar onde estavam reunidos; todos ficaram cheios do Espírito Santo e, com intrepidez, anunciavam a palavra de Deus. 32 Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. 33 Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. 34 Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes 35 e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade. 36 José, a quem os apóstolos deram o sobrenome de Barnabé, que quer dizer filho de exortação, levita, natural de Chipre, 37 como tivesse um campo, vendendo-o, trouxe o preço e o depositou aos pés dos apóstolos.” (At 4:31-37, grifo nosso).

Parece que estamos diante de um texto socialista[5]. A esse respeito, vale destacar que a Reforma Protestante chegou a se confundir após ter acesso ao Novo Testamento traduzido para o alemão. O conhecimento da história da igreja primitiva levou a uma revolução social entre 1522 e 1536. Ante as desmedidas reações camponesas, segundo Durant (2002, p. 326), Lutero lançou da imprensa de Wittenberg, em meados de maio de 1525, um panfleto “Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas de Camponeses” onde rejeitava a suposta garantia das Escrituras para o comunismo, nos seguintes termos:

O Evangelho não torna comuns os bens, exceto no caso daqueles que fazem por espontânea vontade o que os Apóstolos e discípulos fizeram nos Atos IV. Não pediram, como fazem nossos camponeses alucinados em sua fúria, que os bens dos outros – de um Pilatos ou de um Herodes – ficassem em comum, e sim seus próprios bens. Entretanto, nossos camponeses querem comunizar os bens dos outros homens, e que os seus próprios fiquem para eles. Que belos cristãos, esses! Acho que não sobrou nenhum diabo no inferno, transformaram-se todos em camponeses.

Lutero tinha razão. O fato é que os apóstolos estavam utilizando a arrecadação voluntária para suprir a necessidade das pessoas necessitadas. A motivação das doações era o amor, mas não o amor carnal, que se expressa em sentimentos e gestos de ternura ou afeição. O amor bíblico é doação, entrega pessoal, e se expressa com atitudes. O amor bíblico não é aquele que nos faz gostar da companhia das pessoas, mas sem nos envolvermos com seus problemas pessoais. O amor bíblico é altruísta e não egoísta.

Isso é muito importante: a motivação! Ou seja, o que motiva a ação. Ao ler At 4:32-35 ninguém consegue imaginar que os doadores estavam pensando em dar seus bens, colocando seus recursos aos pés dos apóstolos, para receber cem vezes mais, para conter o devorador, para cumprir um preceito da Lei ou mesmo para contribuir com o culto que ainda se realizava no Templo. Não! Absolutamente! A motivação era o amor! Os corações estavam cheios do Espírito Santo e as almas estavam ligadas umas às outras.

Qual o resultado disso? Vejamos:

“12 Muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos dos apóstolos. E costumavam todos reunir-se, de comum acordo, no Pórtico de Salomão. 13 Mas, dos restantes, ninguém ousava ajuntar-se a eles; porém o povo lhes tributava grande admiração. 14 E crescia mais e mais a multidão de crentes, tanto homens como mulheres, agregados ao Senhor,” (At 5:12-14, grifo nosso).

Vamos pontuar os benefícios de um evangelho embasado no amor bíblico:

  1. sinais e prodígios aconteciam;
  2. os crentes gostavam de se reunir rotineiramente;
  3. os não crentes tinham grande admiração pela igreja; e
  4. o número de salvos crescia.

Não precisamos de muito esforço para perceber que a igreja evangélica moderna nada tem a ver com a que primeiro se encheu do Espírito Santo. Ou o Espírito Santo mudou de propósitos ou a igreja mudou.

As operações espirituais de hoje merecem atenção! O enchimento do Espírito moderno até se parece com o bíblico em sua primeira fase – e isso parcialmente. Produz euforia, desmaios, línguas estranhas e barulho, mas o fruto não aparece na vida dos crentes, principalmente o amor. Ao contrário, o egoísmo, a vaidade e a corrida pelos interesses pessoais têm aumentado.

As doações normalmente são motivadas pela ambição, pelo medo de se perder o que se tem ou pelo ensino da obediência cega e não pelo amor. A aplicação dos recursos recebidos também é totalmente diferente da que ficou registrada no livro de Atos dos Apóstolos. A igreja neopentecostal, em especial, dá muita ênfase nas contribuições financeiras, a título de dízimos e ofertas, mas não adota os moldes da Lei e nem os da igreja apostólica, precursora da graça de Jesus.

Por isso, os resultados que temos hoje são bem distintos. Raramente vemos um sinal ou milagre genuíno. Os que testemunhamos geram suspeitas por advirem de processos antibíblicos.

Os membros doam, mas não se doam. Estão sempre reunidos, mas não unidos. Gostam de shows e campanhas (interesses pessoais), que atraem multidões, mas não interagem uns com os outros e não querem se envolver com os problemas alheios. Estão juntos, mas isolados, abandonando, aos poucos, as reuniões de estudo bíblico da igreja.

E a comunidade não cristã? Não tem a menor admiração pela igreja. Ao contrário, enxergam os crentes como pessoas ignorantes, desonestas, ambiciosas, que usam a igreja como um meio para buscar o bem-estar material. Esse é o resultado comum da igreja que não pratica o amor. Ao que parece, não é o número de salvos que tem crescido, mas o número de pessoas ambiciosas com títulos de evangélicos.

Ananias e Safira

Na gênese da igreja, os primeiros crentes praticaram o amor e a fé e isso afetou a relação deles com o dinheiro e com as suas riquezas, mas não do modo que muitos querem ser afetados hoje. Alguém poderia dizer: “mas, naquele tempo as coisas eram diferentes!” Sim, mas o evangelho é o mesmo, transcultural, e os padrões morais de Deus não mudaram, tampouco os princípios apresentados por Jesus. É importante reconhecer que o padrão moral de Deus não se sujeita às variações culturais de tempo e de lugar. É estável e permanente. Por isso, para deixar bem claro quais eram os valores da igreja recém-nascida, Deus não poupou Ananias e Safira.

Desde o tempo da Lei, o código moral de Deus é contra a mentira (Dt 19:16-19). Isso não mudou no ministério de Jesus (Mt 5:37) e precisava ficar bem claro para a igreja desde a sua gênese. O Espírito Santo queria mostrar que a igreja não poderia ter um padrão moral contaminado nas questões que envolvessem dinheiro, bens e riquezas. Há muitos crentes que possuem um comportamento irrepreensível em todas as coisas, mas quando se trata de dinheiro, somente Deus sabe como anda seus corações. Vejamos um exemplo bíblico registrado no livro de Atos dos Apóstolos:

“3 Então, disse Pedro: Ananias, por que encheu Satanás teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, reservando parte do valor do campo? […] 8 Então, Pedro, dirigindo-se a ela, perguntou-lhe: Dize-me, vendestes por tanto aquela terra? Ela respondeu: Sim, por tanto. 9 Tornou-lhe Pedro: Por que entrastes em acordo para tentar o Espírito do Senhor?” (At 5:3-9).

Aparentemente, o casal, queria estar integrado à igreja e tinha certa aproximação com os apóstolos, que os conheciam pelo nome. O fato é que eles poderiam ter muitas virtudes, mas o amor ao dinheiro os levou a pecar contra o Espírito de Deus. Há quem afirme que a causa da condenação não foi a oferta reduzida, mas a mentira. Isto é certo, mas por trás da mentira estava a sua motivação: o amor ao dinheiro. Não fosse o apego oculto ao dinheiro, certamente eles não teriam mentido.

Ananias e Safira fizeram o que hoje ninguém faz: dar a metade de seus bens para a igreja. É bom destacar que eles não foram (aliás, ninguém era) obrigados a vender a propriedade e nem a dar o dinheiro à igreja, mas fizeram isso voluntariamente. Pedro deixa isso claro quando disse: “Enquanto o possuías, não era teu? e vendido, não estava o preço em teu poder?” (At 5:4).

Como se pode notar, apesar do casal ter praticado um ato exteriormente nobre, foi severamente rejeitado por Deus, que viu o engano que permeava seus corações. Eles queriam ser admirados por um ato altruísta, mas não queriam ficar sem o dinheiro. Por isso, devemos prestar muita atenção na motivação dos nossos corações e no modo como nos relacionamos com o dinheiro. Mesmo quando alguém dá dízimos em dinheiro e ofertas financeiras, caso haja em seus corações uma motivação errada (vaidade, ganância ou medo), seu esforço, além de ser vão, é condenável. O imediato julgamento de Ananias e Safira, certamente, teve o propósito de gerar temor nos corações (At 5:11).

Enfim, para nós, fica o alerta. Ainda que o pecado de alguns não seja punido imediatamente, como foi naquele caso, temos que saber que um dia nos apresentaremos diante daquele que nos julga segundo a moral bíblica e não segundo a nossa moral ou cultura (Ap 20:11-13).

Se o evangelho não mudou e se os padrões morais de Deus não mudaram, o amor e a generosidade ainda têm de ser a motivação das nossas contribuições.

A assistência aos necessitados

Como vimos, desde a gênese da igreja, havia uma preocupação com os necessitados. Havia um cuidado diário com as pessoas que não tinham o que comer. Tanto a pregação do evangelho como a assistência material caminhavam juntas e, nesse trabalho não cabia qualquer tipo de discriminação.

“1 Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária. 2 Então, os doze convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. 3 Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço;” (At 6:1-3, grifo nosso)

O fato dos helenistas estarem sendo esquecidos na distribuição diária gerou uma tensão. Estaria a igreja discriminando pessoas? A sabedoria dos apóstolos estava sempre disponível a colocar as coisas nos seus devidos lugares. Eles não negaram o problema. Também, não deram desculpas, afirmando que estavam muito envolvidos na pregação. O que eles fizeram foi reconhecer o problema e apresentar uma solução que mostrasse o desejo de que todos fossem igualmente atendidos. Para tanto, decidiram melhorar a organização dos trabalhos e definir responsabilidades escolhendo uma liderança capacitada para que tanto o cuidado com os necessitados como a pregação do evangelho prosseguissem sem que uma coisa prejudicasse a outra.

Portanto, o que se observa nesta passagem é que a igreja preocupava-se com a assistência aos necessitados[6] tanto quanto se preocupava com a pregação do evangelho. Não houve priorização, mas distribuição de responsabilidades e separação de pessoas espirituais, sábias e honestas para assumir aquela importante tarefa e, ao mesmo tempo, erradicar qualquer discriminação, contenda ou murmuração no seio da igreja.

O dinheiro e o dom de Deus: o exemplo de Simão

De modo bem linear, notamos que o livro de Atos dos Apóstolos nos mostra que o dinheiro não era a motivação da evangelização. No primeiro exemplo (tudo em comum), podemos notar que as riquezas serviram à causa da distribuição para provisão dos necessitados e não à causa da evangelização em si. Os sinais aconteciam e o número de crentes crescia como consequência da pregação e da prática do amor bíblico. Ou seja, o motor da evangelização não era o dinheiro, mas o amor (ágape) e a pregação.

No segundo exemplo (Ananias e Safira), é possível perceber que, se alguém participa da causa do evangelho, não pode ser apegado ao dinheiro. No exemplo a seguir, veremos que a liderança da igreja não pode ceder à tentação de trocar coisas espirituais por dinheiro, sob qualquer pretexto.

“18 Vendo, porém, Simão que, pelo fato de imporem os apóstolos as mãos, era concedido o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro, 19 propondo: Concedei-me também a mim este poder, para que aquele sobre quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo. 20 Pedro, porém, lhe respondeu: O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois julgaste adquirir, por meio dele, o dom de Deus. 21 Não tens parte nem sorte neste ministério, porque o teu coração não é reto diante de Deus. 22 Arrepende-te, pois, da tua maldade e roga ao Senhor; talvez te seja perdoado o intento do coração;” (Atos 8:18-22, grifo nosso).

Simão quer poder! Para quê? Para alimentar sua vaidade. Mais uma vez a motivação está errada. Ele não está pensando nos outros, mas em si mesmo. Desejar ser um instrumento da manifestação do poder de Deus é algo bom, desde que a motivação seja beneficiar o outro e não a si próprio. Essa é a regra do amor (ágape). A partir do momento que alguém almeja tirar proveito pessoal das coisas espirituais, seja lucro, fama, conforto ou privilégios, está seguindo o exemplo de Simão e merece ouvir a mesma repreensão: “o teu coração não é reto diante de Deus, arrepende-te da tua maldade!”

Mas, a passagem citada traz outro importante exemplo. Nós já sabemos que havia inúmeros necessitados na igreja e que a tarefa da distribuição de doações era muito importante. Quanto mais dinheiro, mais pessoas poderiam ser supridas. Entretanto, mesmo diante de grandes necessidades financeiras para a realização daquela obra, isso não foi razão suficiente para que Pedro aceitasse dinheiro de alguém cuja motivação do coração era a vaidade, o egoísmo e a exploração das coisas espirituais. Pedro mantém-se coerente com os valores morais de Deus e não negocia. Também, não deu tratamento diferenciado a Simão por ele ter dinheiro.

Portanto, há duas coisas que merecem destaque. Primeiro, notamos que desejar ser um instrumento nas mãos de Deus é algo bom, desde que a motivação seja o amor (ágape, que visa ao interesse alheiro e não o próprio). Em segundo lugar, aprendemos com Pedro que produtos espirituais não podem ser objeto de negócio financeiro. O apelo por dinheiro na igreja não se justifica nem mesmo sob o argumento de que a “Casa de Deus” está necessitada e que precisa de recursos para realizar seus projetos e expandir o evangelho, como se fosse impossível cumprir a missão deixada por Jesus sem dinheiro.

Dar é melhor que receber: o ministério e a cobiça

Paulo, ao perceber que se aproximava o fim de seu ministério, estando em Mileto, mandou chamar os presbíteros da igreja de Éfeso para uma reunião com ele. O assunto era o ministério pastoral e Paulo apresentando seu próprio comportamento se coloca como um exemplo a ser seguido. Disse que serviu a Deus com humildade, suportou provações, anunciou o evangelho e não deixou de ser sincero com todo o grupo de pastores, sempre lhes falando a verdade, publicamente e em particular.

“17 De Mileto, mandou a Éfeso chamar os presbíteros da igreja. 18 E, quando se encontraram com ele, disse-lhes: Vós bem sabeis como foi que me conduzi entre vós em todo o tempo, desde o primeiro dia em que entrei na Ásia, 19 servindo ao Senhor com toda a humildade, lágrimas e provações que, pelas ciladas dos judeus, me sobrevieram, 20 jamais deixando de vos anunciar coisa alguma proveitosa e de vo-la ensinar publicamente e também de casa em casa, 21 testificando tanto a judeus como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo. […] 26 Portanto, eu vos protesto, no dia de hoje, que estou limpo do sangue de todos; 27 porque jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus. 28 Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue.” (At 20:17-28, grifo nosso).

Naquela oportunidade, Paulo os adverte profetizando que depois de sua partida surgiriam muitos pastores infiltrados entre eles com propósitos pessoais, egoístas e gananciosos, explorando a igreja em vez de cuidar dela. Figuradamente, ele disse que esses pastores agiriam como verdadeiros lobos famintos e que devorariam as ovelhas. O conselho de Paulo é que aquele grupo de pastores estivesse vigilante e, novamente, apresenta o seu exemplo, especialmente na questão financeira e material:

“29 Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. 30 E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles. 31 Portanto, vigiai, lembrando-vos de que, por três anos, noite e dia, não cessei de admoestar, com lágrimas, a cada um. 32 Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados. 33 De ninguém cobicei prata, nem ouro, nem vestes; 34 vós mesmos sabeis que estas mãos serviram para o que me era necessário a mim e aos que estavam comigo. 35 Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é mister socorrer os necessitados e recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber. 36 Tendo dito estas coisas, ajoelhando-se, orou com todos eles.” (At 20:29-36, grifo nosso).

 

Então, qual era o exemplo de Paulo aos pastores? Agir sem cobiça pessoal. Olhar para as pessoas pensando no que elas precisam receber e não no que podem oferecer. Trabalhar pela igreja de modo desinteressado e, preferencialmente, às próprias custas, revelando o amor no seu exato sentido: dar é melhor que receber.

Curiosamente, a mensagem que estimula os pastores a se entregarem pelo rebanho, às suas próprias custas, é utilizada para explorar a igreja.

Dar é melhor que receber: muitos pastores usam esse texto bíblico para estimular a igreja a dar seus recursos ao ministério, enquanto o exemplo de Paulo é outro. Paulo dirige essa mensagem aos pastores. Eles é que deveriam dar às pessoas sem esperar receber nada delas.

O fato é que esta mensagem hoje está pervertida, interpretada em sentido oposto ao originalmente apresentado por Paulo. Nesse particular, cumpre-se a profecia de Paulo quando disse que se levantariam pastores falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos e explorar a igreja. Quais as características dos lobos vorazes? Segundo o texto de Atos, são pastores que arrastam seguidores enquanto distorcem a palavra de Deus para tirar proveito pessoal dos membros da igreja, cobiçando riquezas e vivendo exclusivamente às custas dela.

Não é demais lembrar que o exemplo de Paulo mostra o contraste entre o pastor e o lobo. O apóstolo poderia facilmente mostrar às pessoas a necessidade de contribuições para o seu ministério, alardeando aos ouvintes sobre a importância e a exclusividade do seu trabalho. Ele poderia facilmente atrair colaboradores financeiros sob o argumento de que ninguém era mais competente para fazer o que ele estava fazendo. E, aproveitando-se das ofertas, poderia viver regaladamente sem ter que trabalhar para o seu sustento próprio e o dos seus acompanhantes no trabalho missionário. Mas, ele não fez assim. Antes, preferiu entregar-se à causa, dando sem nada pedir em troca e treinando seus discípulos para fazer o mesmo que ele estava fazendo.

Portanto, lobos devoradores, gostam de viver às custas da igreja e aplicam o “mais bem-aventurado é dar que receber” em sentido invertido, uma vez que tal expressão, na verdade, foi aplicada por Paulo para estimular os pastores a darem seus recursos pessoais para socorrer os necessitados e não para estimular os membros da igreja a darem seus recursos ao ministério.

Dízimos e ofertas

Além das doações para socorro aos necessitados, não há no livro de Atos dos Apóstolos nenhuma menção ao recolhimento de dízimos ou de ofertas financeiras para a expansão do trabalho missionário cristão ou mesmo para a manutenção de locais de culto.

Quanto à questão específica do dízimo, Oliveira (2005, p. 88-89) faz assertiva que vale a pena transcrever:

“Novamente, em todo o livro dos Atos, não existe uma única menção ao dízimo. Creio que podemos fazer o seguinte raciocínio, que me parece totalmente lógico, equilibrado e de uma simplicidade cartesiana. Se a doutrina do dízimo fosse uma prática corrente na Igreja primitiva (a Igreja do livro dos Atos e das cartas), seria normal esperar que nessa comunidade houvesse os mesmos problemas que nós temos hoje, isto é: a existência de pessoas que não contribuem com o dízimo, de pessoas que contribuem com menos do que o dízimo, ou de pessoas que não aceitam o dízimo. Afinal, a Igreja primitiva é rica de exemplos em todos os sentidos em todas as áreas da vida religiosa, de forma que muito raramente deixamos de encontrar nela paralelos que se podem aplicar às situações que vivemos hoje.

No entanto, as Escrituras mostram um silencio absoluto e impenetrável acerca desta questão: não há uma única menção ao dízimo em todas as cartas, não há qualquer menção à sua prática, nenhuma repreensão para crentes que eventualmente não eram dizimistas, nada, nada! A Igreja primitiva, que apresentava em seu seio todos os tipos de pecados que também nos afligem (até incesto ocorreu!), ou era perfeita na questão do dízimo, ou então o dízimo não estava dentro de suas práticas. Realmente, não há outra alternativa.” (grifo nosso).

Vale lembrar que, enquanto o Templo não foi destruído (70 d.C.), o ritual levítico foi mantido com suas ofertas de sacrifício e dízimos para o sustento dos sacerdotes e levitas que ainda estavam trabalhando. Por certo, o gazofilácio para o recolhimento de ofertas, resgates ou impostos em dinheiro ainda estava no mesmo lugar.

Por isso, para os judeus que não aceitaram a Jesus como Messias, tudo permanecia inalterado. Apenas para os judeus cristãos alguma coisa mudou. Desde a conversão, eles não mais levavam ofertas de sacrifício ao Templo, pois entenderam a função do Cordeiro de Deus no perdão dos pecados.

Entretanto, continuavam conscientes de que a manutenção do Templo, dos seus oficiais (sacerdotes e levitas) e dos necessitados de Israel ainda dependiam dos resgates, dízimos e impostos, conforme vimos nos capítulos iniciais deste título. Além disso, mesmo para os judeus cristãos, o Templo continuou sendo um local de reuniões e orações, além de se reunirem nas casas.

“46 Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração,” (At 2:46, grifo nosso).

“21 Tendo ouvido isto, logo ao romper do dia, entraram no templo e ensinavam […] 42 E todos os dias, no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar e de pregar Jesus, o Cristo.” (At 5:21,42, grifo nosso).

O próprio apóstolo Paulo, certa vez foi preso enquanto estava no Templo, pregando e, segundo ele mesmo afirmou, levando suas oferendas e esmolas para a nação:

“17 Depois de anos, vim trazer esmolas à minha nação e também fazer oferendas, 18 e foi nesta prática que alguns judeus da Ásia me encontraram já purificado no templo, sem ajuntamento e sem tumulto,” (At 24:17-18, grifo nosso).

Para que tenhamos a certeza de que dízimos não fizeram parte das obrigações dos cristãos na gênese da igreja, podemos observar a conclusão do primeiro congresso apostólico, que se reuniu em Jerusalém para decidir quais seriam as exigências dirigidas àqueles que entre os gentios viessem a se converter.

O Senhor Deus, por meio de seus apóstolos, orientou a igreja quanto às coisas importantes e essenciais que deveriam ser praticadas e não incluiu em sua lista o recolhimento de dízimos em dinheiro ou de ofertas para a expansão da igreja.

No texto a seguir, veremos quais foram as regras impostas aos novos convertidos, consideradas essenciais, e transmitidas de modo claro e objetivo aos gentios:

“19 Pelo que, julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus, 20 mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da carne de animais sufocados e do sangue. […] 28 Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo além destas coisas essenciais: 29 que vos abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos guardardes. Saúde.” (At 15:19-29, grifo nosso).

Como notamos, nenhuma recomendação foi dada aos novos convertidos acerca de dízimos ou ofertas. Segue-se, portanto, a mesma linha de princípios ensinada por Jesus (discípulos enviados sem dinheiro) e praticada em todo o livro de Atos dos Apóstolos, onde o dinheiro não foi recolhido para a missão, mas para o sustento aos necessitados. O motor da evangelização continua a ser a pregação e o amor.

Hoje em dia, certamente, a primeira lição que um novo convertido aprende na igreja é a de ser fiel nos dízimos e nas ofertas. O ensino, normalmente, motiva os novos crentes sob os seguintes argumentos: fidelidade, expansão da obra, manutenção do ministério, eliminação do devorador e apresenta como promessa a tão desejada prosperidade.

Interessante a observação registrada por Oliveira (2005, p. 95):

“Paulo não se refere ao dízimo uma única vez que seja. Da mesma forma, todos os apelos para que os irmãos contribuam têm uma única finalidade em comum: aquilo que Paulo chama ‘o serviço dos santos’, e que em português corrente podemos perfeitamente traduzir por: ‘atender de forma completa ás carências imediatas dos nossos irmãos que se encontram passando necessidades’.

Não encontramos apelos para que os irmãos contribuam ‘para o sustento da obra’, ou para atender ‘às necessidades da obra’, ou pedidos equivalentes.” (grifo nosso).

Portanto, se entendemos que o livro de Atos dos Apóstolos merece relevo como um dos paradigmas de estruturação da igreja do nosso Senhor Jesus, temos que admitir seus exemplos, especialmente quanto ao modo como estabeleceu a relação da igreja com o dinheiro e com as ofertas, além de aceitar que os dízimos sequer foram mencionados no livro.

Dinheiro, dízimos e ofertas nas Epístolas

Dos 27 livros que formam o Novo testamento, 21 são do gênero epistolar, ou seja, cartas endereçadas a igrejas ou pessoas com a finalidade de aconselhar, doutrinar e edificar a igreja primitiva, além de orientar os responsáveis por pastoreá-las, dirigi-las e administrá-las. Salvo a controvérsia quanto ao evangelho de Mateus e quanto à carta aos hebreus, o restante do Novo Testamento está escrito em grego, embora este fosse um estilo mais difundido entre os romanos, que fizeram uso normal do correio como instrumento idôneo para vincular a metrópole com as legações políticas e militares de serviços nas províncias do Império.

O Novo Testamento, além das epístolas que compõem o cânon, inclui a cópia de outras duas nos livros de Atos dos Apóstolos (At 15:23-29; At 23:26-30), além das sete dirigidas às igrejas da Ásia Menor (Ap 2:1-3:22). Apenas a título auxiliar, para melhor compreensão do assunto a ser tratado neste capítulo, vamos organizar as epístolas de acordo com as datas prováveis em que foram escritas:

 

Epístola

Local provável

Data provável

Observação

Epístolas paulinas

1 Tessalonicenses

Corinto

50

Primeiras epístolas

2 Tessalonicenses

Corinto

51

Romanos

Corinto

55

Grandes epístolas

1 Coríntios

Éfeso

56

2 Coríntios

Filipos

57

Gálatas

Corinto

55

Efésios

Roma

60

Escritas da prisão

Filipenses

Éfeso

54

Colossenses

Roma

61

Filemom

Roma

61

1Timóteo

?

62

Epístolas pastorais

2Timóteo

Roma

66

Tito

?

63

Outros autores

Epístola aos Hebreus

?

70

Autor desconhecido

Tiago

?

Depois de 70

Epístolas universais

1 Pedro

Roma

64

2 Pedro

Roma

65

1 João

Éfeso

90

2 João

Éfeso

90

3 João

Éfeso

90

Judas

?

75

Apenas a título de informação prévia, já podemos deixar anotada a declaração de Oliveira (2005, p. 90) que diz que “Da mesma forma que no livro de Atos, em nenhuma das cartas gerais encontramos alguma menção ao dízimo, seja de forma específica, seja em mero comentário acidental. Há um silencio completo, de forma que temos o direito de duvidar que o dízimo fosse uma prática corrente da Igreja daquela época.”

Honestidade civil

Como vimos no capítulo sete, o Senhor Jesus deixou-nos a lição da honestidade e sujeição às autoridades civis. Ao ser questionado se seria lícito pagar tributos a César, Jesus respondeu que sim (Mt 22:17-22). Ainda que achemos injusta a carga tributária nacional, o fato é que para seguirmos a Cristo temos que cumprir nossas obrigações cidadãs. Nessa mesma sintonia, Paulo, ao escrever aos romanos, deixou bastante claro que o cumprimento dos deveres civis, inclusive no que diz respeito ao pagamento de tributos, é dever de todo crente.

Devemos compreender que o ato da conversão cristã deve eliminar o “velho homem” dando ensejo ao nascimento de um novo, cujo caráter resulte em conduta compatível com a moral cristã. É preciso que todo crente tenha consciência disso. Honestidade e submissão às autoridades fazem parte dessa moral, segundo o exemplo deixado pelo Mestre, que não se insurgiu contra as autoridades constituídas ou contra o cumprimento das obrigações devidas. Sobre a sujeição às autoridades superiores, Paulo, ensinou o seguinte:

“1 Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. 2 De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. 3 Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, 4 visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. 5 É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência.” (Rm 13:1-5, grifo nosso).

Ora, uma das imposições das autoridades civis constituídas é o pagamento de impostos. Deixar de pagá-los foi considerado por Paulo como uma rebelião contra Deus, passível de condenação (Rm 13:2). Por isso, nenhum sonegador de impostos pode estar em paz com Deus, seja crente ou não. E para evitar que os romanos pecassem, Paulo procura ser ainda mais objetivo:

“6 Por esse motivo, também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço. 7 Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra. 8 A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei.” (Rm 13:6-8, grifo nosso).

Uma vez que ser honesto inclui o cumprimento das obrigações civis, ficar devendo e não pagar o que é devido, sonegar impostos e ignorar o comando das autoridades civis são atos de desonestidade, incompatíveis com a moral cristã e passíveis de condenação. Mas, o que faz alguém que se diz crente agir com desonestidade? Normalmente o amor ao dinheiro, raiz de todos os males.

Portanto, se alguém pretende seguir a Cristo, deve desapegar-se do materialismo, arrepender-se de todos os seus atos de desonestidade que envolveram dinheiro e seguir os exemplos da igreja primitiva na prática do amor. Como já afirmamos, o modo como nos relacionamos com o dinheiro, seja em nossa vida privada, em nossa vida profissional, em nossa vida civil ou mesmo em nossa vida religiosa diz muito a nosso respeito. O evangelho de Jesus aponta para o céu e não para a terra!

Oferta fraternal

Inicialmente, é importante esclarecer que as contribuições voluntárias a que se referem as epístolas são distintas das ofertas descritas na Lei e nos evangelhos. Possuem naturezas, fundamentos, motivações e fins diferentes. Além disso, as coletas das epístolas possuem características próprias e envolve uma promessa de bênção espiritual para os colaboradores.

Para fins da diferenciação que faremos a seguir, fundamento é o anteparo de uma ação, o que a sustenta e a justifica, enquanto motivação é o que leva alguém a utilizar esse fundamento em suas ações.

Natureza

Enquanto as ofertas da Lei, citadas também nos evangelhos, eram produtos destinados ao sacrifício (animais e manjares), com exceção apenas das ofertas voluntárias, com fins específicos (doações para construção do Templo, por exemplo), as contribuições voluntárias registradas nas epístolas possuíam natureza primordialmente alimentícia, especialmente porque visavam ao atendimento das necessidades básicas dos pobres da Judeia, devido a fome que assolou a região no tempo do imperador Cláudio (At 11:27-30).

Uma vez que a finalidade da coleta era suprir necessidades básicas dos irmãos da Judeia, acreditamos que as ofertas poderiam ser em alimentos não perecíveis, roupas ou produtos fármacos. Assim entendemos porque Paulo orientou aos coríntios que, uma vez por semana, “2 […] ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for. 3 E, quando tiver chegado, enviarei, com cartas, para levarem as vossas dádivas a Jerusalém, aqueles que aprovardes.” (1Co 16:2-3, grifo nosso).

Ora, se o pedido de Paulo fosse por ofertas financeiras não seria necessário orientar o acúmulo em uma parte da casa. Bastaria que fizessem anotações do quanto ganharam e do quanto iriam enviar a Jerusalém no dia da coleta.

Entretanto, em uma compreensão ampla, podemos presumir que nada impedia que a contribuição fosse financeira ou que os produtos coletados fossem convertidos em dinheiro, para facilitar o deslocamento do produto da coleta até a Judeia, que ficava distante da Macedônia, por exemplo. Esse procedimento estaria, também, consentâneo com a prática de se converter dízimos em dinheiro para fins de transporte, quando as distâncias eram longas (Dt  14:22-26).

Nesse sentido, outras traduções de 1Co 16:2-3 permitem associar a coleta a valores em moeda, senão vejamos:

 “[…] cada um de vocês separe uma quantia, de acordo com a sua renda, reservando-a […]” (Nova Versão Internacional).

“[…] cada um de vós ponha em sua casa, entesourando, qualquer soma conforme tiver prosperado […]” (Sociedade Bíblica Britânica).

“[…]cada um de vós ponha de parte o que tiver podido poupar, […]” (Católica).

Seja como for, o importante é notar que a coleta destinava-se ao suprimento das necessidades básicas dos pobres, em especial a alimentícia. Mesmo que a dádiva fosse financeira, não poderia ter outra destinação que não fosse suprir as necessidades primarias dos necessitados.

Fundamento

A oferta veterotestamentária se fundamentava na Lei e na determinação de Deus. Ou seja, os israelitas apresentavam suas ofertas em dias, locais e de modo previamente definido por Deus em seu ordenamento normativo. Até mesmo as ofertas voluntárias, constituídas por bens e valores monetários foram ordenadas por Deus para um propósito específico, limitado no tempo e regulado para que não ultrapassassem a medida certa, conforme vimos no capítulo três deste livro.

No caso das contribuições registradas nas epístolas, todas são fundamentadas exclusivamente no amor ágape, onde alguém atende a necessidade de outra pessoa antes mesmo de olhar para a sua própria. Ao escrever aos coríntios, Paulo usa as igrejas da Macedônia como exemplo do amor que ali fundamentou a doação. As igrejas da Macedônia haviam passado por grandes dificuldades materiais, no entanto haviam contribuído generosamente. Encontravam-se em profunda pobreza, expressão que significa “miséria absoluta”. Segundo Warren Wiersbe (2006), essa expressão em grego descreve um mendigo que não tem coisa alguma, nem mesmo esperança de receber algo, mas essa circunstância não os impediram de contribuir. Ao contrário, fizeram questão de participar da coleta e com muita alegria.

“1 Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus concedida às igrejas da Macedônia; 2 porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua generosidade. 3 Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários, 4 pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos santos. 5 E não somente fizeram como nós esperávamos, mas também deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor, depois a nós, pela vontade de Deus;” (2Co 8:1-5, grifo nosso).

Aí se vê, claramente, a expressão do amor ágape, fundamento da doação: “deram-se a si mesmos”, seguindo o exemplo de Jesus reafirmado por Paulo quando diz: “2 andai em amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave.” (Ef 5:2, grifo nosso). O próprio Paulo seguiu este exemplo de amor, chegando a dizer: “15 Eu de boa vontade me gastarei e ainda me deixarei gastar em prol da vossa alma. Se mais vos amo, serei menos amado?” (2Co 12:15, grifo nosso).

Portanto, podemos afirmar, sem medo de errar: o fundamento das ofertas (doações sociofraternais) registradas nas epístolas eram exclusivamente o amor ágape.

Motivação

No Velho Testamento, o que motivava a ação dos ofertantes era simplesmente a fé, posta em prática sob o fundamento da obediência à Lei e às ordens do Senhor Deus. Quando os judeus apresentavam seus sacrifícios ou ofertas de manjares, criam que essa era a vontade de Deus. A fé os movia a obedecer. Se não acreditassem que as ordens vindas de Moisés fossem diretamente de Deus, não as obedeceriam na realização dos rituais levíticos, por exemplo. Indiretamente, eles estavam obedecendo à vontade ordenada por Deus, pela fé. O motivo da obediência era, portanto, a fé.

No caso das ofertas voluntárias, de modo semelhante, o povo entregava bens e recursos para um fim específico, mas sempre por solicitação de um representante da nação israelita, escolhido por Deus. Assim, quando o povo atendia a um chamado para ofertar para a construção do Tabernáculo, e depois do Templo, estavam crendo que aquela era a vontade de Deus, já que o líder (Moisés ou o rei) eram representantes de Deus entre eles. Livremente contribuíam, já que a própria natureza dessa oferta era a voluntariedade, segundo estabelecido pelo próprio Deus.

Diferentemente, como nas epístolas os pedidos de oferta não se destinavam a construções, reformas ou a projetos de expansão da igreja, mas para suprir as carências de irmãos necessitados, o apelo era dirigido aos sentimentos de compaixão e misericórdia dos crentes. O apóstolo Paulo fez questão de afirmar que a coleta que faria para assistir os pobres de Jerusalém deveria ser voluntária (2Co 8:3) e serviriam para provar a sinceridade do amor que os coríntios haviam declarado em favor dos seus irmãos[7]. Disse Paulo: “Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de outros, a sinceridade do vosso amor;” (2Co 8:8, grifo nosso).

Pois bem, já sabemos que eles não eram obrigados a participar daquela coleta fraternal. O que, então, deveria motivar a ação (amor ágape) dos crentes de coríntios? A resposta é: a piedade (devoção a Deus e os sentimentos de compaixão e misericórdia)[8], além da fé. Sim, estas são algumas das virtudes que motivam a prática do amor ágape. O fato é que tudo o que fazemos tem um motivo. E por trás de um motivo, tem uma reflexão, um sentimento e uma decisão que nos move a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Antes de agir, normalmente, nós pensamos, sentimos e decidimos. Por exemplo: quando eu penso na miséria do meu irmão, vem em meu coração sentimentos de compaixão e misericórdia e, então, pela fé na provisão de Deus (Mt 6:33; 2Co 9:12-14), eu decido dar o que ele precisa. Assim faço, ainda que eu mesmo seja um necessitado. Neste caso, a ação de dar é a própria expressão do amor ágape, motivada pela piedade e pela fé, que é a certeza de coisas que se esperam (Hb 11:1).

De outro modo, ao pensar na miséria do meu irmão, pode subir ao meu coração esses mesmos sentimentos, mas eu posso bloqueá-lo com minha razão. Então, minha ação será desprezar aquela necessidade e agir com indiferença. Se isso ocorre, é porque o egoísmo falou mais alto e minha decisão de não fazer nada (omissão) foi motivada por alguma justificativa criada por minha mente racional. Por vezes, nossa mente busca uma boa razão (desculpa) para nos omitirmos sem nos sentirmos mal com nós mesmos. Podemos pensar, por exemplo, em nossas próprias necessidades não supridas e, assim, não nos sentiremos culpados por não satisfazer uma necessidade de outra pessoa. Os cristãos da Macedônia não fizeram assim. Antes, permitiram que o conhecimento da situação miserável dos seus irmãos produzisse a piedade e resultasse no fruto do amor.

Pedro, também, faz uma associação interessante a esse respeito. Em sua segunda epístola diz que devemos ser diligentes e crescer igualmente na fé, na virtude, no conhecimento, no domínio próprio, na perseverança, na piedade, na fraternidade e no amor, para não sermos infrutuosos.

“5 por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; 6 com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade; 7 com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade, o amor. 8 Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que não sejais nem inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo.” (2Pe 1:5-8).

Portanto, como podemos notar, fé, piedade, fraternidade e amor caminham juntos. Enquanto o que motiva uma oferta da Lei é simplesmente a fé, nas epístolas o que motiva a ação de amor fraternal, no ato de ofertar, é a piedade e a fé.

Finalidade

Em seus fins, as ofertas veterotestamentárias tinham diversos objetivos, sempre relacionados ao culto e ao Templo. Todos esses propósitos constam do capítulo dois deste livro. Vamos relembrar alguns deles: a) apontar profeticamente para o futuro, pois eram sombras do que haveria de vir; b) agradar a Deus com seu ritual cultual e aromas suaves; c) promover perdão e reconciliação com Deus; d) alimentar os sacerdotes e, em certos casos, o próprio ofertante; e) selar votos; f) realizar ações de graças; g) realizar algum propósito específico, no caso das ofertas voluntárias; etc.

Por sua vez, as coletas descritas nas epístolas nada tinham a ver com o culto ou com o Templo. Destinavam-se ao suprimento de necessidades emergenciais de irmãos carentes e necessitados. Ou seja, seu objetivo imediato era a assistência aos santos. Indiretamente, o objetivo das coletas era promover a unidade dos crentes no exercício do amor. É certo que havia pobres e necessitados em todas as regiões onde a igreja se instalou, mas o amor não tem fronteiras. Quando o apóstolo Paulo escreve aos romanos, registra que havia pessoas pobres e necessitadas em Jerusalém e que tal situação moveu os crentes da Macedônia, também carentes, a coletarem mantimentos para enviar aos mais pobres que eles:

“25 Mas, agora, estou de partida para Jerusalém, a serviço dos santos. 26 Porque aprouve à Macedônia e à Acaia levantar uma coleta em benefício dos pobres dentre os santos que vivem em Jerusalém. 27 Isto lhes pareceu bem, e mesmo lhes são devedores; porque, se os gentios têm sido participantes dos valores espirituais dos judeus, devem também servi-los com bens materiais. 28 Tendo, pois, concluído isto e havendo-lhes consignado este fruto, passando por vós, irei à Espanha.” (Rm 15:25-28, grifo nosso).

Como podemos notar, a coleta realizada pelos crentes gentios de Grécia e destinadas aos crentes de Jerusalém foi motivada pela misericórdia e fundada no amor ágape. Mas, Paulo, ao referir-se a esse fato acrescentou algo que os romanos precisavam ouvir. Paulo disse que aquela dádiva era uma justa retribuição aos judeus, uma vez que os gentios receberam deles riquezas espirituais, pois foram eles que levaram aos gentios a palavra de Deus, e foi por meio deles que o Messias veio ao mundo. Por essas palavras, Paulo estava mostrando a importância de uns e de outros e trabalhava pela unidade dos crentes, independentemente da sua origem ou condição social. Para Paulo, era importante criar um vínculo mais próximo entre a “igreja-mãe” em Jerusalém e suas “filhas” em outras partes do império, porque ainda havia alguns judeus que desprezavam os gentios e se opunham à mensagem da graça extensiva a todos igualmente.

Portanto, enquanto a finalidade direta das coletas era a assistência aos santos, indiretamente, objetivava a unidade dos crentes no exercício do amor, uma promoção da integração fraternal. Por isso, podemos concluir que os fins das coletas eram fraterno-assistenciais.

Características

Ao escrever aos coríntios, assim como fez com os romanos, Paulo também incentiva o exercício do amor e, para tanto, utiliza o mesmo exemplo dos crentes da Macedônia, agora, com mais detalhes. A primeira coisa que ele demonstra é que para o exercício do amor não precisamos ser ricos materialmente, pois os doadores da Macedônia estavam em profunda pobreza, mas mesmo assim fizeram questão de contribuir (2Co 8:1-3). Basta, portanto, que sejamos motivados pela piedade (2Co 8:4) e pela fé, pois Paulo afirmou que “em tudo, manifestais superabundância, tanto na fé e na palavra como no saber, e em todo cuidado, e em nosso amor para convosco, assim também abundeis nesta graça” (2Co 8:7).

Ainda, sobre as coletas aos pobres de Jerusalém, Paulo afirma que sentir misericórdia e vontade de ajudar não é suficiente. É preciso partir para a ação. Um ano antes, os coríntios haviam se comprometido, com todo entusiasmo, a participar da oferta, mas até então não haviam tomado qualquer providência. Por isso, Paulo convida os crentes de coríntios a completar “a obra começada, para que, assim como revelastes prontidão no querer, assim a leveis a termo, segundo as vossas posses” (2Co 8:11). Também, afirma que as coletas possuíam um fim de distribuição de rendas, para que não haja na igreja uns ricos e outros padecendo necessidades:

“12 Porque, se há boa vontade, será aceita conforme o que o homem tem e não segundo o que ele não tem. 13 Porque não é para que os outros tenham alívio, e vós, sobrecarga; mas para que haja igualdade, 14 suprindo a vossa abundância, no presente, a falta daqueles, de modo que a abundância daqueles venha a suprir a vossa falta, e, assim, haja igualdade, 15 como está escrito: O que muito colheu não teve demais; e o que pouco, não teve falta.” (2Co 8:12-15, grifo nosso).

Outra importante característica produzida pelas ofertas sociofraternais é que, devido à sua natureza primordialmente alimentícia para socorro de necessitados, isso deve gerar em quem administra essas dádivas um grande senso de responsabilidade, para que todo o processo seja realizado com honestidade e a igreja contribua sem ter qualquer motivo para desconfiar dos seus administradores.

“20 evitando, assim, que alguém nos acuse em face desta generosa dádiva administrada por nós; 21 pois o que nos preocupa é procedermos honestamente, não só perante o Senhor, como também diante dos homens. 22 Com eles, enviamos nosso irmão cujo zelo, em muitas ocasiões e de muitos modos, temos experimentado; agora, porém, se mostra ainda mais zeloso pela muita confiança em vós.” (2Co 8:20-22, grifo nosso).

Infelizmente, hoje as coisas estão muito diferentes. As ofertas recolhidas destinam-se a projetos expansionistas e não ao socorro aos necessitados. Para piorar as coisas, os responsáveis pela gestão dos recursos eclesiásticos nem sempre são achados fiéis, o que gera uma grande desconfiança do povo em relação aos administradores dos recursos recolhidos nas igrejas.

Outra característica observável nas ofertas sociofraternais é que elas não fazem parte do culto ou das reuniões da igreja. Paulo, por duas vezes, orienta que os coríntios não misturem as coisas. As coletas deveriam ser separadas na casa dos ofertantes e lá deveriam permanecer até que fossem recolhidas para serem levadas a Jerusalém. Paulo pede, inclusive, que não façam nenhum tipo de coletas enquanto ele estivesse presente. Certamente, o apóstolo queria aproveitar todo o seu tempo para estar em comunhão com os irmãos e dedicando seu tempo a orações e ao ensino.

“1 Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. 2 No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for. 3 E, quando tiver chegado, enviarei, com cartas, para levarem as vossas dádivas a Jerusalém, aqueles que aprovardes. 4 Se convier que eu também vá, eles irão comigo.” (1Co 16:1-4, grifo nosso).

Como a coleta era feita nas casas, evitava-se que alguém se sentisse constrangido publicamente por não poder ou não querer contribuir. Afinal, alguns irmãos ainda poderiam estar desconfiados, já que haviam sido explorados pelos cristãos judaizantes que se infiltravam nas igrejas quando Paulo não estava presente:

“11 Por que razão? É porque não vos amo? Deus o sabe. 12 Mas o que faço e farei é para cortar ocasião àqueles que a buscam com o intuito de serem considerados iguais a nós, naquilo em que se gloriam. 13 Porque os tais são falsos apóstolos, obreiros fraudulentos, transformando-se em apóstolos de Cristo.” (2Co 11:11-13, grifo nosso).

“11 Tenho-me tornado insensato; a isto me constrangestes. Eu devia ter sido louvado por vós; porquanto em nada fui inferior a esses tais apóstolos, ainda que nada sou. […] 13 Porque, em que tendes vós sido inferiores às demais igrejas, senão neste fato de não vos ter sido pesado? Perdoai-me esta injustiça. 14 Eis que, pela terceira vez, estou pronto a ir ter convosco e não vos serei pesado; pois não vou atrás dos vossos bens, mas procuro a vós outros. […] 16 Pois seja assim, eu não vos fui pesado; porém, sendo astuto, vos prendi com dolo. 17 Porventura, vos explorei por intermédio de algum daqueles que vos enviei?” (2Co 12:11-17, grifo nosso).

Por causa dos cristãos judaizantes, Paulo tem que mostrar a diferença entre ele, apóstolo verdadeiro, e um falso apóstolo, que se coloca na igreja para exigir coisas que Deus nunca exigiu e utilizar os fundamentos bíblicos de modo distorcido para atender seus interesses. Nessa circunstância, Paulo mostra aos coríntios que nunca impôs encargos pesados sobre a igreja, sob qualquer argumento. Também, não explorou ninguém nem mesmo pelos irmãos que ele enviou. Em todo o tempo, seus argumentos para promover a igualdade era a piedade e o amor, e não a Lei, como faziam os judaizantes.

Com esses esclarecimentos, podemos compreender o fato de que as coletas eram feitas nas casas dos ofertantes e não em reuniões públicas. Não havia constrangimentos, imposições ou valores sugeridos no ato de pedir e nem mesmo ameaças veladas dirigidas àqueles que não queriam ou não podiam contribuir. Embora Paulo estivesse estimulando a igualdade, a misericórdia e o amor, em nenhum momento apresentou a oferta como uma obrigação do crente, sob pena de ser atacado por demônios devoradores ou coisas do tipo. Contribuir era bom, mas não contribuir não era pecado.

Sobre o valor da doação de cada crente, Paulo fez questão de afirmar que seria segundo a sua capacidade material e não segundo a sua expectativa de receber cem vezes mais. Embora ele tenha expressado admiração pela generosidade dos crentes da Macedônia, que deram além do que podiam, a sua recomendação é para que cada um contribuísse segundo as suas posses, mas não ao ponto de serem sobrecarregados. O alívio de um lado não deveria gerar sobrecarga do outro. Paulo estava mostrando que o amor deve produzir a igualdade e que os doadores daquele dia poderiam ser os necessitados do dia seguinte.

“1 Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus concedida às igrejas da Macedônia; […] 3 Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários, 4 pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos santos. […] 8 Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de outros, a sinceridade do vosso amor; […] 11 Completai, agora, a obra começada, para que, assim como revelastes prontidão no querer, assim a leveis a termo, segundo as vossas posses. 12 Porque, se há boa vontade, será aceita conforme o que o homem tem e não segundo o que ele não tem. 13 Porque não é para que os outros tenham alívio, e vós, sobrecarga; mas para que haja igualdade, 14 suprindo a vossa abundância, no presente, a falta daqueles, de modo que a abundância daqueles venha a suprir a vossa falta, e, assim, haja igualdade, 15 como está escrito: O que muito colheu não teve demais; e o que pouco, não teve falta.” (2Co 8:1-15, grifo nosso).

Curiosamente, hoje é comum ver em algumas igrejas que parte do seu culto é destinado ao recolhimento de dízimos e ofertas. Existe até uma pregação exclusiva para isso, onde se utilizam de passagens fora de seu contexto para motivar as pessoas a dar dinheiro ao ministério para a manutenção e expansão dos seus trabalhos. Os argumentos são dirigidos à ganância das pessoas que querem prosperar ou que querem proteger seus bens de demônios devoradores. Em outros casos, o apelo envolve a necessidade de manutenção da igreja ou de expansão daquele ministério. Para atingir seus propósitos, sem qualquer preocupação com a situação material dos ouvintes, alguns líderes até estipulam o valor das ofertas, começando com valores altos que vão diminuindo até que, constrangidos, todos contribuam. Ou seja, a natureza, o fundamento, a motivação e a finalidade da oferta praticada em muitas igrejas hoje é diferente do que aprendemos com as cartas doutrinárias dirigidas à igreja.

Promessa de bênção espiritual

Uma vez que a preocupação de Paulo é com os irmãos carentes e necessitados de socorro, não há dúvida alguma de que Deus se agradaria daquela ação fraternal. Mesmo no tempo da Lei, o Senhor se preocupou com o povo necessitado, instituindo regulamento em defesa de pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros (Êx 22:21-27) e instrumento de provisão, por meio de dízimos, que seriam repartidos com essas pessoas, conforme vimos no capítulo três deste livro. Logo, a preocupação de Paulo é a mesma de Deus, de modo que podemos esperar a cooperação do poder do Senhor neste mister.

Todo o capítulo nove da segunda carta aos coríntios é destinado a tratar da oferta fraternal. As palavras que Paulo usa ao escrever sobre a coleta é “quanto à assistência a favor dos santos”, ou seja, um serviço para os irmãos em Cristo e uma expressão de generosidade, uma dádiva.

“1 Ora, quanto à assistência a favor dos santos, é desnecessário escrever-vos, 2 porque bem reconheço a vossa presteza, da qual me glorio junto aos macedônios, dizendo que a Acaia está preparada desde o ano passado; e o vosso zelo tem estimulado a muitíssimos. […] 5 Portanto, julguei conveniente recomendar aos irmãos que me precedessem entre vós e preparassem de antemão a vossa dádiva já anunciada, para que esteja pronta como expressão de generosidade e não de avareza. (2Co 9:1-5, grifo nosso).

A lei da semeadura

Figuradamente, Paulo utiliza a semeadura para exemplificar os benefícios desse propósito. O princípio utilizado por Paulo é o mesmo que Jesus já havia aplicado em seus ensinamentos. Segundo o Mestre, o princípio da proporcionalidade vale tanto para o bem como para o mal: “38 dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos darão; porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também.” (Lc 6:38). Ou seja, recebemos na mesma proporção daquilo que damos, seja o bem ou o mal. Por isso, Jesus nos deixou a regra áurea, qual seja: “12 Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles […]” (Mt 7:12). É preciso notar que Jesus não está se referindo a bens materiais, mas às nossas atitudes em relação às pessoas que nos cercam. Se fizermos o bem, podemos esperar o bem na mesma proporção. O mesmo vale quando fazemos o mal. O fato é que Jesus garante que os resultados virão, inevitavelmente. Se não vierem diretamente dos homens, certamente virão de Deus, seja em nos abençoar, seja para nos corrigir.

Com base nesse mesmo princípio e segurança, Paulo afirma que, em relação às nossas atitudes perante os homens, os resultados do que fazemos virão na mesma proporção, assim como na relação entre o que se semeia e o que se colhe. Ora, o agricultor que planta muitas sementes espera por uma colheita abundante. O que lança na terra poucas sementes, já sabe que não deve esperar muito desse trabalho. Sobre essa questão, Paulo disse: “6 E isto afirmo: aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia com fartura com abundância também ceifará.” (2Co 9:6, grifo nosso).

Paulo utiliza essa figura da semeadura para a assistência a favor dos santos e faz questão de esclarecer que ninguém deveria se sentir constrangido, mas sondar seu coração para se certificar de que não há pesar naquilo que está fazendo. O ato de doar não poderia trazer dúvida ou tristeza ao coração. O doador deveria estar seguro de que aquilo era a coisa certa a se fazer e que Deus se agradava daquele ato de generosidade. Também, é importante destacar que a doação não deveria ser por necessidade, ou seja, um sentimento de obrigação.

“Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria.” (2Co 9:7).

O motivo da doação deveria ser exclusivamente a fé e a piedade (devoção e compaixão /misericórdia).

Paulo usa Jesus como exemplo para mostrar o sentido espiritual dos resultados esperados no caso da coleta fraternal. Ele reafirma a graça do Mestre, conhecida por todos ao dizer que “conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos.” (2Co 8:9, grifo nosso). Evidentemente, sabemos que a pobreza de Jesus não tornou ninguém rico materialmente, mas fez com que os cristãos se tornassem ricos na graça e em frutos de justiça. Esta é a riqueza apresentada por Paulo como resultado da semeadura. O milagre de Deus está na multiplicação da graça. Assim, o ato de dar aos pobres produz um ciclo virtuoso. Ou seja, o que dá recebe de volta e torna a dar, de modo que a suficiência se amplia para que o misericordioso tenha sempre condições de dar. Assim, quem tem muita graça, terá boas obras em maiores medidas, superabundantes.

“8 Deus pode fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa obra, 9 como está escrito: Distribuiu, deu aos pobres, a sua justiça permanece para sempre.” (2Co 9:8-9, grifo nosso).

E por falar em milagre, Paulo nos mostra que o mesmo Deus que deu ao homem a primeira porção de sementes é poderoso para, ainda hoje, aumentar a nossa sementeira para, novamente lançarmos à terra. Ora, quando o homem veio ao mundo, já haviam sementes de tudo o que existia, algo que somente Deus explica. O homem não precisou inventar a semente, apenas a pegou e plantou no lugar que queria. Depois que ele plantou, o fruto apareceu e, com ele, novas sementes para um novo plantio. Na sequência de suas plantações, cada vez ele possuía mais. Paulo usa exatamente esse exemplo para afirmar que a generosidade em dar aos pobres iria produzir um fruto que traria ao crente cada vez maiores condições de ser generoso.

“10 Ora, aquele que dá semente ao que semeia e pão para alimento também suprirá e aumentará a vossa sementeira e multiplicará os frutos da vossa justiça, 11 enriquecendo-vos, em tudo, para toda generosidade, a qual faz que, por nosso intermédio, sejam tributadas graças a Deus.” (2Co 9:10-11, grifo nosso).

Na sequência, Paulo reforça que o exemplo dado diz respeito a algo que está no coração de Deus (assistência à necessidade dos santos) e que está perfeitamente em linha com seus princípios. Eis a razão de Paulo estar convicto de que esse trabalho de coletas entre irmãos era algo aceitável e agradável ao Senhor. O apóstolo sabia que essa coleta e distribuição geraria satisfação ao doador e muitas “graças a Deus”, ou seja, os pobres que recebessem a oferta dariam muito louvor a Deus por suas providências.

“12 Porque o serviço desta assistência não só supre a necessidade dos santos, mas também redunda em muitas graças a Deus, 13 visto como, na prova desta ministração, glorificam a Deus pela obediência da vossa confissão quanto ao evangelho de Cristo e pela liberalidade com que contribuís para eles e para todos, 14 enquanto oram eles a vosso favor, com grande afeto, em virtude da superabundante graça de Deus que há em vós. 15 Graças a Deus pelo seu dom inefável!” (2Co 9:11-15, grifo nosso).

Por fim é importante fazer um alerta. A figura da semente não é uma panaceia espiritual, aplicada para tudo o que queremos ver multiplicado em nossas vidas. Embora Paulo tenha utilizado o princípio da proporcionalidade da ação/reação, fez isso para uma aplicação no campo da generosidade e especificamente para ensinar aos coríntios sobre os benefícios que a contribuição fraternal pode trazer à igreja, tanto aos doadores como aos que recebem essa dádiva.

A advertência

Ao mesmo tempo em que os cristãos são orientados quanto às doações fraternais e à prática do amor, seguem-se duas advertências: a) a fé sem obras é morta; e b) a prática do amor começa em família. Em sua epístola, Tiago escreve às 12 tribos que se encontram na dispersão (Tg 1:1) e explica que o cristão insensível à necessidade de seus irmãos é como um corpo sem vida (Tg 2:26). Diz mais, igreja que trata seus membros com gentileza e aparente piedade, mas não os socorrem quando estão desamparados em suas necessidades mais básicas (vestir e comer), não está produzindo nada que possa ser aproveitado para a salvação. Nada!

“14 Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? 15 Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento cotidiano, 16 e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso? 17 Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta.” (Tg 2:14-17, grifo nosso).

Na primeira carta que Paulo enviou a Timóteo há outra advertência importante. Se alguém não honra seus pais e avós, especialmente aqueles limitados financeiramente, tem negado a fé e é pior do que o não crente. Paulo ensina que cada crente deve cuidar de seus familiares (sua própria casa) e não se aproveitar do trabalho assistencial da igreja para lançar sobre ela esse encargo. A mensagem é bastante clara: apenas as pessoas desamparadas devem ser assistidas com os recursos da igreja.

“3 Honra as viúvas verdadeiramente viúvas. 4 Mas, se alguma viúva tem filhos ou netos, que estes aprendam primeiro a exercer piedade para com a própria casa e a recompensar a seus progenitores; pois isto é aceitável diante de Deus. 5 Aquela, porém, que é verdadeiramente viúva e não tem amparo espera em Deus e persevera em súplicas e orações, noite e dia; 6 entretanto, a que se entrega aos prazeres, mesmo viva, está morta. 7 Prescreve, pois, estas coisas, para que sejam irrepreensíveis. 8 Ora, se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos da própria casa, tem negado a fé e é pior do que o descrente. […] 16 Se alguma crente tem viúvas em sua família, socorra-as, e não fique sobrecarregada a igreja, para que esta possa socorrer as que são verdadeiramente viúvas.” (1Tm 5:3-16, grifo nosso).

Em síntese, diferentemente das ofertas verotestamentárias, as coletas registradas nas epístolas possuíam as seguintes características:

  1. natureza primordialmente alimentícia;
  2. motivadas pela piedade e pela fé;
  3. seu fundamento era o amor;
  4. sua finalidade direta era a assistência aos santos e, indiretamente, objetivava a unidade dos crentes no exercício do amor, ou seja, seus fins eram fraterno-assistenciais;
  5. exigiam que seus administradores fossem responsáveis e honestos;
  6. os contribuintes não eram necessariamente ricos ou bem providos materialmente;
  7. as dádivas não eram recolhidas nas reuniões dos crentes, mas nas casas;
  8. foram comparadas à semeadura, mas não como panaceia espiritual;
  9. embora não fossem obrigatórias, faziam parte da prática de fé dos crentes; e
  10. o produto recolhido era destinado somente aos necessitados que não tivessem família capaz de assisti-los.

Enfim, ao estudar as epístolas, constatamos que a igreja do primeiro século não praticou, não pediu, não exigiu e nem ensinou seus líderes ou membros a fazerem recolhimentos de dinheiro para a realização de projetos evangelísticos, aquisição de propriedades, bens e equipamentos de qualquer natureza e nem mesmo para a manutenção de cultos. As coletas registradas nas epístolas, para o nosso conhecimento e prática, eram simplesmente fraterno-assistenciais.

Ministério remunerado

Questão difícil de ser tratada é a remuneração de pastores que vivem do evangelho. Complexa, porque atualmente as igrejas se assemelham a empresas e seus pastores a empresários. Seja como for, o propósito deste tópico é examinar o que ficou registrado nas epístolas sobre o assunto, sem receio de revelar a verdade que não queremos ver. Ao contextualizar cada passagem e alinhá-las aos princípios postos por Jesus e seguidos pelos apóstolos, saberemos o que convém aos ministros de evangelho.

Para fins de harmonizarmos nossas conclusões com a vontade de Deus, temos que, primeiramente, trazer como exemplo a pedra angular da igreja, sobre a qual nosso edifício será construído. Pedro e João, após a cura do coxo da porta Formosa (At 3:1-10), anunciaram Jesus ao povo, elevando o número de salvos a quase 5.000 homens. Mas, em seguida foram presos (At 4:1-4) e, diante do Sinédrio, ao falar em sua defesa, Pedro disse: “11 Este Jesus é a pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou a pedra angular.” (At 4:11, grifo nosso). O apóstolo Paulo afirmando sua prudência, assevera que em seu ministério lançou essa pedra angular, sabendo que seus sucessores edificariam sobre ela:

“10 Segundo a graça de Deus que me foi dada, lancei o fundamento como prudente construtor; e outro edifica sobre ele. Porém cada um veja como edifica. 11 Porque ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo.” (1Co 3:10-11, grifo nosso).

Assim, em toda e qualquer doutrina que se preste à edificação da igreja, o fundamento, o exemplo e o paradigma devem ser Jesus, mesmo quando utilizarmos as sombras do Velho Testamento. Paulo afirma que nenhum outro fundamento pode ser utilizado para a edificação da igreja e que ele próprio utilizou Jesus como referência para o seu ministério. Por isso, afirmou que ele mesmo poderia ser um exemplo a seguir, uma vez que ele espelhava a Cristo em seu proceder. Inclusive, elogiou os coríntios por seguirem as tradições do modo como ele havia transmitido e não como os anciãos dos judeus as apresentavam. O apóstolo disse: “1 Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo. 2 De fato, eu vos louvo porque, em tudo, vos lembrais de mim e retendes as tradições assim como vo-las entreguei.” (1Co 11:1-2, grifo nosso).

Feita essa introdução, utilizaremos Jesus e Paulo como exemplos a serem seguidos. O primeiro, por ser a pedra angular e, o segundo, por tê-la lançado como fundamento para a edificação da igreja.

Em seu ministério, Jesus não desenvolvia atividade profissional paralela. Vivia do auxílio de seus cooperadores e não tinha nada além do necessário à sua sobrevivência.

Ao aceitar a sua missão, Jesus deixou seu trono de glória sabendo que seria pobre entre os homens (2Co 8:9). O Nazareno não tinha dinheiro guardado e o que entrava na bolsa (Jo 12:6) era utilizado para o seu sustento e não para a aquisição de bens. Nosso Senhor não tinha campos ou casas (Lc 9:58) e nem animais (Lc 19:29-34). Tampouco cobiçou isso de alguém (Lc 18:22). Ao treinar seus discípulos, enviou-os para uma missão ensinando-os a confiar na providência divina para o sustento diário, sem reservas (Lc 9:1‑4).

Examinando o Novo Testamento, podemos afirmar que Jesus aceitou a pobreza. O mesmo se pode observar em relação aos seus discípulos. O certo é que todos eles aceitaram viver apenas com o essencial enquanto cumpriam seus chamados e vocações. De modo diverso, não há qualquer apoio neotestamentário para que alguém aceite a hipótese de lucro, luxo, extravagâncias ou qualquer outro tipo de proveito pessoal enquanto cumpre o chamado à divulgação do evangelho.

Ao expulsar os comerciantes do Templo, Jesus revelou sua indisposição em aceitar a exploração comercial da fé e do culto.

O Mestre não admitiu nem mesmo o comércio de elementos imprescindíveis ao ritual levítico. Se a ideia era promover o culto, ajudar ou facilitar as coisas para quem vinha de longe apresentar seu sacrifício, ou trazer suas ofertas, os facilitadores não poderiam tirar lucro disso. Os que assim fizeram foram considerados como aproveitadores, dignos da mais dura repreensão de Jesus (Mt 21:12-13).

Então, qual foi o exemplo de Jesus para quem faz de sua vida o ministério do serviço santo? Qual o exemplo de Jesus para quem aceita uma missão de pregar o evangelho? Qual o exemplo de Jesus para quem negocia produtos de cunho religioso sob o pretexto de ajudar as pessoas a crescerem espiritualmente? Muito simples! Em todos os casos, o exemplo de Jesus aponta para um serviço de renúncia e de dedicação com total desapego material.

Se o objeto do negócio é espiritual ou religioso, não se pode tirar lucro ou proveito pessoal daí.

Segundo o exemplo do Mestre, tudo o que se pode retirar do serviço santo é o necessário ao sustento das necessidades básicas para a continuidade da missão ou ministério.

Jesus segue o mesmo princípio instituído pela Lei de Moisés, onde os sacerdotes e levitas retiravam do serviço santo o suficiente para o sustento próprio e de suas famílias, nada mais. Por isso, no exercício exclusivo desse ministério, em obediência às prescrições da Lei, nenhum deles enriqueceu ou viveu no luxo. Outro exemplo, apontado pelo próprio Senhor Jesus foi o de João Batista, que renunciou ao conforto terreno para cumprir sua missão. “Usava João vestes de pelos de camelo e um cinto de couro; a sua alimentação eram gafanhotos e mel silvestre.” (Mt 3:4). O profeta e precursor de Jesus tinha uma vida totalmente despojada. Sobre João Batista, Jesus disse ao povo: “24 […] Que saístes a ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? 25 Que saístes a ver? Um homem vestido de roupas finas? Os que se vestem bem e vivem no luxo assistem nos palácios dos reis.” (Lc 7:24-25, grifo nosso).

Passando aos exemplos constantes das epístolas, podemos começar com o apóstolo Paulo, um imitador de Jesus. Oliveira (2005, p. 97), examinando essa mesma questão, adianta que:

“No que diz respeito aos obreiros, o modelo bíblico aponta como regra para o serviço voluntário e sacrificial, compartilhado com as atividades normais da vida, e como exceção para o obreiro de tempo integral, exclusivamente dedicado à igreja. Mesmo assim, nos casos em que as Escrituras se referem a pessoas nessa condição, todas elas desempenham funções que são voltadas para um tipo de ministério que envolve muitas comunidades, e não para o ministério da igreja local. Creio que Tito, Timóteo e o próprio Paulo são bons exemplos desse tipo de ministro.

Nós hoje não nos apercebemos de que o modelo ‘obreiro de tempo integral’ não é exatamente um modelo bíblico do Novo Testamento, mas sim um modelo que nasce na Igreja, quando esta se transforma em religião oficial do Estado, e dos fiéis, e a encarar essa hierarquia como sendo a Igreja em si mesma, com completo desprezo pelos fiéis. Esse é o modelo da Igreja Medieval, um pouco alterado pela Reforma, e que chega a nossos dias quase que sem retoques.”

O apóstolo, ao escrever a segunda carta à igreja de Tessalônica, trata da questão da retribuição das pessoas que servem à causa do evangelho e se apresenta como exemplo a ser seguido. Ele usa a expressão “convém imitar-nos”, porque sabia que era justo retribuir aqueles que serviam a igreja, embora essa não fosse a melhor opção.

“7 pois vós mesmos estais cientes do modo por que vos convém imitar-nos, visto que nunca nos portamos desordenadamente entre vós, 8 nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em labor e fadiga, de noite e de dia, trabalhamos, a fim de não sermos pesados a nenhum de vós; 9 não porque não tivéssemos esse direito, mas por termos em vista oferecer-vos exemplo em nós mesmos, para nos imitardes. 10 Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quer trabalhar, também não coma.” (2Ts 3:7-10, grifo nosso).

Em outras palavras, Paulo está dizendo que “é justo receber da igreja por um serviço prestado, mas eu não faço isso e recomendo que vocês também não o façam”. Paulo, com sua própria vida, demonstra que é perfeitamente possível entregar-se totalmente à causa do evangelho sem ser pesado à igreja. Ele trabalhava fazendo tendas (At 18:2-3), pregava, evangelizava, ensinava os discípulos (At 19:8-10), viajava, estudava as escrituras, visitava (At 15:36; At 28:8) e escrevia cartas doutrinárias sem receber salário mensal da igreja e sem explorá-la para seu próprio conforto.

“1 Depois disto, deixando Paulo Atenas, partiu para Corinto. 2 Lá, encontrou certo judeu chamado Áqüila, natural do Ponto, recentemente chegado da Itália, com Priscila, sua mulher, em vista de ter Cláudio decretado que todos os judeus se retirassem de Roma. Paulo aproximou-se deles. 3 E, posto que eram do mesmo ofício, passou a morar com eles e ali trabalhava, pois a profissão deles era fazer tendas. 4 E todos os sábados discorria na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos.” (At 18:1-4, grifo nosso).

Sim, Paulo, enquanto foi possível, decidiu trabalhar e prover seu próprio sustento, para não ser pesado à igreja. Quem, hoje, ousaria questionar o direito de Paulo a ser sustentado e honrado pelos cristãos? Entretanto, a opção do apóstolo foi não explorar os irmãos, de modo nenhum!

Ao discorrer sobre sua escolha, Paulo deixa bem claro que estava abrindo mão de um direito justo para não sobrecarregar a Igreja e que este era o exemplo a ser seguido.

Paulo já sabia que os cristãos judaizantes infiltravam-se nas igrejas e a exploravam (2Co 11:11-13; 2Co 12:11-17) e chega a identificar pessoas em Tessalônica que agiam de modo desordenado, não trabalhando para viver às custas da igreja, razão pela qual Paulo disse que aqueles que não queriam trabalhar, também não deveriam comer.

“10 Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quer trabalhar, também não coma. 11 Pois, de fato, estamos informados de que, entre vós, há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando; antes, se intrometem na vida alheia. 12 A elas, porém, determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando tranquilamente, comam o seu próprio pão.” (2Ts 3:10-12, grifo nosso).

Alguns anos depois, ao escrever sua primeira carta aos coríntios, Paulo novamente reconhece o direito dos ministros do evangelho ao recebimento de justa retribuição por seu trabalho e chega a usar exemplos cotidianos e uma citação da Lei de Moisés para mostrar que a recompensa dos trabalhadores era justa.

“6 Ou somente eu e Barnabé não temos direito de deixar de trabalhar? 7 Quem jamais vai à guerra à sua própria custa? Quem planta a vinha e não come do seu fruto? Ou quem apascenta um rebanho e não se alimenta do leite do rebanho? 8 Porventura, falo isto como homem ou não o diz também a lei? 9 Porque na Lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi, quando pisa o trigo. Acaso, é com bois que Deus se preocupa? 10 Ou é, seguramente, por nós que ele o diz? Certo que é por nós que está escrito; pois o que lavra cumpre fazê-lo com esperança; o que pisa o trigo faça-o na esperança de receber a parte que lhe é devida. 11 Se nós vos semeamos as coisas espirituais, será muito recolhermos de vós bens materiais? (1Co 9:5-11, grifo nosso).

Entretanto, Paulo, na sequência dessa mesma carta dirigida aos coríntios, apresenta seu direito ao sustento como um ato de justiça e, em seguida, muda completamente de posição e apresenta, mais uma vez, a sua própria opção como exemplo a ser seguido.

“12 Se outros participam desse direito sobre vós, não o temos nós em maior medida? Entretanto, não usamos desse direito; antes, suportamos tudo, para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo. 13 Não sabeis vós que os que prestam serviços sagrados do próprio templo se alimentam? E quem serve ao altar do altar tira o seu sustento? 14 Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do evangelho; 15 eu, porém, não me tenho servido de nenhuma destas coisas e não escrevo isto para que assim se faça comigo; porque melhor me fora morrer, antes que alguém me anule esta glória. 16 Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho! 17 Se o faço de livre vontade, tenho galardão; mas, se constrangido, é, então, a responsabilidade de despenseiro que me está confiada. 18 Nesse caso, qual é o meu galardão? É que, evangelizando, proponha, de graça, o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá.” (1Co 9:12-18, grifo nosso).

As razões de sua opção foram bem assentadas no amor, na graça e na voluntariedade. Ele sabia o quanto a ganância poderia afetar as lideranças e resultar em obstáculo à pregação do evangelho de Cristo. Então, afirma aos coríntios que não usa de seu direito, porque “23 Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem todas edificam. 24 Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem.” (1Co 10:23-24).

Segundo o ensino de Paulo, se algo lícito me favorece, mas prejudica outra pessoa, em nome do amor (ágape) eu devo abrir mão desse direito, porque tal direito deixa de ser conveniente.

Contudo, nos últimos anos de vida do apóstolo Paulo, ele experimentou o cárcere. Algumas de suas epístolas, inclusive, foram escritas na prisão, a exemplo das cartas aos efésios, aos colossenses e aos filipenses. Por óbvio, nesse tempo o apóstolo estava impedido de prover seu próprio sustento. Durante os dois anos que ficou preso em Roma, por exemplo, não podia trabalhar, mas tinha que arcar com as despesas da casa que alugara (At 28:16,30-31). Quando, da prisão, ele escreve sua carta à igreja de Filipos, sofria privações, estava em pobreza e a igreja de Filipos já o tinha socorrido duas vezes. Por isso, ele se mostra contente e faz seus agradecimentos aos filipenses em sua carta.

“10 Alegrei-me, sobremaneira, no Senhor porque, agora, uma vez mais, renovastes a meu favor o vosso cuidado; o qual também já tínheis antes, mas vos faltava oportunidade. 11 Digo isto, não por causa da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. 12 Tanto sei estar humilhado como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de abundância como de escassez; 13 tudo posso naquele que me fortalece.” (Fp 4:10-13, grifo nosso).

Tudo posso naquele que me fortalece! Esta é uma expressão muito utilizada no meio evangélico como demonstração de força e otimismo para conquistar seus objetivos terrenos e, muitas vezes, gananciosos. Porém, o seu contexto aponta em direção contrária. Paulo olha para o seu passado e mostra que aprendeu a viver contente, seja na riqueza ou na pobreza, seja na fartura ou na escassez. Sua afirmação revela que aprendeu a buscar forças em Deus para não cair no momento de riqueza e para não abandonar a fé no momento de pobreza. Ele estava pronto para enfrentar alegremente qualquer situação, inclusive a que ele estava passando naquele momento.

Em outras palavras, Paulo estava dizendo: “agora que já fui experimentado, o sofrimento presente não mais me abala – se Jesus me fortalece, estou pronto para enfrentar estas cadeias sem murmurar”. Assim, mesmo vivendo momentos difíceis, Paulo estava cheio de gratidão e testemunhando que nada lhe faltou – estava suprido e certo de que Deus recompensaria os irmãos de Filipos por sua generosidade no tocante a socorrer os necessitados.

“14 Todavia, fizestes bem, associando-vos na minha tribulação. 15 E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros; 16 porque até para Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. 17 Não que eu procure o donativo, mas o que realmente me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito. 18 Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. 19 E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades.” (Fp 4:14-19, grifo nosso).

É importante notar que, nas primeiras cartas, Paulo estava livre e podia trabalhar. Nessa circunstância, ele reconhecia o direito dos trabalhadores do reino, mas recomendava que cada um trabalhasse pelo seu próprio sustento e que não vivesse às custas da igreja, assim como ele mesmo estava dando o exemplo. Todavia, Paulo foi forçado a aceitar o sustento da igreja em razão de suas cadeias. E é exatamente nesse momento, em seus dois últimos anos de vida, antes de ser executado, que ele escreve sua primeira carta pastoral a Timóteo. Nesta epístola, Paulo torna a falar sobre a possibilidade dos ministros do evangelho serem sustentados pela igreja. O apóstolo utiliza, figuradamente, um preceito da Lei que protege o boi da covardia daqueles que amarravam suas bocas para que eles não comessem o trigo enquanto o trilhavam a serviço do agricultor. Também, baseado na Lei, afirma que o trabalhador é digno do seu salário.

“17 Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários os presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na palavra e no ensino. 18 Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi, quando pisa o trigo. E ainda: O trabalhador é digno do seu salário.” (1Tm 5:17-18, grifo nosso).

Por óbvio, como naquele momento o próprio Paulo estava sendo sustentado pela igreja, não faria sentido ele dizer o contrário. Ele sabia que, naquelas condições, o socorro era necessário. Foi exatamente nesse contexto, após dedicar-se plenamente ao Senhor até o fim de sua vida que, já velho e precisando de amparo, disse que aqueles que presidem bem e se afadigam na palavra e no ensino mereciam dobrados honorários. O exemplo do boi que podia comer enquanto pisava o trigo mostra que Paulo procurava garantir que os trabalhadores realmente necessitados como ele não fossem explorados e abandonados, pois eram merecedores do sustento que recebiam. Não deveriam, portanto, ser tratados como mendigos que imploram por esmolas, mas com dignidade e respeito pela nobreza de sua missão.

Se bem observarmos o texto e o seu contexto perceberemos que Paulo não estava estimulando o enriquecimento dos ministros do evangelho às custas da generosidade da igreja. Ao contrário, parece que as coisas andavam tão difíceis naquele tempo que Paulo apelava para a força da expressão “dobrados honorários” para que nenhum dos ministros da igreja, inclusive ele, passassem privações, fossem desprezados ou tratados como se vivessem de favores imerecidos.

Como disse Paulo aos romanos, “ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida.” (Rm 4:4). Quando a igreja retribui materialmente o seu pastor por sua dedicação aos santos, não está lhe fazendo um favor, mas pagando uma dívida para com ele. Foi assim que Paulo interpretou a dádiva recolhida dos irmãos para os necessitados da igreja de Jerusalém. Ele disse que os gentios haviam recebido valores espirituais dos judeus e, por isso, a ajuda material seria uma justa retribuição aos seus irmãos judeus (Rm 15:25-27). Fazendo uma transposição do ensino de Paulo para os nossos dias, podemos chegar à mesma conclusão. Os que presidem bem e dedicam suas vidas à causa do evangelho não devem ser desprezados, abandonados ou tratados como se não fossem dignos da justa retribuição por seus serviços.

A questão é: como interpretar os dobrados honorários nos dias de hoje? Interpretar essa expressão como “altos salários” e satisfação de luxos e extravagâncias é, no mínimo, retirar o texto de seu contexto. Por outro lado, mesmo que alguém entenda que os ministros do evangelho merecem altos salários, a pergunta que se segue é: isso convém? O próprio Paulo já havia deixado isso bem claro: nem tudo que é lícito convém. Especialmente em tempos onde a ganância tem escravizado o grupo evangélico e fomentado a exploração dos fiéis, os sinais exteriores de riqueza dos líderes religiosos, têm dado provas mais que suficientes que essas coisas têm sido motivo de escândalos e obstáculos à pregação do evangelho, cuja principal ordem é amar, dar-se, gastar-se em favor do rebanho, ou seja, visar ao interesse do outro e não o seu próprio. Paulo merecia ser honrado com riquezas e bens pelo legado que nos deixou, mas rejeitou tudo isso com as seguintes palavras: “considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo” (Fp 3:8, grifo nosso).

É preciso trabalhar para resgatar o evangelho simples, piedoso, despojado e de renúncia pessoal, que foi substituído pela religião empresarial, onde a igreja é um negócio, o evangelho é um produto e o fiel é um cliente.

Se alguém anda atrás de fortuna e conforto deve se entregar a uma profissão ou a um bom negócio, mas não a uma vocação espiritual.

Em uma avaliação sincera, podemos reconhecer três hipóteses que relacionam o trabalhador à sua recompensa.

A primeira, e melhor, é que todos os crentes trabalhem pelo seu próprio sustento, sem distinção, evitando a retirada de lucro ou de qualquer outro benefício ou proveito do serviço dedicado à causa do evangelho do Senhor Jesus.

Cada um trabalhe pelo seu sustento, inclusive os pastores, especialmente se desejam desfrutar de uma vida material regalada.

Convém que o pastor, ou líder, de uma congregação exercite o “[…] mais bem aventurado é dar do que receber” (At 20:35, grifo nosso) e doe-se pela causa da salvação, assim como fez Jesus, o profeta João Batista, Paulo e os demais apóstolos (Mt 19:27; Gl 1:3-4; Ef 5:2; 2Co 8:9; Tt 2:14). O serviço santo, em primeiro lugar, é uma vocação (1Co 1:26-29; 2Ts 1:11; 2Tm 1:8-9) para quem está em condições de abandonar o materialismo, a vaidade e renunciar às pretensões pessoais em favor de terceiros. A piedade não é fonte de lucro! Se alguém não é vocacionado, certamente não poderá suportar essa palavra.

A segunda hipótese, ainda aceitável, é que o trabalhador do reino (pastor, ou líder), receba justa retribuição, segundo o exemplo de Jesus e de Paulo, que necessitaram de auxílio voluntário para sua provisão. Importante notar que tanto Jesus como o apóstolo Paulo somente lançaram mão de valores essenciais ao seu sustento enquanto estavam a serviço do reino de Deus. Nenhum deles se enriqueceu ou usufruiu de conforto ou luxo com os recursos dos contribuintes. Tiraram exclusivamente o suficiente para suas necessidades básicas.

Os ministérios de Jesus e dos apóstolos são os exemplos a serem seguidos pelos vocacionados que desejam viver do evangelho.

Ou seja, a serviço do reino não há que se falar em exploração comercial, lucro, proveito pessoal ou altos salários, mas em provisão das necessidades básicas do trabalhador. Jesus, quando enviou seus discípulos para a missão, assegurou-lhes que a providência divina iria ampará-los por todo o tempo e que nada lhes faltaria. E assim aconteceu.

A terceira hipótese, antibíblica e, portanto, inaceitável, é a exploração da igreja (2Co 7:2; 2Co12:17-18). Tanto os evangelhos (Mt 21:12-13) como as epístolas afastam completamente a ideia da igreja ser tratada como se fosse uma empresa que, quanto mais cresce, mais rende lucro, luxo e honrarias aos seus donos. Desde as primeiras conversões, a igreja se alastrou pelo mundo, mas isso não rendeu riqueza material a nenhum dos apóstolos. Ao contrário disso, Paulo encerra seus dias pobre e encarcerado, mas glorificando a Deus pelo grande resultado alcançado e dizendo: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé.” (2Tm 4:7).

Assim, qualquer trabalho que alguém pretenda fazer para Deus, por vocação e com propósito de abençoar as pessoas, deve ser uma doação por uma causa nobre, onde o doador decide renunciar aos seus interesses pessoais e se dedicar à causa alheia com total desapego material. Se o objeto do negócio é espiritual ou religioso, não se pode tirar lucro ou proveito pessoal daí. Vale lembrar que a piedade, no sentido de devoção a Deus ou à causa religiosa, não pode ser pretexto para a obtenção de lucro ou qualquer tipo de proveito pessoal que não seja espiritual!

Matthew Henry, em seu comentário bíblico ao Novo Testamento sabiamente afirmou que “Alguns consideram o cristianismo uma ocupação vantajosa para este mundo. Da forma como entendem isso é falso; no entanto, é indubitavelmente verdade que, embora o cristianismo seja o pior negócio, é o melhor chamado no mundo. Aqueles que fazem um negócio dele, meramente para servir seus interesses neste mundo, serão desapontados, e o considerarão um negócio triste; mas esses que o consideram seu chamado, e aí fazem dele o seu negócio, descobrirão que é um negócio rentável, porque tem a promessa de vida agora, bem como da vida futura” (HENRY, 2008, p. 701, grifo nosso).

João Batista seguiu essa mesma linha de raciocínio e abdicou de interesses pessoais, renunciou à vaidade e desapegou-se do materialismo para cumprir sua missão. Paulo, mesmo entendendo justa a retribuição aos trabalhadores da causa do evangelho, afirmou que o melhor a se fazer é abdicar desse direito e trabalhar para o seu sustento próprio, uma vez que não convém lançar esse peso sobre a igreja, especialmente quando se pode trabalhar para o seu próprio sustento. Somente na impossibilidade de se exercer o seu ofício é que se deve contar com o socorro da igreja. E isso apenas para a provisão das necessidades básicas, como aconteceu com Paulo durante o período em que sua liberdade de ir e vir lhe foi tirada. Somente nessa circunstância ele admitiu a ajuda para suas despesas pessoais, inclusive para pagar o aluguel da casa onde esteve preso.

Por último, transportando esses exemplos para a atualidade, até podemos entender aceitável que um ministro viva do evangelho, dedicado ao ensino e à assistência aos santos. Mas, entre as hipóteses possíveis, essa deve ser a última a ser considerada. E, neste caso, não é razoável e nem convém que ele tire além do necessário às suas necessidades básicas.

O serviço santo deve ser exercido por vocação e não como oportunidade de projeção pessoal e de enriquecimento.

 Qualquer proveito pessoal que se tire de um serviço pela causa do evangelho, e que vá além da provisão básica, não é amparada pelos ensinamentos e exemplos de Jesus, de João Batista, de Paulo ou dos demais apóstolos. E isso vale para todos que comercializam produtos da fé cristã, sejam músicas, mensagens, cursos, palestras, indulgências ou ministrações. A ordem do Mestre é “8 Curai enfermos, ressuscitai mortos, purificai leprosos, expeli demônios; de graça recebestes, de graça dai.” (Mt 10:8, grifo nosso). “3 Ide […] 4 não leveis bolsa, nem alforje, nem sandálias […] 5 Ao entrardes numa casa […] 7 permanecei na mesma casa, comendo e bebendo do que eles tiverem […].” (Lc 10:3-7, grifo nosso). Se alguém não é vocacionado, não foi chamado e não foi enviado, certamente não poderá receber esta palavra.

Exploradores da fé

Jesus e os apóstolos nos entregaram de graça todos os seus ensinamentos. Recebemos, ainda, gratuitamente, o Espírito Santo, seus dons e poder, além dos dons naturais que Deus nos deu quando nascemos. Como disse Tiago: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1:17, grifo nosso). Não pagamos nada pelas dádivas que recebemos. Ao contrário, Jesus e os apóstolos pagaram um alto preço para que tivéssemos o que temos hoje. E se temos consciência de que recebemos todas essas coisas, devemos, também, saber que os discípulos de Cristo receberam uma missão e um exemplo a seguir, assim como fez Paulo que entendeu que sua vocação se lhe tornou obrigação:

 

“16 Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho! 17 Se o faço de livre vontade, tenho galardão; mas, se constrangido, é, então, a responsabilidade de despenseiro que me está confiada. 18 Nesse caso, qual é o meu galardão? É que, evangelizando, proponha, de graça, o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá.” (1Co 9:16-18, grifo nosso).

Não obstante todos os ensinamentos que estavam sendo transmitidos às igrejas, ao escrever aos coríntios, Paulo prevê o que os futuros ministros do evangelho fariam com as dádivas que receberam de graça. Na verdade, ele já estava tendo problemas com a invasão dos judaizantes, que provavelmente arrancavam do povo o máximo de dinheiro que podiam (2Co 11:7-12,20; 12:14). Esses falsos pastores haviam empregado métodos astutos para manipular a igreja (2Co 4:2), mas Paulo fora sincero e os havia tratado sem dolo algum.

Em 2Co 11:20, Paulo apresenta uma lista das diversas maneiras como os judaizantes eram arrogantes e estavam se aproveitando da igreja enquanto eram bem quistos por todos. Paulo os denuncia e mostra que o verdadeiro ministro do evangelho de Cristo revela o amor ágape em seus atos:

“20 Tolerais quem vos escravize, quem vos devore, quem vos detenha, quem se exalte, quem vos esbofeteie no rosto. 21 Ingloriamente o confesso, como se fôramos fracos. Mas, naquilo em que qualquer tem ousadia (com insensatez o afirmo), também eu a tenho. 22 São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São da descendência de Abraão? Também eu. 23 São ministros de Cristo? (Falo como fora de mim.) Eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; muito mais em prisões; em açoites, sem medida; em perigos de morte, muitas vezes.” (2Co 11:20-23, grifo nosso).

Com base no texto citado, vejamos, agora, mais detidamente o que faz um impostor (WIERSBE, 2006).

Escraviza

Wiersbe (2006) esclarece que os judaizantes ensinavam uma doutrina legalista onde a obediência decorre do medo e não da submissão por amor, que é o objeto principal do evangelho da graça. Os cristãos de Corinto, como nós hoje, precisavam encarecidamente das bênçãos da graça, do amor e da comunhão. Mas, os falsos apóstolos enfatizavam a Lei em vez da graça, a exclusividade em vez do amor e a independência em vez da comunhão.

Devora

“Abocanhavam” tudo o que podiam da igreja, sob o pretexto da honra e do privilégio de receber sustento material. Os judaizantes eram os culpados de “mercadejar o evangelho” visando o lucro pessoal. Paulo havia lhes pregado o evangelho “gratuitamente” (2Co 11:7), literalmente, “sem qualquer custo”, mas os falsos mestres pregavam um falso evangelho – e roubavam da igreja. Paulo chega a usar um toque de ironia em 2Co 11:8: “Despojei outras igrejas, recebendo salário, para vos poder servir”. Agora, os judaizantes estavam, de fato, despojando os coríntios. Mas, Paulo não trata da questão de dinheiro a fim de se gabar. Na realidade, está usando todos os meios possíveis para calar a jactância desses impostores.

Detém o verdadeiro evangelho

Nesse caso, o verbo no original grego “deter” tem o sentido de “enganar”. A imagem é de um pássaro preso em uma armadilha ou de um peixe enroscado num anzol. “Lançaram a isca e fisgaram vocês!” Os judaizantes haviam assumido o controle da igreja. Quando os coríntios ouviram os “relatórios” daquilo que esses mestres haviam feito e viram suas “cartas de recomendação”, deixaram-se encantar por eles. Em decorrência disso, Paulo e seu ministério ficaram parecendo pequenos e fracassados. Assim, os coríntios deixavam de prosseguir no evangelho de Cristo para seguir outro evangelho.

Exalta-se

Ainda, segundo Wiersbe (2006), os judaizantes exaltavam a si mesmos como superapóstolos e gostavam de ser honrados e tratados com distinção. Assim como algumas das “grandes personalidades religiosas” de hoje, eles impressionavam o povo com suas habilidades e palavras poderosas. Criaram uma imagem para o grupo em que eles pertenciam a uma “sociedade admirável”, que determinava os próprios parâmetros e os aplicava na avaliação de todos ao seu redor. É evidente que os membros desse grupo eram bem-sucedidos, enquanto os de fora não passavam de fracassados. Paulo não fazia parte dessa “sociedade” e, portanto, era considerado um fracassado. Se esses líderes houvessem usado Jesus Cristo como seu parâmetro (Ef 4:12-16), tudo teria sido diferente.

Esbofeteia

É provável que se trate de uma referência a coação moral e não a violência física. Os judaizantes não hesitavam em humilhar os coríntios em público por aquilo que consideravam falhas. Eram especialistas em avaliar e exaltar seus próprios ministérios e desmerecer os outros. É muito mais fácil medir sua religião com várias atividades exteriores do que uma fé que envolve a transformação interior. Influenciados por falsos mestres, os coríntios julgavam o ministério de Paulo só pela aparência, e contrastavam sua mansidão com a personalidade poderosa dos judaizantes. Assim, chegaram à conclusão de que Paulo não possuía autoridade alguma. Suas cartas eram enérgicas, mas sua aparência física era fraca e seu discurso não impressionava ninguém. Estavam avaliando o apóstolo e seus seguidores “segundo a carne” (2Co 10:3), não segundo o Espírito.

Paulo termina sua exposição das atitudes e ações nada espirituais dos judaizantes com um pouco de “ironia inspirada”: “Ingloriamente o confesso, como se fôramos fracos [demais para tais coisas] […]” (2Co 11:21). Os coríntios pensavam que a mansidão de Paulo era um sinal de fraqueza, quando, na verdade, era parte de sua força. No entanto, pensavam que a arrogância dos judaizantes era sinal de poder.

Por isso, na última seção de sua segunda carta aos coríntios, Paulo desafia os rebeldes da igreja – inclusive os falsos mestres – e reafirma seu ministério apostólico. Ao ler 2Co 10:1-13:10, vê-se Paulo se referindo diretamente a seus acusadores (2Co 10:7,10-12; 11:4,20-23, por exemplo) e respondendo a suas falsas incriminações. Ele não esconde o fato de que os judaizantes na igreja eram ministros de Satanás que desejam destruir a obra de Deus (2Co 11:12-15).

Ao combater a astúcia dos judaizantes, Paulo tenta proteger a igreja e o verdadeiro evangelho dos exploradores da fé, que deturpavam os ensinamentos que eles antes haviam recebido para substituí-los por mensagens que não condiziam com os princípios de Jesus. Paulo admira-se do modo como impostores vaidosos e arrogantes estavam sendo tolerados pelos cristãos ao passo que o ministério simples, puro e verdadeiro estava sendo abandonado:

“3 Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo. 4 Se, na verdade, vindo alguém, prega outro Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente que não tendes recebido, ou evangelho diferente que não tendes abraçado, a esse, de boa mente, o tolerais. 5 Porque suponho em nada ter sido inferior a esses tais apóstolos.” (2Co 11:3-5, grifo nosso).

Paulo, teve que enfatizar a diferença entre os verdadeiros e os falsos ministros do evangelho. Usando sua própria pessoa como referência e exemplo, apresenta suas credenciais: homem simples e humilde que se doa pela igreja e não cobra absolutamente nada por isso. Até mesmo quando necessitou, refere-se ao salário que recebeu para chegar até eles sem lhes impor peso algum. O salário a que Paulo se referiu foi o sustento que recebeu dos irmãos da Macedônia até que pudesse se estabelecer por sua própria conta.

“7 Cometi eu, porventura, algum pecado pelo fato de viver humildemente, para que fôsseis vós exaltados, visto que gratuitamente vos anunciei o evangelho de Deus? 8 Despojei outras igrejas, recebendo salário, para vos poder servir, 9 e, estando entre vós, ao passar privações, não me fiz pesado a ninguém; pois os irmãos, quando vieram da Macedônia, supriram o que me faltava; e, em tudo, me guardei e me guardarei de vos ser pesado.” (2Co 11:7-9).

É importante observar que Paulo, enquanto estava em Corinto, não era um assalariado de outras igrejas, tanto que lá passou por privações e viveu humildemente, exercendo seu ofício e dedicando-se à propagação do evangelho.

“1 Depois disto, deixando Paulo Atenas, partiu para Corinto. 2 Lá, encontrou certo judeu chamado Áqüila, natural do Ponto, recentemente chegado da Itália, com Priscila, sua mulher, em vista de ter Cláudio decretado que todos os judeus se retirassem de Roma. Paulo aproximou-se deles. 3 E, posto que eram do mesmo ofício, passou a morar com eles e ali trabalhava, pois a profissão deles era fazer tendas. 4 E todos os sábados discorria na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos.” (At 18:1-4, grifo nosso).

Como visto, os coríntios não tiverem de pagar coisa alguma para receber os benefícios do ministério apostólico desse grande homem de Deus e, mesmo assim, a maioria dos coríntios não deu o devido valor aos sacrifícios que Paulo fez por eles.

Os coríntios, como acontece hoje, apreciavam mais a opulência dos judaizantes que lhes vendiam um antievangelho com muita empáfia e menosprezavam a simplicidade e pobreza material dos verdadeiros apóstolos.

Mas, as falsas impressões causadas na mente dos coríntios pelos judaizantes não intimidavam o apóstolo Paulo. Ele sabia que estava defendendo a verdade com sua mensagem e com seu exemplo. Assim, esperava cortar (fazer cessar) a atividade dos falsos apóstolos que se passam por verdadeiros.

“10 A verdade de Cristo está em mim; por isso, não me será tirada esta glória nas regiões da Acaia. 11 Por que razão? É porque não vos amo? Deus o sabe. 12 Mas o que faço e farei é para cortar ocasião àqueles que a buscam com o intuito de serem considerados iguais a nós, naquilo em que se gloriam. 13 Porque os tais são falsos apóstolos, obreiros fraudulentos, transformando-se em apóstolos de Cristo. 14 E não é de admirar, porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz. 15 Não é muito, pois, que os seus próprios ministros se transformem em ministros de justiça; e o fim deles será conforme as suas obras.” (2Co 11:10-15, grifo nosso).

Por fim, Paulo afirma que foi forçado a ser insensato e a falar de si mesmo, como se estivesse se gloriando, porque tinha que combater os cristãos judaizantes que se gloriavam de seus feitos e exploravam as igrejas. Por isso, Paulo decide falar um pouco sobre o modo como estava vivendo, suprido, protegido e preservado por Deus e, além disso, tendo sido elevado ao terceiro céu. Fez isso para mostrar que ele era digno de aceitação como apóstolo de Cristo. Paulo não os explorava como outros fizeram. Ao contrário, ele havia se entregado por amor. Se outros foram dignos de acolhida entre os coríntios, ele muito mais.

“11 Tenho-me tornado insensato; a isto me constrangestes. Eu devia ter sido louvado por vós; porquanto em nada fui inferior a esses tais apóstolos, ainda que nada sou. 12 Pois as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda a persistência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos. 13 Porque, em que tendes vós sido inferiores às demais igrejas, senão neste fato de não vos ter sido pesado? Perdoai-me esta injustiça. 14 Eis que, pela terceira vez, estou pronto a ir ter convosco e não vos serei pesado; pois não vou atrás dos vossos bens, mas procuro a vós outros. Não devem os filhos entesourar para os pais, mas os pais, para os filhos. 15 Eu de boa vontade me gastarei e ainda me deixarei gastar em prol da vossa alma. Se mais vos amo, serei menos amado? 16 Pois seja assim, eu não vos fui pesado; porém, sendo astuto, vos prendi com dolo. 17 Porventura, vos explorei por intermédio de algum daqueles que vos enviei? 18 Roguei a Tito e enviei com ele outro irmão; porventura, Tito vos explorou? Acaso, não temos andado no mesmo espírito? Não seguimos nas mesmas pisadas?” (2Co 12:11-18, grifo nosso).

Ao tempo que Paulo fala do seu proceder, está indicando as obras dos impostores, apóstolos fraudulentos. De fato, tal como Paulo, eles eram hebreus, israelitas, descendentes de Abraão e haviam sido reconhecidos como ministros de Cristo (2Co 11:22-23). Entretanto, genealogia, origem ou título prevalecem sobre o fruto que cada um produz. O fato é que os judaizantes não produziam o fruto do amor, pois exploravam a igreja e andavam atrás de seus bens, sendo pesados com suas imposições.

Enfim, na verdade, Paulo estava demonstrando a diferença entre os frutos de um verdadeiro e de um falso ministro de Cristo. E, com bastante clareza, ele afirma que os impostores andam atrás dos bens da igreja, servindo-se dela, explorando os irmãos, introduzindo um evangelho adulterado, egoísta, avarento, vaidoso de autopromoção às custas da ignorância daqueles que se deixam levar por uma bela apresentação e uma retórica convincente e bem elaborada. Ao denunciar as obras dos judaizantes, Paulo estava apenas reafirmando as palavras do mestre Jesus:

“15 Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores. 16 Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? 17 Assim, toda árvore boa produz bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. 18 Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons. 19 Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo. 20 Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis.” (Mt 7:15-20, grifo nosso).

Por fim, apenas a título de ilustração, para quem conhece o ambiente evangélico hodierno, certamente se lembrará de uma quantidade de pessoas que, ainda que de modo aparentemente piedoso, cantam por dinheiro, tocam instrumentos musicais por dinheiro, pregam por dinheiro e distribuem material de conteúdo cristão por dinheiro. Isso nada mais é que comércio de bens e serviços, uma vez que há lucros envolvidos.

Hoje, não faltam homens e mulheres talentosos, inteligentes, conhecedores da Bíblia e até humoristas que andam de igreja em igreja e de show em show com suas apresentações para “abençoar o povo de Deus”, mas recebendo dinheiro e lucros por isso.

Onde estará o galardão destes homens e destas mulheres? O de Paulo, segundo ele próprio afirmou “É que, evangelizando, proponha, de graça, o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá.” (1Co 9:18, grifo nosso). Somente um vocacionado pode receber esta instrução.

Falsos mestres

Por volta do ano 57, Paulo já havia advertido os coríntios sobre os falsos mestres, mas reforça sua exposição da vontade de Deus ao final de seu ministério. Ao escrever a Timóteo sua primeira carta pastoral, quase 10 anos mais tarde, precisamente no capítulo 6, o apóstolo usa um tom militar, com termos como “Combate o bom combate da fé […]” (1Tm 6:12), “Exorto-te [Ordeno-te] […]” (1Tm 6:13), “Exorta [Ordena] aos ricos […]” (1Tm 6:17), “E tu, ó Timóteo, guarda o que te foi confiado […]” (1Tm 6:20). O vigor de suas palavras denota Paulo como um general, transmitindo a Timóteo ordens do Senhor, o Comandante Supremo.

Logo no início de sua carta, Paulo faz advertências sobre os falsos mestres (1Tm 1:3ss) e chegou a refutar alguns de seus ensinamentos perniciosos (1Tm 4:1ss), registrando que “o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios,” (1Tm 4:1, grifo nosso). O alerta é urgente e merece especial atenção. Ninguém se engane! Ensinamentos de demônios seriam introduzidos nas igrejas por falsos mestres. Os líderes espirituais da igreja precisam estar atentos! (At 20:28-32). As características desses falsos mestres são apresentadas:

“3 Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, 4 é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas, 5 altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é fonte de lucro.” (1Tm 6:3-5, grifo nosso).

A primeira característica é afastar-se dos ensinamentos de Jesus e do ensino segundo a piedade. Normalmente, troca-se as palavras e exemplos do Mestre por passagens do Velho Testamento ou por visões e revelações. No lugar da simplicidade de vida do Nazareno, envolve-se a igreja com um desejo incontido pelas riquezas de Abraão, de Davi e de Salomão. Junto a esse desejo vem a ganância, o egoísmo e o desinteresse pela piedade.

Antes mesmo de Jesus, Isaías já ensinava como testar um ensino novo: “À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira [de acordo com esta palavra], jamais verão a alva.” (Is 8:20). À Timóteo, Paulo igualmente ordena: “Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus.” (2Tm 1:13).

 

Outra característica dos falsos mestres é a sua atitude soberba. Ele é orgulhoso e, no entanto, seu orgulho é infundado, pois ele não sabe coisa alguma (1Tm 1:7; 6:4). Um cristão que compreende a Palavra de Deus não possui um ego inflado (Dn 9:1-20). Até no ato de pedir, nota-se a soberba dos falsos mestres, que ensinam os fiéis a exigirem de Deus o que acham que têm direito de receber, como se Deus estivesse sujeito à interpretação pervertida de sua Palavra.

Essa atitude “enfatuada” leva o falso mestre a discutir questões secundárias com respeito a “palavras”, como é o caso da substituição do “pedir” por “exigir”. O resultado desse tipo de ensinamento não espiritual é “[…] inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim […]” (1Tm 6:4b-5a). A astúcia dos falsos mestres está no modo como manipulam a palavra de Deus e conduzem os seus alunos ao engano. Ao passo que absorvem a mentira, são “[…] privados da verdade […]” (1Tm 6:5) enquanto acreditam estar descobrindo a verdade! Pensam que nas suas reuniões semanais, onde compartilham suas descobertas, estão crescendo na graça, quando, na verdade, estão se afastando do caráter de Cristo.

Por último, é de se notar que o motivo dos ensinamentos distorcidos é explorar os ouvintes, levando-os a contribuir ao máximo, mas pela causa errada. Esses falsos mestres utilizavam a “piedade como fonte de lucro”. O termo grego traduzido por “piedade” (1Tm 6:5) refere-se também à “profissão da fé cristã”, “religiosidade” e não à vida autêntica de santidade pelo poder do Espírito. Ou seja, os falsos mestres usavam sua profissão religiosa como um meio de ganhar dinheiro. O que faziam não era um ministério real, mas apenas um negócio religioso.

Como já vimos, nem Jesus, nem João Batista, nem Paulo ou qualquer outro apóstolo, valeram-se de suas vocações como um meio de ganhar dinheiro. Ao escrever aos Tessalonicenses, por exemplo, Paulo diz: “A verdade é que nunca usamos de linguagem de bajulação, como sabeis, nem de intuitos gananciosos. Deus disto é testemunha.” (1Ts 2:5, grifo nosso).

A riqueza e a fé nas epístolas

É possível ser rico e servo de Deus? Sim, mas não explorando a fé, a pretexto de uma vocação particular para “abençoar” a igreja. Se alguém quer ficar rico, deve escolher alguma atividade profissional que lhe proporcione altos rendimentos e lucros. Uma vez que isso fique bem claro, basta observar o que Paulo orienta a Timóteo sobre aqueles que querem enriquecer. Estes não devem se tornar orgulhosos, exibicionistas, apoiados em seus bens e mesquinhos. Antes, devem ser humildes, confiados em Deus e generosos para com os necessitados. Assim, ajuntarão um tesouro no céu (1Tm 6:19), como já vimos no capítulo sete deste livro.

Eis o alerta! Amar o dinheiro é perigoso e poucos percebem que estão agindo assim, por isso precisam ser advertidos. As riquezas podem atrair as pessoas a um mundo de fantasia, repleto de prazeres superficiais. Por outro lado, as riquezas somadas à vontade de Deus podem conduzir a uma vida real e a um ministério duradouro.

Evidentemente, este alerta dirigido a Timóteo nos inclui, especialmente se estamos trabalhando e queremos prosperar, mas não a qualquer custo. Sabemos que a Bíblia condena quem obtém riquezas por meios ilegais. Devemos aprender a prosperar com a sabedoria bíblica: “Os bens que facilmente se ganham, esses diminuem, mas o que ajunta à força do trabalho terá aumento” (Pv 13:11). É “[…] a mão dos diligentes [que] vem a enriquecer-se” (Pv 10:4). “Não te fatigues para seres rico […]” (Pv 23:4). Devemos colocar Deus em primeiro lugar na vida, e ele providenciará para que sempre tenhamos, no mínimo, o suficiente para vivermos dignamente (Mt 6:33).

Se já sabemos como alcançar prosperidade dignamente (trabalhando honestamente e não explorando os cristãos), devemos atentar para as orientações de Paulo aos que enriquecem:

“17 Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento; 18 que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar e prontos a repartir; 19 que acumulem para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida.” (1Tm 6:17-19).

Humildade

Paulo adverte: “Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos […]” (1Tm 6:17a, grifo nosso). Se a riqueza torna alguém orgulhoso, isso mostra que não compreendeu a si mesmo nem sua riqueza. “Antes, te lembrarás do SENHOR, teu Deus, porque é ele o que te dá força para adquirires riquezas” (Dt 8:18). Não somos proprietários, apenas despenseiros. Se temos riquezas, é pela bondade de Deus, não por algum mérito especial de nossa parte. A posse de bens materiais deve tornar a pessoa humilde e levá-la a glorificar a Deus, não a si mesma.

Confiança em Deus, não nas riquezas

Na sequência, o apóstolo ordena a exortação aos ricos para que “[…] nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus” (1Tm 6:17b, grifo nosso). O fazendeiro rico da parábola de Jesus (Lc 12:16-21) pensou que sua riqueza representava segurança, quando na realidade, era evidência de sua insegurança. Ele não estava confiando em Deus de coração. As riquezas são incertas, não apenas em seu valor (que muda constantemente), mas também em sua durabilidade. Os ladrões podem roubar os bens, os investimentos podem desvalorizar e o tempo pode corroer casas e carros. Se Deus nos der riquezas, devemos aumentar a nossa confiança nele, o doador, e não nas dádivas.

Uso consciente da riqueza

Quanto ao uso das riquezas, Paulo conclui: “[Deus]: tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento; [os ricos]: pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar e prontos a repartir; acumulem para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida.” (1Tm 6:17c-19, grifo nosso).

Sim, a palavra “aprazimento” nos mostra que seja o que for que tenhamos, consideremos isso uma dádiva de Deus e aproveitemos com graças e não com “hedonismo” pecaminoso ou vivendo em função dos prazeres da vida. Significa que devemos valorizar o que Deus nos deu e usar do melhor modo possível, sem cair nas armadilhas do Diabo. Segundo Paulo, devemos usar as riquezas para fazer o bem a outros e compartilhando com os necessitados.

Quando Paulo diz “acumulem para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o futuro”, evidentemente está se referindo ao tesouro no céu, reafirmando a mensagem do mestre Jesus.

Por isso, temos que ser achados fieis ao desfrutarmos o que recebemos, enquanto podemos, seja pouco ou muito (Lc 16:10). Mas, independentemente do que alcançarmos, não devemos esquecer de observar os propósitos de Deus e os princípios que nos foram ensinados por Jesus.

Ganância e materialismo

Bem sabemos que possuir fortuna não é pecado, mas aquele que se apega a qualquer bocado de dinheiro corre grande risco não só de pecar, mas de se afastar de Deus e da salvação eterna. Sabendo disso, Paulo, já bastante experimentado no trato com as igrejas, aborda a questão do dinheiro, da ganância e do materialismo ao escrever a Timóteo:

“6 De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento. 7 Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. 8 Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. 9 Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. 10 Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores. 11 Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão. 12 Combate o bom combate da fé. Toma posse da vida eterna, para a qual também foste chamado e de que fizeste a boa confissão perante muitas testemunhas.” (1Tm 6:6-12, grifo nosso).

Com base nessas advertências sobre os perigos da ganância, podemos extrair alguns ensinamentos apostólicos importantes, os quais serão apresentados a seguir com comentários de Wiersbe (2006, p. 305-306), aos quais fizemos acréscimos, supressões e ajustes:

A riqueza não traz contentamento

O termo “contentamento” significa “uma suficiência interior que nos mantém em paz apesar das circunstâncias exteriores”. Paulo usa a mesma palavra quando diz: “Porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação” (Fp 4:11). O verdadeiro contentamento vem da piedade no coração, não do dinheiro na mão. A pessoa que depende de bens materiais para ter paz e segurança nunca ficará satisfeita, pois as coisas sempre acabam perdendo seu atrativo. Se Paulo aprendeu a viver contente, e não revoltado, mesmo em momentos de necessidade extrema, qualquer um pode aprender também, desde que se fixe nos exemplos corretos.

A riqueza não é duradoura

Em 1Tm 6:7, podemos lembrar das palavras de Jó quando estava em grande agonia. “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei […]” (Jó 1:21). Quando uma pessoa morre e o espírito deixa o corpo, não pode levar coisa alguma consigo, pois ao vir ao mundo nada trouxe. Todos os seus bens vão para seus herdeiros, para o governo ou, talvez, para organizações filantrópicas e para a igreja. A resposta à pergunta: “quanto ele deixou?”, é de conhecimento geral: tudo!

O firme propósito de enriquecer abre portas ao pecado

A tradução exata da primeira parte de 1Tm 6:9 é: “os que ficarão ricos” e descreve pessoas que precisam de cada vez mais coisas para ser felizes e se sentirem bem-sucedidas. Mas, as riquezas são uma armadilha; conduzem à escravidão, não à liberdade. Em vez de saciar, as riquezas criam outras concupiscências (desejos) a serem satisfeitas. Paulo dá uma descrição vívida dos resultados: “muitas concupiscências insensatas e perniciosas […] afogam os homens na ruína e perdição.” (1 Tm 6:9).

Tal como o pecado da mentira de Ananias e Safira (At 5:3-9) foi provocado pelo amor que tiveram pelo dinheiro, assim, muitos homens estão sendo conduzidos ao pecado pelo apego aos seus bens materiais. Há quem negue o amor ágape porque não podem suportar a ideia de ter que repartir um pouco do que tem com os mais necessitados que ele. Há líderes religiosos que manipulam grande quantidade de dinheiro, mas priorizam as compras de lotes, as construções e as reformas em vez de primeiramente atender às necessidades dos membros da igreja. Sequer cogitam essa possibilidade. Fazem assim sob o pretexto de estarem expandindo o seu ministério e, consequentemente, o número de salvos. Entretanto, se observarmos bem, a vaidade, a ganância e o amor ao dinheiro é o verdadeiro motivo da ânsia de expansão.

É bom lembrar que a igreja primitiva expandiu sem negligenciar o cuidado com os necessitados. Para isso, inclusive, foram separados diáconos, que não podiam ser cobiçosos de sórdida ganância (1Tm 3:8), uma vez que eram responsáveis pela distribuição diária de alimentos às viúvas (At 6:1-3), verdadeiramente viúvas (1Tm 5:3-5). Assim, exercendo a piedade e o amor ágape, a igreja do livro de Atos dos Apóstolos crescia e seus líderes não podiam ser acusados do pecado da negligência, cuja condenação foi expressamente descrita por Jesus em Mt 25:31-46.

Toda riqueza é indigna se obtida com desonestidade. Aí se inclui quem usa a igreja como fachada para obter riquezas e para o desenvolvimento de vaidades pessoais. Mesmo na hipótese em que o ministro de Deus necessita de sustento da igreja, deve cuidar para que sua motivação para trabalhar não seja o alimento que recebe. Se fosse, ele seria apenas um “mercenário”, não um verdadeiro pastor (Jo 10:11-14). Ao pastor não convém perguntar: “Quanto vou ganhar com isso?”, mas sim: “Quanto posso dar?”

 

Riqueza e injustiça

Mas, não foi somente Jesus e Paulo que lançaram alerta quanto ao modo de se obter e utilizar as riquezas deste mundo. Tiago, depois da morte de Paulo, também faz séria admoestação aos judeus, especialmente aos desonestos.

“1 Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão. 2 As vossas riquezas estão corruptas, e as vossas roupagens, comidas de traça; 3 o vosso ouro e a vossa prata foram gastos de ferrugens, e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra vós mesmos e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros acumulastes nos últimos dias. 4 Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. 5 Tendes vivido regaladamente sobre a terra; tendes vivido nos prazeres; tendes engordado o vosso coração, em dia de matança; 6 tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resistência.” (Tg 5:1-6, grifo nosso).

Os judeus aos quais Tiago se dirige eram homens ricos, e suas riquezas eram pecaminosas. Usavam seus bens para propósitos egoístas e, enquanto isso, perseguiam os pobres. Muitos destes nem mesmo recebiam seus salários (Tg 5:4) e suas aflições chegavam a Deus pelo clamor dos trabalhadores explorados e enganados e aviltados. Tiago não diz que é pecado ser rico. Afinal, Abraão era rico e, no entanto, andava com Deus e foi grandemente usado por Deus para abençoar o mundo inteiro. A preocupação de Tiago era com o egoísmo dos ricos, e ele os aconselha a “[chorar] lamentando”, uma exortação para a qual apresenta três motivos.

A forma injusta de obter a riqueza

A Bíblia não proíbe a aquisição de bens. Como já vimos, as coisas não são boas nem más em si mesmas. O que as tornam boas ou más são as intenções de que quem as utiliza e o uso que fazem delas. Nas epístolas observamos que alguns cristãos possuíam casas, nas quais eles se encontravam e Pedro não repreendeu Ananias por não ter entregado todo o valor de sua propriedade, mas por ter mentido. Nessa passagem Pedro diz que Ananias estava livre para dar ou para reter o que possuía. Ele disse a Ananias: “ela não lhe pertencia? E, depois de vendida, o dinheiro não estava em seu poder? […]” (At 5:4).

Não encontramos nas epístolas proibição ao direito de possuir bens particulares ou de obter lucro, exceto em relação aos que trabalham exclusivamente pelo evangelho. Estes devem servir por vocação, entrega pessoal e resignação.

Mas, se não há proibição de enriquecimento, por outro lado, não é possível imaginar que um discípulo de Jesus venha a adquirir riquezas injustas, por meios ou para fins ilegais. O profeta Amós transmitiu uma mensagem severa de julgamento contra a classe rica que roubava dos pobres e usava a riqueza roubada para se cercar de luxos egoístas. Isaías e Jeremias também condenaram o egoísmo dos ricos e advertiram que o julgamento estava a caminho. É nesse mesmo tom que Tiago escreve e dá duas ilustrações de como os ricos obtiveram sua riqueza.

Retendo salários (Tg 5:4)

Os trabalhadores eram contratados e pagos por dia e não possuíam qualquer contrato legal com os empregadores. A parábola dos trabalhadores, em Mt 20:1-16, dá uma ideia de como funcionava o sistema naquela época. Em sua Lei, Deus deu instruções claras com respeito ao trabalhador a fim de protegê-la do empregador opressivo.

“14 Não oprimirás o jornaleiro pobre e necessitado, seja ele teu irmão ou estrangeiro que está na tua terra e na tua cidade. 15 No seu dia, lhe darás o seu salário, antes do pôr-do-sol, porquanto é pobre, e disso depende a sua vida; para que não clame contra ti ao SENHOR, e haja em ti pecado.” (Dt 24:14-15).

“13 Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás; a paga do jornaleiro não ficará contigo até pela manhã.” (Lv 19:13).

“13 Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos, sem direito! Que se vale do serviço do seu próximo, sem paga, e não lhe dá o salário.” (Jr 22:13).

Esses homens ricos haviam contratado trabalhadores e prometido pagar-lhes determinada quantia. Os empregados haviam concluído seu trabalho, mas não foram pagos. Isso é exploração e injustiça. O trabalho do pobre foi furtado. E a Lei de Deus é “não furtarás”. Além disso a palavra empenhada deve ser cumprida com verdade: “[…] sim, sim, não, não […]” (Mt 5:37). Como cristãos, temos a responsabilidade e o dever de pagarmos todas as nossas contas. Infelizmente, há alguns que não honram seus compromissos (fazer ou pagar) e nem mesmo se sentem envergonhados com isso.

Demandas judiciais (Tg 5:6a)

Ao passo que os ricos citados por Tiago eram injustos com seus serviçais, eram, também, os mesmos que arrastavam seus irmãos aos tribunais (Tg 2:6) e ali conseguiam condená-los. Ao que parece, no tempo de Tiago, era fácil os ricos controlarem os tribunais. Os trabalhadores pobres não tinham como pagar advogados caros e, portanto, sempre perdiam. Suas causas eram justas, mas não recebiam justiça. Antes, sofriam abusos e eram arruinados. O pobre não resistia ao rico, pois não tinha armas para lutar contra ele. Tudo o que podia fazer era clamar ao Senhor por justiça.

Hoje, de modo semelhante, são comuns as demandas judiciais envolvendo crentes que não aprenderam nada sobre honestidade e amor. Cada igreja é tão independente e autossuficiente que não há entre os cristãos nenhum conselho superior capaz de julgar suas causas e evitar que caiam nas mãos dos ímpios. Ninguém se submete a ninguém – são todos deuses! E como disse Paulo, isso envergonha o evangelho de Cristo e mostra a fragilidade da fé dos cristãos que estão apegados ao materialismo e não podem nem admitir a possibilidade de dano:

“1 Aventura-se algum de vós, tendo questão contra outro, a submetê-lo a juízo perante os injustos e não perante os santos? […] 4 Entretanto, vós, quando tendes a julgar negócios terrenos, constituís um tribunal daqueles que não têm nenhuma aceitação na igreja. 5 Para vergonha vo-lo digo. Não há, porventura, nem ao menos um sábio entre vós, que possa julgar no meio da irmandade? 6 Mas irá um irmão a juízo contra outro irmão, e isto perante incrédulos! 7 O só existir entre vós demandas já é completa derrota para vós outros. Por que não sofreis, antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes, o dano? 8 Mas vós mesmos fazeis a injustiça e fazeis o dano, e isto aos próprios irmãos! 9 Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, 10 nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus.” (1Co 6:1-10, grifo nosso).

Paulo diz que os que levam seus irmãos aos tribunais em busca de justiça são os próprios injustos aos olhos de Deus. E complementa: “os injustos não herdarão o reino de Deus”. Os injustos são equiparados aos impuros, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados e maldizentes.

De onde surgiu a injustiça? Do amor ao dinheiro.

 Normalmente, as demandas judiciais sempre envolvem questões patrimoniais, materiais ou financeiras. Esse apego desmedido ao dinheiro cega o homem e impede que ele leia ou compreenda a reprimenda de Deus que o espera: “[…] nem roubadores herdarão o reino de Deus.” (1Co 6:10).

Assim, certos ou errados, a demanda judicial entre crentes já mostra que espírito está operando em suas vidas: o espírito da ganância, do orgulho, da vaidade, da mentira, da injustiça e do materialismo desenfreado. Quem não pode sofrer o dano e a injustiça, também não está preparado para herdar o reino de Deus, “porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus.” (1Pe 2:19).

O uso injusto das riquezas

Como se não bastasse terem obtido suas riquezas de maneira pecaminosa, usavam-na de maneiras que só tornavam ainda maior seu pecado.

Acumulavam-nas (Tg 5:3-4)

É evidente que não há nada de errado em poupar. “[…] Não devem os filhos entesourar para os pais, mas os pais, para os filhos” (2Co 12:14). “Ora, se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos da própria casa, tem negado a fé e é pior do que o descrente.” (1Tm 5:8). “Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia com juros o que é meu.” (Mt 25:27).

Entretanto, é errado acumular riquezas enquanto se tem contas vencidas e não pagas, seja um empréstimo ou uma simples promessa feita e não cumprida. Esses ricos ajuntavam cereais, ouro e roupas. Pensavam que eram ricos porque tinham essas posses. Além de roubar e defraudar os pobres, eles acumulavam riquezas e não pagavam seus trabalhadores.

Em lugar de ajuntarem tesouros no céu usando suas riquezas para glória de Deus (Mt 6:19ss), guardavam seus bens egoisticamente para a própria segurança e prazer.

Viviam em meio ao luxo (Tg 5:5)

Tendes vivido regaladamente sobre a terra […].” (Tg 5:5, grifo nosso).

Luxo desnecessário é desperdício, e desperdício é pecado. Todos gostam de conforto e, sem dúvida, ninguém quer voltar aos tempos em que se vivia sem o auxílio da tecnologia. Mas é preciso reconhecer que existe um ponto de saturação. Como disse o quacre[9] a seu vizinho: “Dize-me que coisa te falta e eu te direi como viver sem ela”. Jesus disse: “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui.” (Lc 12:15). Esses homens ricos aos quais Tiago se dirige enriqueciam para sua própria destruição. O termo grego utilizado refere-se ao gado engordado para o abate.

Há grande diferença entre desfrutar o que Deus dá (1Tm 6:17) e viver de modo extravagante à custa do que sonegamos de outros. Mesmo que as riquezas tenham sido adquiridas honestamente e dentro da vontade de Deus, não se deve desperdiçá-las em um estilo de vida egoísta e exibicionista. Há necessidades demais para serem supridas! O luxo é capaz de destruir o caráter, pois leva a pessoa a entregar-se exclusivamente aos próprios prazeres. A combinação de caráter e de riqueza pode produzir muita coisa boa, enquanto a combinação de egoísmo e riqueza resulta em pecado. O homem rico descrito por Jesus em Lc 16:19-31 (o rico e Lázaro) teria se sentido em casa com os ricos para os quais Tiago escreveu!

O fim das riquezas injustas

Os ricos pensavam que seus bens lhes concediam toda segurança de que precisavam, mas não era assim que Deus via a situação. “[…] Chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão” (Tg 5:1). Tiago descreve as consequências do uso indevido das riquezas.

Desaparecerão (Tg 5:2-3a)

Os cereais apodrecerão (“corruptas”, segundo a tradução Sociedade Bíblica Britânica); o ouro oxidará; as vestes serão comidas por traças. Nenhum bem material no mundo dura para sempre. As sementes da morte e da deterioração estão presentes em toda a criação. É um grande erro pensar que as riquezas proporcionam segurança. Pouco depois de Tiago ter escrito esta carta, Jerusalém foi destruída pelos romanos, e todas essas riquezas foram levadas embora. E, como já vimos, Paulo ordena a Timóteo: “Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento.” (1Tm 6:17).

Corrompem o caráter (Tg 5:3)

“E a sua ferrugem há de […] devorar, como fogo, as vossas carnes” (Tg 5:3). Trata-se de um julgamento no presente: foram infectados pelo veneno das riquezas e estão sendo devorados vivos. O dinheiro em si não é pecaminoso; é neutro. Mas “o amor do dinheiro é raiz de todos os males” (1Tm 6:10). “Não cobiçarás” é o último dos Dez Mandamentos, mas trata do mais perigoso, pois a cobiça faz o indivíduo quebrar todos os demais mandamentos.

Abraão era um homem rico, mas manteve a fé e o caráter. Quando Ló adquiriu riquezas, elas arruinaram seu caráter e, por fim, sua família. É bom ter riquezas nas mãos, desde que não ocupem o coração. “[…] Se as vossas riquezas prosperam, não ponhais nelas o coração.” (Sl 62:10). “Mais vale o bom nome do que as muitas riquezas; e o ser estimado é melhor do que a prata e o ouro.” (Pv 22:1).

Aguardam julgamento certo (Tg 5:3,5)

Tiago não vê apenas o julgamento presente (a deterioração das riquezas e a corrupção do caráter), mas também um julgamento futuro diante de Deus. Jesus Cristo será o Juiz (Tg 5:9), e seu julgamento será justo. É interessante observar as testemunhas que Deus chamará no dia do julgamento. Primeiro, as riquezas dos ricos testificarão contra eles (Tg 5:3). Seus cereais podres, seu ouro e prata enferrujados e suas roupas comidas de traças darão testemunho do egoísmo de seu coração. Vemos aqui um toque de ironia: os ricos acumularam riquezas para ajudá-los, mas elas servem apenas para testificar contra eles.

Os salários que retiveram também testificarão contra eles no tribunal (Tg 5:4a). O dinheiro fala alto! Esses salários roubados clamam a Deus por justiça e julgamento. Deus ouviu o sangue de Abel clamar da terra (Gn 4:10), e também ouve esse dinheiro roubado clamar.

Os trabalhadores testificarão contra eles (Tg 5:4). Os ricos não terão oportunidade de subornar as testemunhas nem o Juiz. Deus ouve as súplicas dos oprimidos e julga com justiça. Esse julgamento é sério. Os perdidos serão colocados diante de Cristo no julgamento do grande trono branco (Ap 20:11-15). Os salvos comparecerão ao tribunal de Cristo (Rm 14:10-12; 2Co 5:9-10). Deus não julgará os pecados, pois já foram julgados na cruz; no entanto, julgará nossas obras e nosso ministério. Se tivermos sido fiéis em servi-lo e em glorificá-lo, receberemos a recompensa; se tivermos sido infiéis, perderemos a recompensa, mas não a salvação (1Co 3:1-15).

O fato extraordinário que somente um discípulo de Jesus pode compreender é que nós perdemos tudo o que retemos, mas conservamos o que entregamos a Deus. Foi o próprio Jesus quem disse que “Quem quiser preservar a sua vida perdê-la-á; e quem a perder de fato a salvará.” (Lc 17:33).

Aceitação da pobreza, com humildade, sem revolta

Na mesma linha de ensino de Jesus (Mt 6:24-33), Paulo afirma a Timóteo que, na medida em que temos a satisfação das necessidades básicas, não é razoável qualquer tipo de revolta contra Deus, pois deveríamos considerar isso como uma provisão de Deus a todos os que buscam sua face.

“8 Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes.” (1Tm 6:8, grifo nosso).

Afasta-se, pois, dos princípios de Jesus toda pseudo pregação do evangelho que ensine os cristãos a se revoltarem contra a situação em que vivem, sob o argumento de que, em outras palavras, Deus está obrigado a cumprir na vida do cristão a promessa feita aos hebreus quando da instituição da Lei de Moisés. A desconexão com os ensinamentos de Jesus é tamanha que os pregadores da pseudo fé chegam a afirmar que a oração do crente deve se impor, ou melhor, exigir a realização dessas promessas, pois elas são movidas pela fé.

Nada falam esses pregadores sobre o fato de Jesus ter aceitado sua pobreza, resignadamente, sem nada exigir do Pai e sem invocar seus direitos “legais” nem em suas orações e nem ao repreender Satanás, que lhe oferecia riquezas e a glória deste mundo. O fato é que a vida de Jesus e dos apóstolos contrariam de tal modo a teologia da prosperidade que os falsos mestres não podem se servir dos exemplos do próprio fundador e dos doutrinadores da igreja quando estão apresentando sua mensagem.

Portanto, Paulo, ao doutrinar a liderança da igreja deixa claro que a pobreza não é motivo de revolta de nenhum cristão. Ao contrário, se estiverem supridas suas necessidades básicas, ele deve estar contente.

Discriminação socioeconômica

Se cremos, de fato, na doutrina da graça de Deus, somos forçados por ela a nos relacionar com as pessoas tomando por base o plano de Deus, não o mérito humano, a posição social, política ou econômica. A igreja não se volta para uma classe social especificamente, e assim como abrangeu judeus e gentios deve estar aberta a todos, indistintamente. Em sua morte, Jesus rompeu a barreira entre judeus e gentios, mas foi em vida que ele derrubou o muro que separava ricos e pobres, jovens e velhos, cultos e incultos. Seria totalmente incompatível com o evangelho de Jesus reconstruir esses muros das acepções entre pessoas.

“1 Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas. 2 Se, portanto, entrar na vossa sinagoga algum homem com anéis de ouro nos dedos, em trajos de luxo, e entrar também algum pobre andrajoso, 3 e tratardes com deferência o que tem os trajos de luxo e lhe disserdes: Tu, assenta-te aqui em lugar de honra; e disserdes ao pobre: Tu, fica ali em pé ou assenta-te aqui abaixo do estrado dos meus pés, 4 não fizestes distinção entre vós mesmos e não vos tornastes juízes tomados de perversos pensamentos? 5 Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam? 6 Entretanto, vós outros menosprezastes o pobre. Não são os ricos que vos oprimem e não são eles que vos arrastam para tribunais? 7 Não são eles os que blasfemam o bom nome que sobre vós foi invocado? 8 Se vós, contudo, observais a lei régia segundo a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem; 9 se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo arguidos pela lei como transgressores.” (Tg 2:1-9, grifo nosso).

Examinando as Escrituras Sagradas, ficamos convictos de que a quantidade de dinheiro e bens que alguém possua não o recomendará a Deus. Como já vimos, o rico pode ter alcançado sua riqueza injustamente. E se assim foi, o perdão de seus pecados não o desobriga de reparar as injustiças que cometeu. Obviamente, é difícil vermos um rico que, ao se converter, decida reparar os danos que provocou na vida de outras pessoas, assim como foi a decisão de Zaqueu (Lc 19:8). Jesus imediatamente reconheceu aquela atitude e a relacionou à salvação. Provavelmente, por saber da dificuldade dos ricos em se desapegarem de suas riquezas foi que Jesus disse que “[…] é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.” (Lc 18:25).

Entretanto, a ganância dos homens é tamanha que ninguém pensa detidamente no que Jesus disse. Quase todos querem ser ricos, inclusive hoje buscam a Deus enredados pelas promessas dos falsos mestres sobre a obrigação de Deus multiplicar as finanças dos dizimistas. Associam a este engano o fato de que a pobreza é um demérito, uma derrota imposta por Satanás, uma prova de que Deus não está agindo em sua vida porque está em pecado ou porque não tem fé.

 

CAPÍTULO 9

DÍZIMOS E OFERTAS NA HISTÓRIA DA IGREJA

A história da igreja está interligada a diversos aspectos da vida econômica, artística, cultural e religiosa de todas as sociedades do mundo. Até mesmo os países que fecharam as portas para a igreja nos mostram que, de certo modo, preocupam-se com ela e a consideram como um forte fator de influência. “Como se pode compreender a história da arte, da cultura, da arquitetura, quando se é analfabeto em história das religiões? Mesmo Voltaire, inimigo máximo da religião, sabia que sem conhecer religião não se pode compreender o mundo!” (PONDÉ, 2001).

Oliveira (2005, p. 39) alerta para o fato de que “ninguém se preocupa com a História, seja a da Igreja, seja a do povo de Deus. Ninguém se dá ao trabalho de examinar o que ocorreu nestes quase 4500 anos de História comum, e refletir sobre tudo o que já aconteceu nesse terreno. Tudo se passa como se a Igreja ou o povo de Deus não fossem realidades históricas e sociais, encaixadas em contextos em permanente mutação, que agem e pressionam a Igreja, sugerindo ideias e modelos de comportamento, valores e ideais.”.

Por isso, é importante trazermos um pouco da História da Igreja para que possamos perceber como o relacionamento do homem com o dinheiro e com Deus alterou-se ao longo dos anos em razão da teologia cristã. Uma vez que já vimos um pouco do que as Escrituras Sagradas nos falam sobre dinheiro, riquezas, bens, ganância, dízimos, ofertas, piedade e amor, inclusive sobre como isso foi aplicado na igreja do primeiro século, veremos, agora, em apertada síntese, a influência da igreja sobre as riquezas, e vice-versa, a partir da Reforma Protestante.

Relação entre riqueza, pobreza e favor de Deus

Como já foi visto no capítulo sete, desde Moisés já existia na imaginação dos israelitas a crença de que a riqueza estava relacionada ao favor de Deus. Jesus, posicionou-se absolutamente contrário a essa ideia e apresentou a pobreza como uma bem aventurança e a riqueza como uma ameaça à salvação. O Mestre estava certo! Ao longo da história da igreja cristã, o dinheiro e a riqueza têm sido constantes ameaças ao evangelho e, consequentemente, à salvação do homem que depende do seu conhecimento para alcançar a vida eterna.

Iniciada a Reforma Protestante, João Calvino (1509-1564), fugindo da Inquisição (Tribunal do Santo Ofício), foi para a Suíça e lá, em contato com as ideias humanistas e com a literatura grega antiga, desenvolveu sua teologia. Embora tenha mantido quase todos os princípios formulados por Martinho Lutero, incluiu a Doutrina da Predestinação. Certamente, por influência da crença grega no destino, Calvino passou a ensinar que Deus, o único com conhecimento sobre o futuro, já sabia, desde sempre, quem eram as pessoas que seriam salvas por Ele, assim como já sabia quem não seria[10].

Em seguida vinha a pergunta: “como eu posso saber se sou um predestinado à salvação?” Entre outras explicações, a resposta apontava para alguns sinais – a fé e o testemunho eram dois deles. De acordo com Calvino, a fé não era o caminho para a salvação, mas um sinal de que o fiel estava predestinado à salvação. Ainda, o testemunho cristão autêntico, transparente e sincero seria evidência da regeneração. Daí seguiu-se que o predestinado certamente seria bem-aventurado em sua vida pessoal. Seu sucesso, portanto, demonstraria o favor de Deus para com ele.

O pensamento contrário era inevitável: se o próspero tinha a garantia de sua salvação, aquele que não prosperasse dava demonstrações de que não era um salvo. Tal indução religiosa interferiu, inclusive, no processo econômico de vários países influenciados pelo calvinismo. Para quem deseja maiores informações sobre o assunto, vale ler o que um dos fundadores da sociologia, o alemão Max Weber, escreveu na comemorada obra intitulada “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.”[11]

Entrementes, em meio às oposições teológicas entre luteranos e calvinistas, o grande avivamento que Lutero havia promovido entrou em declínio.

Na Alemanha, devido às disputas, os luteranos, em 1577, elaboraram um credo chamado de “Fórmula da Concórdia”, que condenava o calvinismo, em especial, a doutrina da predestinação, perpetuando, assim, a separação entre esses grupos. Desde então os luteranos passaram a defender seu credo com tanto vigor que se dedicavam mais ao zelo da doutrina do que em cuidar da vida espiritual do povo. A pregação concentrava-se, em boa medida, na defesa da sua teologia e pouca ênfase era dada à necessidade de se procurar viver um cristianismo vivo e cheio de experiências e de frutos. As igrejas tornaram-se frias e inativas, repletas de formalidades, rituais e liturgias. Essa foi a razão do declínio religioso do luteranismo alemão ao fim do século XVI e início do XVII.

Na Inglaterra, aproximadamente cinquenta anos depois da Revolução do século XVII, o quadro, também, era triste. A igreja protestante estava estagnada, a maioria do clero constituído por homens de pouco fervor, mundanos, egoístas e simples ocupantes de cargos eclesiásticos. Os deveres dos bispos e dos ministros das paróquias eram frequentemente negligenciados e a pregação consistia principalmente em discussões teológicas, destituídas de valor e sem vida. Do mesmo modo que na Alemanha, muito pouco se fazia pelas necessidades religiosas do povo, razão por que muitos perderam contato com a igreja e se desinteressaram das suas atividades. O espírito geral da religião na Inglaterra era apenas de formalismo e de frieza. As formas exteriores da religião eram comumente observadas, mas era raríssimo o entusiasmo religioso oriundo de uma fé sincera.

É de se lembrar que o racionalismo iniciado no fim do século XVII também foi um dos fatores decisivos para esse declínio da fé. Na “era da razão” o espírito da incredulidade começou a se mover fortemente. Tudo teria que se submeter à razão humana. O fato é que em todos os campos da ciência experimentou-se avanços revolucionários. As realizações da mente humana levavam os homens a acreditarem que não havia limites para as suas possibilidades e investigações, motivo por que elegeram a razão como soberana e decidiram desafiar toda e qualquer autoridade, fosse política ou religiosa, e toda tradição, superstição, credo, preconceito e ideias, submetendo-as à crítica racional e ao empirismo.

Dois termos expressavam o pensamento da época: “ilustração” e “iluminação”. Quanto à religião, concluiu-se que as “ideias” da existência de Deus, da lei moral divina e do estado futuro de castigos ou recompensas não podiam ser provadas e, por isso, deveriam ser rejeitadas.

Resultado prático desse racionalismo para a religião variou nos diversos países. Na França, a oposição ao cristianismo foi mais forte do que em qualquer outra parte, e ali se desenvolveu o ateísmo. A Alemanha também balançou e chegou a negar as doutrinas cristãs. Na Inglaterra, a religião natural constituiu-se numa fortaleza poderosa, e o pensamento cristão foi grandemente alterado por um racionalismo que enfraqueceu a vida religiosa.

 

Desde o século XVIII surgem os sinais da recuperação. À parte as guerras teológicas, surgiu na Alemanha o movimento conhecido como pietismo. Seu primeiro líder foi Filipe Jacó Spener (1635-1705). Ainda moço, como pastor em Frankfurt (1666-1686), começou a pregar sermões de caráter prático, fervoroso e simples. Insistia na verdade da regeneração, da santidade e do serviço cristão. Também, reacendeu o sacerdócio universal dos crentes, onde os leigos participavam dos serviços religiosos, ensinando e ajudando uns aos outros. Realizava reuniões na sua própria casa para estudo da Bíblia, orações e mútua instrução. Dispensou atenção especial à educação religiosa das crianças e, assim, teve início o chamado reavivamento da piedade do cristianismo real, dinâmico, em contraste com a mera ortodoxia quanto à doutrina. O movimento cresceu com muita rapidez e, apesar das fortes oposições dos religiosos “tradicionais”, já em 1685, o pietismo tornou-se influência dominante no protestantismo alemão e inspirou os crentes a seguir em frente na realização de obras cristãs.

Rompendo fronteiras, o pietismo inspirou a Irmandade da Morávia, alcançando os irmãos João Wesley (1703-1791) e Carlos Wesley (1707-1788), que sacudiram a vida cristã da Inglaterra ao levar o impulso religioso mais forte que ocorreu depois do tempo da Reforma Protestante. Desde 1742, João Wesley evangelizou por mais de quarenta anos e estruturou grupos que se chamavam metodistas. Wesley viajava de quatro a cinco mil milhas a cada ano e pregava cerca de quinze vezes por semana. Visitou toda a Inglaterra e realizou grande trabalho na Escócia e na Irlanda. Enfrentou muitas oposições, mas não se deteve. Carlos Wesley, por sua vez teve sua principal contribuição na composição de cerca de seis mil hinos, e muitos passaram a integrar os hinários de diversas igrejas.

Além dos irmãos Wesley, em 1735, George Whitefield (1714-1770) foi igualmente impactado por aquele avivamento e tornou-se um pregador de notável poder, que atraía grandes multidões para ouvi-lo. Desenvolveu enorme atividade como evangelista itinerante, mas não trabalhou com Wesley, pois logo no início eles se separaram por causa de pequenas diferenças teológicas. Fez longas excursões pelas ilhas britânicas e também pela América do Norte, a qual visitou sete vezes. Por quinze anos, pregou cerca de quarenta vezes por semana. Contam-se casos extraordinários do seu poder como orador sobre os ouvintes. Era diferente de João Wesley por ser somente pregador, pois nada realizava quanto à organização do seu trabalho. Todavia, exerceu grande influência por meio de suas pregações.

Vale registrar, também, que o pietismo do continente europeu e o metodismo dos povos anglo-saxões não foram os únicos movimentos que se afastaram do calvinismo. Ao longo dos séculos XVI e XVII formaram-se os grupos batistas, ou anabatistas, como foram inicialmente chamados.

Os anabatistas buscavam restaurar o estilo de vida apostólico que existia entre as primeiras comunidades cristãs, incluindo aí um certo socialismo cristão. A alcunha “anabatista”, na verdade, foi um termo inventado pelos oponentes desses grupos. “Anabatista” quer dizer “rebatizador”, porque eles rejeitavam o batismo de crianças e seus membros deveriam se batizar de novo, pois o batismo só poderia ser realizado em adultos que confessassem a sua fé.

Para eles a justificação pela fé consistia na tomada de posse espiritual do dom da salvação, que ocorria mediante ação do Espírito Santo, disponível a todo que viesse a crer. Entretanto, seria necessário um afastamento do mundanismo e a retomada do modelo introduzido pelas primeiras gerações de cristãos. Assim, todas as comunidades anabatistas desejavam imitar o caráter de Cristo e repudiavam as obras da carne. Desejavam ser igrejas puras, separadas do pecado e do poder político.

Segundo Durant (2002, p. 331), a maioria dos anabatistas adotava a severidade puritana de moral, condenavam todo governo de força, e toda resistência a ele pela força. Repeliam o serviço militar com o argumento de que é invariavelmente pecaminoso extinguir a vida humana. Sua saudação habitual era: “A paz do Senhor seja contigo”. Adicionalmente, Durant (2002, p. 331) afirma que, de modo geral, a seita rejeitava qualquer partilha compulsória de bens, advogava o auxílio mútuo voluntário, e sustentava que no Reino dos Céus o comunismo seria automático e universal. Todos os grupos anabatistas inspiravam-se no Apocalipse e na espera confiante do breve retorno de Cristo à Terra. Vale ressaltar que, além de pregar o batismo adulto e a vinda de Cristo, o grupo anabatista conhecido como “Espirituais” ou “Irmãos”, propunha a cessação dos juros, dos impostos, do serviço militar, dos dízimos e dos votos. Após intensa perseguição e martírio de seus líderes, os anabatistas recuaram. Resignaram-se às práticas de seus princípios – de vida sóbria, simples, piedosa, pacífica – que não ofendessem o Estado.

Após a acomodação, vem o reavivamento do século XVIII que, segundo Wesley, era apenas a proclamação da livre graça de Deus em Cristo Jesus, e da salvação livre, gratuita, pela fé no Salvador e o convite de Deus ao arrependimento e à fé. Os hinos do reavivamento ensinavam e revelavam essas grandes verdades e o povo as entendia e aceitava. A velha história e a antiga mensagem, que por muitos não era conhecida na Inglaterra, aparecia agora anunciada com verdadeiros zelos e paixão. Isso é avivamento! É de se destacar que o caráter cristão e a vida piedosa e humilde ganham ênfase nesse período, tomando o lugar da teologia calvinista que associava o favor de Deus e a salvação à condição social e econômica do homem.

Entre altos e baixos, o evangelho persistiu e sobreviveu, chegando ao final do século XIX depois de uma grande revolução industrial que trouxe uma série de modificações sociais, inclusive com impacto na fé religiosa. A distância entre os ricos e os pobres foi sentida dentro da igreja, que se deixou influenciar pelos mais abastados. Inclusive os batistas e os metodistas enfatizavam mais os bens materiais do que a vida espiritual. Em meio a mais um declínio da fé, alguns grandes pregadores surgiram para manter o evangelho vivo, a exemplo de Charles Finney (1792-1875), Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) e Dwight Lyman Moody (1837-1899).

No início do século XX, o denominado Cristianismo Social ganhou força com uma nova compreensão, por parte do povo cristão, das condições sociais e econômicas. As igrejas advindas do protestantismo passaram a se preocupar com os males sociais e estavam convictas de que a justiça social era da vontade de Deus e que, portanto, todos deveriam lutar por alcançar esse propósito. Nesse ponto, havia uma aproximação com a igreja Católica Romana.

Nesse contexto, inicia-se o pentecostalismo. Entre 1904 e 1906, no País de Gales, surgiu um movimento encabeçado por Evan Roberts (1878-1951), que viajou por todo o país proclamando o ministério do grande avivamento do Espírito Santo, onde o falar em línguas não era enfatizado de maneira específica, mas o poder espiritual. Um grupo de pastores de Los Angeles, nos Estados Unidos, visitou aquele país e, depois disso, algo semelhante impactou a América do Norte. Um aluno de Charles Fox Parham (1873-1929) – metodista que cria em um avivamento –, William J. Seymour (1870-1922), pregador batista, recém-chegado de Houston, defendia que o ato de falar em línguas era o sinal do batismo no Espírito Santo e que essa era a prova de avivamento. Ele começou a realizar cultos na casa de alguns amigos e, em pouco tempo, o grupo mudou-se para um prédio na rua Azusa, ocupado anteriormente por uma igreja Metodista.

Naquele local, precário, com bancos de tábua formou-se a “Missão Evangélica da Fé Apostólica” que chamou a atenção de toda a cidade. A edição de 18 de abril de 1906 do Los Angeles Times registrou: “Com gritos estranhos e pronunciando coisas que aparentemente nenhum mortal em seu juízo normal pudesse entender, teve início, em Los Angeles, a mais recente seita religiosa […]. As reuniões acontecem em um prédio decadente da rua Azusa, e os devotos de doutrinas estranhas praticam os ritos mais fanáticos, pregam as mais extravagantes teorias e se colocam em um estado de louca euforia quando se entregam ao fervor pessoal.” (CURTIS; LANG; PETERSEN, 2011).

Essa publicação negativa surtiu efeito contrário e, em pouco tempo, nacionais e estrangeiros europeus afluíam para ver o que acontecia ali. Todas as linhas da renovação espiritual pareciam convergir para esse prédio. Mas, a despeito desse foco geográfico, o movimento pentecostal foi diversificado. Diferentes grupos pentecostais foram surgindo e disputando espaço. Como o movimento afastava-se das estruturas religiosas tradicionais, defendendo uma liberdade e orientação do Espírito Santo sem as limitações da liderança unificada, surgiram várias pequenas denominações pentecostais.

Então, foram surgindo diferenças doutrinárias. Com proposta de coesão, sem impedir a essência daquele movimento, um grupo de pentecostais do sul dos EUA, liderado por Eudorus N. Bell (1866-1923), chamado “Fé Apostólica”, começou a buscar união dentro do movimento. Na medida que outros grupos se juntaram a eles, o nome mudou para igreja de Deus em Cristo. Em 1913, essa denominação era composta por 352 ministros em uma associação bastante livre, sem qualquer autoridade que os unisse. Em abril de 1914, os pentecostais se reuniram em Hot Springs, no estado de Arkansas, e criaram um programa de missões e de institutos bíblicos para promover a união, a estabilidade e a credibilidade do movimento. Foi assim que nasceu a denominação chamada Assembleia de Deus. Sua ênfase em missões e no evangelismo resultou em um crescimento fenomenal, tanto nos EUA quanto por todo o mundo. Assim, a Assembleia de Deus tornou-se a maior denominação cristã evangélica até o momento e o movimento pentecostal se tornou a arma mais poderosa do cristianismo no século XX.

O movimento pentecostal surgiu em meio à pobreza e à simplicidade. Obviamente, sua teologia não associa o favor de Deus e a salvação à condição social e econômica do homem.

Mas, como a história parece reproduzir de tempos em tempos alguns fatos superados no passado, ao final do século XX, ganha força o neopentecostalismo, movimento que reativa na mente dos seus seguidores a relação da riqueza e das bem-aventuranças ao favor de Deus, ao mesmo tempo que relaciona a pobreza e as doenças com o desfavor de Deus e com a ação de demônios. Tal movimento, inclusive, chega a defender que o cristão deve se revoltar contra a pobreza ou tribulações da vida e exigir de Deus seus direitos de prosperidade e saúde, pois um filho de Deus não pode aceitar nada menos que isso. E, se o fiel não estiver de posse desses direitos, é porque está em pecado[12] ou lhe falta a fé.

Embora esse movimento tenha surgido pela primeira vez na década de 1940, nos Estados Unidos, somente tornou-se expressivo na década de 1980. Em suas primeiras manifestações ficou conhecido como “Movimento da Fé” ou movimento da “Confissão Positiva”. William Kenyon (1867-1948) foi seu precursor e após ele seguiram-se diversos defensores norte-americanos dessa nova teologia, a exemplo de Kenneth Hagin (1917-2003), William Marion Branham (1909-1965), Oral Roberts (1918-2009), Tommy Lee Osborn (1923-2013), Benny Hinn (1952-), e, no Brasil, Edir Macedo (1945-), R. R. Soares (1947-), entre outros.

Ora, a história da igreja nos revela que a associação da riqueza com o favor de Deus não é uma novidade do nosso tempo. É de se reconhecer que tal fato, embora por fundamentos diferentes, produzem reflexos positivos no ambiente social e econômico. Mas, do ponto de vista bíblico, a história nos aponta para um declínio espiritual ao passo que há um favorecimento material.

Cabe destacar que, independentemente das inclinações dos homens ao longo da história, o evangelho de Jesus é o mesmo. Ou seja, como vimos nos fundamentos bíblicos, o Mestre jamais estabeleceu qualquer relação entre a riqueza e o favor de Deus. Ao contrário, sua palavra considera a riqueza uma ameaça à salvação, razão pela qual afirma que bem-aventurados são os pobres, carentes e atribulados do presente, porque têm mais fácil acesso ao reino de Deus, onde serão fartos e receberão uma recompensa (Lc 6:20-26). De igual modo, o apóstolo Paulo, ao ensinar Timóteo, com o fim de orientar os líderes da igreja, seguindo a palavra do mestre Jesus (Mt 6:24-33), afirma que, se tivermos a satisfação das nossas necessidades básicas já devemos estar satisfeitos, não sendo razoável, portanto, qualquer tipo de revolta contra Deus (1Tm 6:6-12).

Portanto, no que diz respeito a relacionar riqueza, pobreza e favor de Deus, ou seu desfavor, enquanto a teologia original de Calvino apenas induz ao erro, a doutrina dos neopentecostais, nesse particular, afrontam, em absoluto, os ensinos dos evangelhos e das epístolas, não havendo qualquer suporte neotestamentário capaz de recepcionar tais ensinos.

A introdução de dízimos e de ofertas na prática da igreja

Como já notamos, a história da igreja primitiva, registrada no livro de Atos dos Apóstolos não inclui nenhuma referência à cobrança de dízimos. As ofertas, por sua vez, não guardavam nenhuma relação com o ato de ofertar do período da Lei, nem em sua motivação e nem em sua destinação. A prova de que os dízimos e as ofertas, do modo como os conhecemos hoje, não faziam parte da prática cristã está na própria história da igreja. Cipriano (200-258), no século III, foi o primeiro escritor cristão a mencionar a necessidade de se sustentar financeiramente o clero. Curiosamente, ele utilizava em seus argumentos o exemplo dos levitas, que eram sustentados pelos dízimos do povo de Israel, mas sua tese foi solenemente ignorada por seus contemporâneos. Não encontrou qualquer apoio porque simplesmente não se ajustava ao modo como eles haviam recebido o evangelho da igreja primitiva. Assim, nenhum outro cristão voltou a abordar a questão por mais 100 anos. (VIOLA, 2005).

Apenas no século IV o assunto foi retomado, devido a instituição de um clero apoiado pelo governo romano. Segundo fontes católicas, o bispo Graciano tornou a contribuição à igreja obrigatória ao criar um decreto com uma lista de bens sujeitos ao dízimo, redigida por Cesário de Arles e atribuída por ele a Agostinho de Hypona. O dízimo só foi confirmado oficialmente pelos concílios regionais de Tours (567) e Mácon (585) (O DÍZIMO, 2014). O Sínodo de Tours (Gália) assim deixou o seu registro:

“Instantemente exortamos os fiéis a que, seguindo o exemplo de Abraão, não hesitem em dar a Deus a décima parte de tudo aquilo que possuam, a fim de que não venha a cair na miséria aquele que, por ganância, se recuse a dar pequenas oferendas… Por conseguinte, se alguém quer chegar ao seio de Abraão, não contradiga o exemplo do Patriarca, e ofereça a sua esmola, preparando-se para reinar com Cristo.” (O DÍZIMO, 2014, grifo nosso).

No Concílio de Mácon (Gália), os padres decidiram pela excomunhão de todos os que se negassem a contribuir com a igreja. Assim, o argumento religioso é aplicado “à força”. Tal iniciativa incluía a preocupação com as condições críticas da população cristã (clero e fiéis) na Europa do século VI: as invasões bárbaras e a queda do Império Romano havia acarretado o caos e a insegurança. Por certo, daí a necessidade da imposição da contribuição. Até então, ainda havia um resquício do evangelho praticado pela igreja primitiva, que procurava socorrer os fiéis necessitados das suas comunidades. Mas, somente a partir de Carlos Magno (742-814), a contribuição à igreja passou a ser apoiada pela legislação civil, incluindo sanção pelo seu descumprimento. A lei capitular dita “de Heristal”, em 779, determinou aos cidadãos franceses o pagamento do dízimo de suas rendas à igreja, ficando o bispo encarregado de o administrar. Os contraventores seriam punidos com multa. Em 780 e 801 a ordem foi reiterada.

Nesse período, o produto dos impostos, chamados dízimos, passaram a ser divididos em três partes iguais, destinada à igreja paroquial, ao pároco e aos pobres. Ao bispo não cabia nenhuma porção especial, mas logo começaram a ficar com uma parte da arrecadação. Não demorou muito para que os abades começassem a disputar pelo dízimo sobre as terras de seu monastério. Sem grandes alterações, quanto à sede católica por poder e riquezas, nos dois primeiros concílios de Latrão, em 1123 e 1139, o dízimo foi finalmente incorporado à legislação geral da igreja, de forma definitiva, como a décima parte da renda dos fiéis. Durante o governo do papa Inocêncio III (1198-1216), a influência da igreja na vida pública na Europa cristã atingiu seu ponto máximo. Na Idade Média, ela se tornou “o senhor feudal” de grande parte da Europa.

Ao passo que a igreja reúne em si mesma o poder religioso e o poder econômico, sua ganância e corrupção seguem sem limites. Nesse tempo, os dízimos já haviam se tornado um meio de exploração dos cristãos e da população em geral. A sede por riquezas por parte da igreja não tinha limites e já tinha arruinado completamente o evangelho, assim como Jesus havia advertido. A forma de arrecadação (arrancar dinheiro do povo) mais ferrenha por parte do clero foi marcada pela venda de cartas de indulgência, ou seja, pagamento em dinheiro pelo perdão de pecados, de mortos ou vivos. Tudo isso para financiar, entre outros empreendimentos, a construção da Basílica de São Pedro, em Roma. E os cristãos? Viviam na miséria e, mesmo assim, eram explorados, sob argumentos de fé, para as grandes obras religiosas, que só enriqueciam o alto clero, obviamente.

Neste cenário, sobreveio a Reforma Protestante que, em seus primeiros suspiros, fez com que a igreja abandonasse a prática do dízimo. Ulrico Zuínglio (1484-1531), líder da Reforma Protestante na Suíça, e fundador das igrejas reformadas suíças, assumiu a posição de pastor em Zurique, em 1519, e chamou a atenção ao declarar que pregaria continuamente a partir do Novo Testamento. Isso o levou a se opor a várias práticas católicas tradicionais tais como o jejum, a prece aos santos, a doutrina do purgatório e a obrigação de pagar dizimo. As modificações de Zuínglio tornaram-se padrão para as igrejas reformadas, que eliminaram muito mais da liturgia católica tradicional que os luteranos (HONRADO, 2013).

Segundo Durant (2002, p. 340), Zuínglio, por volta de 1520 atacou publicamente a vida monástica, o purgatório e a invocação dos santos; além disso, afirmava que o pagamento de dízimos à Igreja devia ser puramente voluntário, como nas Escrituras. Ou seja, a contribuição deveria ser espontânea e não uma obrigação religiosa sob o fundamento da Lei de Moisés.

É fato que os reformadores perceberam que o dízimo não era prática para ser adotada pela igreja de Jesus. Também, perceberam que o uso que se faziam dos dízimos estava incorreto. O clero católico estava abastado enquanto a população que entregava dízimos estava empobrecida. Em face de tanta miséria que assolava o povo, a revolução social se desencadeou (1522/1536). Em meio à revolta, surgiram propostas para que as arrecadações e suas aplicações buscassem o formato do Novo Testamento.

Segundo Durant (2002, p. 322), no fim de 1524 havia uns 30.000 camponeses em armas na Alemanha meridional que se recusavam a pagar impostos ao governo, dízimos à Igreja ou direitos feudais, e que juravam emancipação ou morte. Em Memmingen, seus delegados, sob a direção ou influência dos protestantes zuinglianos de Zurique, redigiram em março de 1525 os “Doze Artigos” que incendiaram metade da Alemanha. Citaremos apenas o segundo, que interessa a este estudo:

Ao leitor cristão paz, e a graça de Deus através de Cristo.

Segundo: Uma vez que o dízimo é citado no Velho Testamento e cumprido no Novo, nós… pagaremos o justo dízimo do grão, porém de maneira adequada…. Queremos que no futuro ele seja recolhido e recebido por nosso preboste clerical, que será nomeado pela comunidade; que desse dízimo seja dado ao pastor… um pecúlio modesto e suficiente para ele e os seus… que o restante seja distribuído aos pobres e necessitados da mesma aldeia…. O pequeno dízimo, não o daremos absolutamente, pois Deus criou o gado para o livre uso dos homens…. (grifo nosso)

Prossegue Durant (2002, p. 323) informando que os chefes camponeses, encorajados pelas declarações semi-revolucionárias de Lutero, enviaram-lhe uma cópia dos Artigos, e solicitaram-lhe apoio. Ele respondeu com um panfleto impresso em abril de 125: Ermahung zum Frieden (Exortação à Paz), cujos termos citaremos adiante apenas ao que interessa a este tema:

Não temos ninguém a quem agradecer esta rebelião maligna a não ser vós, príncipes e senhores, e principalmente vós, bispos e padres e monges alucinados, cujos corações estão endurecidos contra o Santo Evangelho, embora saibais que é verdade e que não podeis demiti-lo. Além disso, em vosso governo temporal, não fazeis outra coisa senão espoliar e roubar vossos súditos, para poderdes levar vida de esplendor e soberba, até o pobre povo comum não poder aguentar mais….

Pouco depois, no século XVIII, sobreveio o declínio das ambições católicas. Com a Revolução Francesa (1789), o dízimo, como obrigação civil, caiu em franco desagrado da população. Do ponto de vista religioso, já quase não preenchia as suas finalidades. Em vez de se destinarem a atender aos necessitados das paróquias, os dízimos, em sua maior parte, eram encaminhados ao alto clero e a instituições estranhas ao serviço paroquial.

À semelhança do que se vê hoje, os grandes arrecadadores de dízimos eram prósperos. Havia entre bispos e prelados diversos comandatários (leigos) que traziam títulos eclesiásticos quase exclusivamente para se beneficiarem dos rendimentos materiais respectivos. Enquanto isso, os presbíteros recebiam uma “côngrua”[13], considerada insuficiente para seu sustento. Os abusos levaram os filósofos que surgiam naquele período “das luzes” a enfrentar a questão. Voltaire, entre outros, pretendiam demonstrar que o dízimo não era de direito divino. Os magistrados, o baixo clero e os agricultores eram contrários a este tipo de imposto civil. Em consequência, numerosas acusações eram constantemente enviadas ao parlamento francês, pedindo ou a reforma ou a supressão do imposto civil chamado “dízimo”.

Assim, a Assembleia Constituinte da França decidiu, finalmente, extinguir esse uso. Na noite de 4 de agosto de 1789, os deputados do clero renunciaram aos seus privilégios e, em particular, aos dízimos. E no dia 21 de setembro de 1789, o rei Luís XVI promulgou o decreto que declarava extinta a cobrança do dízimo. Essa nova legislação francesa influenciou as demais nações europeias, que seguiram o mesmo caminho. Desse modo, até 1848 a cobrança do dízimo foi abolida em todo o continente europeu. Apenas uma pequena porção da Itália continuou com essa prática até o ano 1887.

Desse modo, a prática de cobrança de dízimos foi radicalmente afetada. Se do ponto de vista civil foi eliminada, do ponto de vista religioso estava absolutamente desgastada em razão do comportamento do clero católico[14].

Quanto à igreja que surgiu com a Reforma Protestante, sabemos que desaprovou a prática de dízimos. Voltando-se contra o modo como vinha sendo realizada, buscou retornar à prática bíblica. João Calvino, por exemplo, ao se referir à assistência aos santos, deteve-se na palavra do apóstolo Paulo quando afirmou que “Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de outros, a sinceridade do vosso amor;” (2Co 8:8). Sobre essas palavras comentou:

“Verdade é que, por toda parte, ordena Deus que acorramos a ajudar os irmãos em suas necessidades; mas, verdade é também que nenhuma passagem há em que nos defina a soma, quanto lhes devemos dar, a fim de que, feita estimativa de nossos bens, repartamo-los entre nós e os pobres; nem, de maneira semelhante, onde nos obriga a certas circunstâncias, nem de tempo, nem de pessoa, nem de lugar, mas à regrada caridade nos conduz.” (LEITE, 2014).

Se por um lado Calvino afastou a hipótese de cobrança de dízimos, por outro, enfatizou a prática da generosidade e da piedade, ao passo que condenou a avareza dos crentes, complementando seu registro:

“A vontade liberal é agradável a Deus tanto do pobre quanto do rico […] verdade é que é bem certo que devemos a Deus não apenas uma parte, mas, afinal, tudo o que somos e tudo o que temos. Entretanto, segundo Sua benevolência, até esse ponto nos poupa, que Se contenta desta comunicação que o apóstolo aqui ordena. O que, pois, ensina ele aqui é um relaxamento, por assim dizer, daquilo a que somos obrigados no rigor do direito. Contudo nosso dever é estimular-nos a nós mesmos a darmos com frequência. Não há temer que sejamos exageradamente descomedidos neste aspecto, pelo contrário, há é o perigo de sermos demasiado sovinas.” (LEITE, 2014)

Na sequência, sabemos que as primeiras igrejas protestantes que surgiram (reformadas, calvinistas, luteranas e anabatistas) passaram a utilizar-se de várias formas para sua manutenção, como subscrições e ofertas voluntárias. A igreja Luterana, por exemplo, até hoje não adota a prática da cobrança de dízimos (LUTERANOS, 2014).

Com a proliferação de dissidências e ramificações protestantes, não sabemos exatamente como, quando e por quê o dízimo foi reinserido na prática da igreja protestante, hoje evangélica. O fato é que após o abalo que sofreu com a Reforma Protestante, a cobrança de dízimos pela igreja reformada reapareceu e foi sendo novamente alterado em seus fundamentos. Não é difícil notar que o entendimento obtido com a reforma se perdeu no tempo.

Hoje, vemos dízimos sendo cobrados sob fundamentos totalmente distintos das coletas realizadas pela igreja primitiva. Também, não se pode comparar os dízimos praticados pela igreja da Idade Média com o dízimo que conhecemos hoje nem com as coletas da igreja primitiva, pois, mesmo visando ao sustento de necessitados, no início, sua cobrança era impositiva. Do contexto histórico, pode-se perceber que o dízimo transmutou-se com o passar dos anos.

Oliveira (2005, p. 85), contribuindo com esta análise, afirma que “o testemunho da História é um só: até onde os documentos existentes permitem saber, o dízimo é algo estranho à Igreja dos dois primeiros séculos, e só começa a aparecer na medida em que a Igreja se deixa enredar pela sedução do poder temporal e do poder político.”

Com raras exceções, o dízimo, tal como cobrado e aplicado atualmente pelas igrejas evangélicas, sejam tradicionais, pentecostais ou neopentecostais, historicamente, surgiu muito depois da Reforma Protestante e não em razão dela.

A prática de hoje foi criada, aproximadamente, 1700 anos depois de Cristo, de modo que não há como afirmar que tenha sido aprovada por Jesus, pela igreja primitiva ou pela igreja que surgiu da Reforma Protestante. Os dízimos de hoje são uma criação totalmente nova. Uma reinterpretação do dízimo da Lei. E, mesmo assim, não guardam, em essência, as características dos dízimos praticados pelos hebreus.

 

CAPÍTULO 10

DÍZIMOS E OFERTAS NA IGREJA DESTE SÉCULO

Como já vimos no capítulo nove, no final do século XX já estavam presentes no contexto religioso cristão as mesmas correntes evangélicas que temos hoje. Para fins deste estudo, vamos classificar essas correntes em tradicionais, pentecostais e neopentecostais. Consideraremos tradicionais as igrejas “evangélicas” que existiam antes do movimento pentecostal ocorrido no início do século XX e que não abraçaram o pentecostalismo. Chamaremos neopentecostais todas as que incorporaram em suas práticas e doutrinas o chamado “Movimento Fé”, aí incluído a teologia da confissão positiva, da saúde perfeita e da prosperidade, com seus desdobramentos.

Em geral, as igrejas evangélicas, sejam tradicionais, pentecostais ou neopentecostais adotam a prática de receber de seus membros 10% de seus rendimentos, além de recolherem ofertas em dinheiro. Há exceções, a exemplo da igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, que não adota o dízimo como sistema contributivo e usa a expressão tão somente para se referir à contribuição que as comunidades e paróquias fazem para as instâncias sinodal e nacional da igreja (LUTERANOS, 2014). De modo semelhante, a Congregação Cristã do Brasil não adota o sistema de dízimos para sua manutenção, mas recebem apenas ofertas.

Nas considerações seguintes, apresentaremos informações descritivas das práticas e crenças do século XXI em relação aos dízimos e às ofertas, seguidas de nossos comentários sobre a adequação bíblica dessas abordagens.

Dízimos e ofertas integram o período da graça?

Não, definitivamente, não!

Há quem afirme que os dízimos não decorrem da Lei de Moisés, mas da graça neotestamentária, uma vez que essa pratica já existia antes da Lei, pois Abraão dava o dízimo (Gn 14:17-20; Hb 7:4) e Jacó também (Gn 28:22). Refutamos tais conceitos e justificativas para a cobrança de dízimos hoje pelas razões já apresentadas no primeiro capítulo deste livro.

Além de Abraão e de Jacó não serem dizimistas, o fato inegável é que se o dízimo constituísse o período da graça, simplesmente porque foi citado em duas passagens antes da Lei, a circuncisão também seria um preceito da graça, porque também foi instituída antes da Lei de Moisés (Gn 17:10-27).

Jesus aprovou a cobrança de dízimos pela igreja?

Não! Em nenhum dos quatro evangelhos Jesus aprovou a cobrança de dízimos e de ofertas financeiras pela igreja que haveria de surgir após sua morte e ressureição.

Como estudamos no capítulo sete, o ministério de Jesus foi integralmente realizado sob o regime da Lei e não da graça, que se manifestou somente após a sua ressurreição. Entretanto, há quem defenda que a cobrança de dízimos e de ofertas pela igreja foi apoiada por Jesus na ocasião em que o Mestre não condenou sua cobrança pelo regime da Lei de Moisés. De fato, Jesus não censurou a cobrança do dízimo levítico quando disse aos fariseus que eles davam o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas negligenciavam os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé. Nessa passagem, Jesus conclui que os fariseus deveriam fazer as segundas coisas sem omitir as primeiras (Mt 23:23).

Parece-nos claro que o objetivo de Jesus era censurar a hipocrisia dos fariseus e não impor obstáculo à manutenção dos levitas e ao funcionamento do Templo, pois, conforme já vimos no capítulo seis, durante o ministério de Jesus vigorava a Lei de Moisés, a qual o Mestre cumpriu e consumou. Sem qualquer interesse de se opor à Lei de Moisés, naquele momento em que ele a estava consumando, Jesus também não causou embaraços ao sustento material dos levitas ou à manutenção das atividades do Templo, que ainda estava cumprindo o ritual designado por Moisés.

Somente após Jesus ter consumado a Lei surge a igreja. Esta, passa a desenvolver-se no período da graça, sem qualquer compromisso em realizar os rituais da Lei de Moisés.

Pretender aplicar a palavra de Jesus fora de seu contexto só serve de pretexto para impor à igreja uma obrigação da Lei, há muito tempo consumada pelo Salvador na cruz do Calvário. Quem assim procede incorre no mesmo erro que Jesus condenou nos fariseus: deixam de observar o mais importante de sua mensagem (a repreensão da hipocrisia) para enfatizar o que nem mesmo era o propósito de seu ensino naquele momento (dízimos).

Assim, a menção de Jesus a dízimos em Mt 23:23 é dirigida aos fariseus que, mesmo vivendo debaixo da Lei de Moisés, escolhiam partes dela para a cumprir. O mestre censurava os fariseus hipócritas, gananciosos, que não cumpriam toda a Lei enquanto viviam debaixo dela.

Os fariseus, hipócritas, ouviram a condenação de Jesus e ao invés de reconhecerem seus atos perversos procuraram mata-lo (Mt 26:1-4).

Aos discípulos Jesus não pronunciou nenhuma palavra que desse suporte à cobrança de dízimos pela igreja que surgiria após sua morte e ressurreição. A propósito, se a cobrança de dízimos pela igreja é tão importante como anunciam os pregadores modernos, por que o Salvador deixaria de instruir seus discípulos quanto a esta questão? Esquecimento? Não! O mestre, no sermão do monte, tocou na essência do que devemos cumprir. Se ele não abordou o assunto quando se dirigia a seus discípulos é porque não havia nenhuma outra instrução a ser dada a esse respeito além de seu próprio exemplo e do ensinamento prático já oferecido sobre o modo como eles deveriam ser sustentados quando fossem enviados a anunciar o evangelho (Mt 10:9-10; Lc 10:3-7).

O funcionamento da igreja é a razão de ser do dízimo?

Não há qualquer texto bíblico que relacione o funcionamento da igreja ao recolhimento de dízimos ou de ofertas financeiras.

Não é raro ouvirmos líderes evangélicos justificando a cobrança do dízimo e de ofertas em 2Co 8:1-9:15, afirmando que o dízimo e as ofertas são devidos para a assistência aos santos e para a provisão e continuidade dos trabalhos da igreja, aí incluídas as compras, construções, reformas de templos e pagamento de empregados e dos seus pastores. Apesar de o dízimo não ser mencionado nesses textos, entendem que essa passagem bíblica incentiva contribuições generosas feitas de coração. Para os defensores do dízimo no período da graça, os fiéis não estão limitados aos 10%, mas sua contribuição deve ser proporcional à prosperidade concedida por Deus (1Co 16:1-2).

Conquanto seja compreensível a coleta de contribuições dos membros para a consecução dos objetivos institucionais, a definição do percentual mínimo de 10% dos rendimentos individuais dos membros da igreja é antibíblica.

Se o fundamento para a cooperação não é a Lei, não há que se falar em percentuais. E o termo dízimo, por sua vez, é incompatível com a associação de propósitos dos membros da igreja de Cristo. É saudável que todos cooperem, mas segundo o que cada um propuser em seu coração.

O dízimo está implícito nas cartas de Paulo?

Não! Em busca de encontrar reforço e amparo para a prática do recolhimento de dízimos, algumas lideranças evangélicas afirmam que o dízimo está implícito nas cartas de Paulo, pois do mesmo modo que os sacerdotes e levitas não tinham herança alguma na terra de Israel, mas viviam do dízimo e das ofertas do povo, esse mesmo princípio de provisão foi recomendado nas cartas de Paulo em relação à igreja e a seus ministros. Dizem, ainda, que o Deus que separou sacerdotes para servir ao culto levítico é o mesmo que designa homens para servir ao culto prestado pela igreja, cabendo aos seus membros supri-los com seus dízimos e ofertas.

Os textos que fundamentam essa tese são os seguintes:

“7 Permanecei na mesma casa, comendo e bebendo do que eles tiverem; porque digno é o trabalhador do seu salário. Não andeis a mudar de casa em casa.” (Lc 10:7).

“11 Se nós vos semeamos as coisas espirituais, será muito recolhermos de vós bens materiais? […] 14 Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do evangelho;” (1Co 9:11-14).

“27 Isto lhes pareceu bem, e mesmo lhes são devedores; porque, se os gentios têm sido participantes dos valores espirituais dos judeus, devem também servi-los com bens materiais.” (Rm 15:27).

“17 Devem ser considerados merecedores de dobrados honorários os presbíteros que presidem bem, com especialidade os que se afadigam na palavra e no ensino. 18 Pois a Escritura declara: Não amordaces o boi, quando pisa o trigo. E ainda: O trabalhador é digno do seu salário.” (1Tm 5:17-18).

Não há dúvidas quanto à possibilidade de alguém ser sustentado enquanto dedica sua vida ao serviço cristão. Os questionamentos surgem apenas quanto ao que seja “ser sustentado”. No texto de Lucas 10:7, Jesus revela, na verdade, que é possível realizar uma missão em seu nome sem qualquer ambição material, apenas por amor, vocação e obediência ao seu mandado. Por isso, ele enviou seus discípulos sem qualquer reserva de mantimentos, roupas, calçados, bebidas ou dinheiro. Eles teriam que confiar exclusivamente na providência divina e contentar-se apenas com o essencial à sobrevivência. O sustento, neste caso, limita-se às necessidades mais básicas de uma pessoa e ao período em que durar a missão. Daí não se pode deduzir que o sustento de um trabalhador do reino de Deus inclua o enriquecimento, o entesouramento ou o luxo às custas da generosidade dos que o sustentam.

A Reforma Protestante já havia enfrentado essa questão. Segundo Durant (2002, p. 322), sob a direção ou influência dos protestantes zuinglianos de Zurique, redigiu-se em março de 1525 um protesto com doze cláusulas. Na segunda firmou-se posição que fosse dado ao pastor “um pecúlio modesto e suficiente para ele e os seus… que o restante seja distribuído aos pobres e necessitados da mesma aldeia…” (grifo nosso).

Em 1Co 9:11-14, Paulo reconhece o direito dos ministros do evangelho ao recebimento de justa retribuição por seu trabalho. Mas, mesmo sem apresentar qualquer indicativo de que o sustento vá além daquilo que Jesus ensinou aos seus discípulos, Paulo, na sequência dessa mesma carta, apresenta a sua própria opção como exemplo a ser seguido. Ele afirma que não lançaria mão de tal direito para não criar qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo. Também, disse que preferia propor de graça o evangelho sem se valer do direito que ele lhe dava (1Co 9:12-18), demonstrando o quanto era constrangedor viver às custas da generosidade da igreja enquanto ele podia prover seu próprio sustento.

Em 2Co 9:1-5, Paulo contou com a generosidade dos crentes gentios, visando a socorrer os pobres da igreja de Jerusalém, os quais passavam por privações materiais. O apóstolo não buscava qualquer proveito pessoal, tampouco fundamentou seu pedido em necessidades de manutenção de física de templos, pagamento de salários de colaboradores, aquisições de equipamentos novos para a igreja, ou expansão do trabalho de evangelização. O fundamento do pedido era “a assistência a favor dos santos” (2Co 9:1).

A coleta fraterno-assistencial, motivada pela misericórdia, fundada no amor ágape e com fim de socorrer os necessitados, apresentava o que realmente seria uma assistência aos santos e não deve servir de justificativas para recolhimento de dízimos e de ofertas, especialmente quando se sabe que seus fins vão muito além das finalidades fraterno-assistenciais.

Por último, ao escrever 1Tm 5:17-18, Paulo estava na parte final de seu ministério. Como estava preso, não tinha como se manter como sempre fez. Por essa razão só lhe restava aceitar o sustento da igreja. Foi exatamente nesse contexto, após dedicar-se plenamente ao Senhor até o fim de sua vida que, já velho e precisando de amparo, disse que aqueles que presidem bem e se afadigam na palavra e no ensino mereciam dobrados honorários. O exemplo que aplicou em seguida foi o do boi que pode comer enquanto pisa o trigo. Esse desfecho mostra que Paulo procurava garantir que os trabalhadores realmente necessitados como ele não fossem explorados e abandonados, pois eram merecedores do sustento que recebiam. Não deveriam, portanto, ser tratados como mendigos que imploram por esmolas, mas com dignidade e respeito pela nobreza de sua missão.

Enfim, é preciso observar que o texto em seu contexto não permite deduzir que Paulo pretendesse estimular a riqueza dos ministros do evangelho às custas da generosidade da igreja. Ao contrário, parece que as coisas andavam tão difíceis naquele tempo que Paulo apela para a força da expressão “dobrados honorários” para que nenhum dos ministros da igreja, inclusive ele, passassem privações, fossem desprezados ou tratados como se vivessem de favores imerecidos (Rm 4:4). Ademais, em nenhum dos textos das epístolas de Paulo analisados encontramos implícitas as figuras do dízimo ou das ofertas financeiras, nos moldes hoje praticados.

Os pastores de hoje são os sacerdotes de ontem?

É comum ouvirmos líderes evangélicos afirmando que a prática do dízimo é hoje admitida para sustento de pastores, a exemplo do sustento de sacerdotes e levitas, que não tinham herança alguma na terra de Israel e viviam do dízimo e das ofertas do povo. É preciso desfazer essa confusão.

Começaremos com a observação de Oliveira (2005, p. 102) de que “jamais será possível existir na Igreja algo semelhante ao ministério levítico, pois a principal razão de sua existência está hoje eliminada! Não precisamos e, muito mais do que isso, não podemos ter estruturas eclesiásticas semelhantes à estrutura levítica, sob pena de deixarmos cair sombras sobre a cruz. Se não precisamos de levitas, por que precisamos de dízimos? Os obreiros da Igreja jamais serão ‘levitas cristãos’, pois a razão do seu ministério não decorre da existência de uma separação entre os fiéis e a liturgia do culto de adoração, mas sim de uma oferta voluntária de serviço para o próximo, serviço este que se reveste da mais profunda significação, pois consiste no anúncio da salvação. Os obreiros não existem por imposição legal de Deus, mas surgem por vocação espontânea.”

Grande incoerência da igreja contemporânea está na falta de definição sobre quais serão os fundamentos bíblicos para uma determinada prática que adotam. Ora utilizam a Lei, ora utilizam exemplos de personagens do Velho Testamento, ora utilizam o ministério de Jesus, ora utilizam as epístolas do Novo Testamento, e por aí vai.

Nenhum problema haveria se todos eles fossem convergentes. Mas, não são! E por razões óbvias: a Lei e a graça são opostas entre si. Quem viveu no tempo do Velho Testamento estava sob a Lei e quem viveu ou vive no tempo do Novo Testamento está sob a graça. Não há como conciliar as duas coisas sem sacrificar a coerência, em especial, quanto à prática de rituais religiosos e sobre tudo o que diga respeito ao funcionamento do culto e de suas liturgias, inclusive quanto à remuneração de levitas e sacerdotes.

Misturar o culto levítico e suas práticas com o culto da igreja e seu modo de funcionamento é um grande equívoco. Como já vimos no capítulo três, levitas e sacerdotes recebiam dízimos porque não receberam herança na terra prometida. A parte deles, da tribo de Levi, foi repartida entre as demais tribos. Por isso, cada tribo tinha um pedaço de terra que deveria ser da tribo de Levi. Por essa apropriação da terra que seria dos levitas, cada tribo, representada por suas famílias, pagava anualmente aos levitas uma espécie de arrendamento por ocupar e explorar sua porção de terra. Faziam isso, à taxa anual de 10% de sua produção. E por que Deus fez assim? Porque separou os levitas para trabalharem em favor de todo o povo, em uma espécie de serviço público e religioso ao mesmo tempo.

Assim, os levitas e os sacerdotes não recebiam dízimos simplesmente porque realizavam o culto ou atendiam às necessidades da comunidade local nas diversas partes de Israel. Eles recebiam dízimos especialmente porque a porção de sua herança havia sido repartida entre as demais tribos. Deus, para promover a justiça e a igualdade, impôs aos israelitas beneficiários da herança dos levitas um pagamento compensatório à taxa anual de 10%, chamado dízimo.

Desde o momento em que compreendemos as razões verotestamentárias do dízimo, percebemos que não servem como fundamento para o pagamento de salário a pastores ou a líderes religiosos. Para quem vive no tempo da graça, os fundamentos para retribuição aos serviços prestados a Deus devem seguir o exemplo de Jesus e de Paulo. Neste caso, para quem pretende lançar mão de coletas voluntárias da igreja deve se lembrar que as contribuições espontâneas destinam-se, primeiramente, a suprir a necessidade material básica dos membros da igreja que estão desamparados por alguma situação momentânea (órfãos) ou permanente (viúvas sem pensão do Estado e sem família para socorrê-la).

Nesse sentido, se algum vocacionado entregar sua vida integralmente à causa do evangelho, deve ter em mente que o faz por amor e sacrifício pessoal, a exemplo de Jesus, de João Batista, de Paulo e dos demais apóstolos. Neste caso, não sendo possível se autossustentar, o vocacionado deve ser igualmente socorrido pela igreja em suas necessidades básicas, para que não passe fome, não adoeça ou fique desnudo enquanto trabalha (Mt 10:10; 1Tm 5:17-18). Infelizmente, talvez por ignorância ou tradição, as lideranças evangélicas contemporâneas tiram do Velho e do Novo testamentos apenas o que lhes interessam para justificar suas práticas, como vemos no caso do dízimo e das ofertas. Normalmente, utilizam a graça e a piedade do Novo Testamento para estimular as doações, mas escolhem a Lei para fixar o percentual de contribuição, afastando o ensinamento da graça nessa hora.

Quanto à aplicação dos recursos recolhidos, esquecem o que a Lei determina sobre a distribuição dos dízimos e não se lembram como Paulo utilizou as coletas recolhidas pelos irmãos da igreja primitiva. Nesta hora preferem os exemplos das construções e reformas do Templo do Velho Testamento.

Doutrinas financeiras da conveniência: todas tiradas da Bíblia, mas casuísticas, descontextualizadas, incoerentes e insustentáveis porque lhes faltam uma coisa essencial, a aprovação de Deus.

Havendo sinceridade, precisamos compreender que Deus não é incoerente e nós não podemos ser tolos a ponto de achar que as nossas incoerências serão ratificadas por Deus.

Para ser coerente, no que diz respeito ao sustento das lideranças evangélicas com dízimos e ofertas, se alguém pretende se comparar a levitas e a sacerdotes do tempo da Lei, e não querem se comparar a Jesus, a Paulo ou aos outros apóstolos que serviam a igreja primitiva, deveriam estender suas comparações às demais exigências da Lei dirigidas aos sacerdotes.

Segundo a Lei, o sacerdote não poderia cortar as extremidades da barba (Lv 21:5); só poderia se casar com mulher virgem e do seu próprio povo – era proibido tomar mulher desonrada, separada de outro casamento ou mesmo viúva (Lv 21:7,13-14); se sua filha se prostituísse deveria morrer queimada (Lv 21:9); não poderia ter defeitos físicos e traços disformes (Lv 21:17-21). Quanto ao seu modo de vida, deveria se contentar apenas com o sustento de suas necessidades básicas, tirando das ofertas apenas o que conseguisse comer, beber ou vestir.

Exemplo de que a ganância dos sacerdotes era reprovada por Deus encontra-se na história dos filhos de Eli, que se valiam do sacerdócio para tirar proveito pessoal indevido do culto levítico (1Sm 2:12-17).

Mas, se notarmos bem, a única permissão que temos para nos assemelharmos ao sacerdócio está no sacerdócio de Cristo (Hb 7:11-19; 1Pe 2:5,9), e não no sacerdócio levítico. Por isso, maior razão nos assiste ao adotarmos os exemplos de Jesus, especialmente no que diz respeito ao relacionamento com o dinheiro e com as riquezas. Este exemplo, sim, foi adotado pelo sacerdócio apostólico.

Com toda a miscelânea doutrinária que observamos na prática evangélica hodierna, somos levados a desconfiar que aqueles que querem adotar o modelo do sacerdócio levítico para o recebimento de salários e para o recolhimento de dízimos e de ofertas, assim fazem porque, além de garantir um povo cativo e fiel na prática do ofertar (hoje, dinheiro), têm a oportunidade de utilizar o que é levado à igreja do modo como bem quiserem, assim como faziam os sacerdotes no tempo dos filhos de Eli, que não se importavam com o Senhor e tiravam proveito indevido e ganancioso das ofertas levadas a Siló, sem observar o que dizia a Lei.

“12 Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial e não se importavam com o Senhor; 13 pois o costume daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo alguém sacrifício, vinha o moço do sacerdote, estando-se cozendo a carne, com um garfo de três dentes na mão; 14 e metia-o na caldeira, ou na panela, ou no tacho, ou na marmita, e tudo quanto o garfo tirava o sacerdote tomava para si; assim se fazia a todo o Israel que ia ali, a Siló. 15 Também, antes de se queimar a gordura, vinha o moço do sacerdote e dizia ao homem que sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote; porque não aceitará de ti carne cozida, senão crua. 16 Se o ofertante lhe respondia: Queime-se primeiro a gordura, e, depois, tomarás quanto quiseres, então, ele lhe dizia: Não, porém hás de ma dar agora; se não, tomá-la-ei à força. 17 Era, pois, mui grande o pecado destes moços perante o Senhor, porquanto eles desprezavam a oferta do Senhor.” (1Sm 2:12-17, grifo nosso).

Portanto, é incabível comparar pastores com sacerdotes quando o assunto é cobrança de dízimos e de ofertas. O sustento dos primeiros deve ter por base o modo de vida dos apóstolos e não dos sacerdotes, que eram amparados pela Lei de Moisés.

Paulo considerava as ofertas como sacrifícios espirituais?

Há quem afirme que Paulo considerava as ofertas do povo de Deus como sacrifícios espirituais consagrados ao Senhor. E se todo o povo de Deus contribuísse da maneira descrita em 2Co 8:1-9:15, as igrejas não teriam dívidas e os servos de Deus teriam suas necessidades supridas e a obra de Deus prosperaria ao redor do mundo. Agregam aos seus argumentos a seguinte passagem da carta de Paulo aos filipenses:

“15 E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros; 16 porque até para Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. 17 Não que eu procure o donativo, mas o que realmente me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito. 18 Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. 19 E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades.” (Fp 4:15-19, grifo nosso).

Inicialmente, é preciso notar que 2Co 8:1-9:15 não se referem a ofertas, no sentido em que são empregadas hoje. A natureza das ofertas hodiernas é distinta das coletas neotestamentárias, tanto na essência do que se recolhe hoje (dinheiro), como no fim a que são destinadas (indeterminados). Se as contribuições espontâneas de hoje fossem alimentos, roupas, remédios, material escolar etc., com o propósito de atender às necessidades materiais dos santos ou mesmo para a provisão de missionários que não estivessem em condições de trabalhar para seu próprio sustento, 2Co 8:1-9:15 estaria servindo adequadamente como fundamento para o recolhimento dessas contribuições espontâneas e generosas feitas de coração. Entretanto, não é isso o que normalmente ocorre, de modo que tal comparação não pode ser considerada apropriada.

Quanto às necessidades materiais da igreja, por certo elas sempre existiram, desde a sua instituição. Apesar disso, Paulo não ordenou o recolhimento de dízimos ou de ofertas no sentido que vemos hoje. Ainda, sobre as necessidades materiais, é importante relembrar o que já foi exposto no capítulo sete, que o próprio Senhor Jesus nos mostrou que a evangelização não está condicionada ao dinheiro, como querem fazer parecer os pastores da igreja evangélica contemporânea.

Para deixar isso bem claro, Jesus enviou seus discípulos a uma cruzada evangelística sem qualquer reserva de mantimentos, roupas, calçados, bebidas ou dinheiro. Eles teriam que confiar exclusivamente na providência divina. Nada lhes faltou. Portanto, convém notar se aqueles que dizem que a falta de dinheiro é obstáculo à evangelização não estão, na verdade, enfatizando as dificuldades como pretextos para aumentar o recolhimento de dinheiro dos fiéis.

Quanto ao que Paulo escreveu em Fp 4:15-19, de fato, o apóstolo estava cheio de gratidão e testemunhando que nada lhe faltou – estava suprido e certo de que Deus recompensaria os irmãos de Filipos por sua generosidade no tocante a socorrer os necessitados. A gratidão de Paulo foi pelo donativo destinado a suprir suas necessidades essenciais. Paulo comparou aquele donativo a um aroma suave exatamente porque considerou o esforço realizado pelos filipenses como um sacrifício levítico agradável a Deus, ou seja, algo em perfeita sintonia com a vontade de Deus, assim como eram as ofertas levíticas quando realizadas nos exatos termos da Lei.

A doação dos filipenses se encaixou na exata vontade do Senhor porque realizou os dois mandamentos de Jesus: amar a Deus e ao próximo.

Logo, a coleta fraterno-assistencial, essa sim, pode ser considerada “como sacrifício aceitável e aprazível a Deus”.

Dízimos e ofertas neopentecostais

Na questão do dízimo e das ofertas, a ênfase neopentecostal está na “teologia da prosperidade”, também conhecida como “evangelho da prosperidade”. Trata-se de um conjunto de ensinamentos que colocam a prosperidade financeira como um desejo de Deus para os cristãos. A fé, o discurso positivo e as doações para a igreja irão sempre aumentar a riqueza material do fiel, além de livrá-lo do mal, seja físico ou emocional.

No Brasil, a igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é a que mais se destaca nessa área, pois é notável a sua ênfase em torno do trinômio exorcismo-cura-prosperidade. Seus membros são, em sua maioria, das classes média e baixa. Os cultos incluem pregações vigorosas sobre os fundamentos referidos e atraem multidões de pessoas diariamente. Utilizaremos, portanto, as práticas da IURD para discorrer sinteticamente sobre a visão neopentecostal em relação ao dinheiro, aos bens, às riquezas e sua fonte, no caso, a cobrança de dízimos e de ofertas.

De modo sintético, em relação à cobrança de dízimos e de ofertas, abordaremos neste capítulo apenas as principais características dessa vertente neopentecostal, quais sejam: o antropocentrismo, a cultura do medo, a expiação pessoal e as bênçãos e maldições constantes em Dt 28:1-68, em interpretação conjunta com o livro de Malaquias e com a passagem em que Jesus afirma que veio repreender o ladrão e dar ao homem vida em abundância (Jo 10:10).

O antropocentrismo, a chave da vitória e Mamom

No sistema neopentecostal o homem é o fim de tudo e o dinheiro é a chave de tudo. Em outras palavras, todo o trabalho neopentecostal visa ao homem; e toda a realização do homem está por trás de uma porta cuja chave é o dinheiro. Quando se fala em realizações humanas, lá está o dinheiro. No culto neopentecostal ele é o elemento essencial do dízimo e das ofertas que, por sua vez, constituem-se nos mecanismos que irão provar a fé do homem, conter as ações do Diabo (devorador) que produzem toda sorte de males, inclusive a miséria, as doenças e as maldições hereditárias ou lançadas por obras de feitiçaria. Por fim, são os dízimos e as ofertas em dinheiro que irão abrir as janelas do céu de onde virão as bênçãos prometidas por Deus aos fiéis, ou seja, aos dizimistas e ofertantes que participam das reuniões regulares da igreja.

Logo, qualquer que seja o interesse do homem em Deus, sem dinheiro nada se realizará. Se o homem quer ser abençoado, precisará de dinheiro para dizimar e ofertar. Se o homem quer ser curado, precisará do dinheiro para dizimar e ofertar. Se o homem quer ser liberto de um mal preexistente, precisará do dinheiro para dizimar e ofertar. Se o homem quer se livrar de suas desventuras, insucessos, perseguições, traumas ou qualquer outro tipo de problema, precisará do dinheiro para dizimar e ofertar. Se o homem alcançou tudo o que desejava e quer manter sua condição, precisará do dinheiro para dizimar e ofertar.

Para os neopentecostais, nada se move no mundo espiritual sem que o homem aprenda a “agir a fé”. Essa expressão se materializa por meio do sacrifício financeiro, tanto pela entrega regular do dízimo como pelas ofertas a cada campanha da igreja ou pelas ofertas financeiras voluntárias como expressão de gratidão.

O batismo nas águas, o batismo no Espírito Santo, a oração, a santidade e a leitura da Bíblia também fazem parte do sistema neopentecostal, mas não recebem o mesmo destaque e importância que a fidelidade nos dízimos e nas ofertas. Em sua declaração de fé, a IURD faz a seguinte afirmação sobre dízimos e ofertas:

A Universal também crê que os dízimos e as ofertas são tão sagrados quanto a Palavra de Deus. Os dízimos significam fidelidade, e as ofertas, o amor do servo para com o seu Senhor. Todos os que servem a Deus têm o direito a uma vida abundante. É o que o Senhor Jesus afirma no livro de João 10.10: ‘… Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.’” (IGREJA…, 2014, grifo nosso).

Como se pode notar, no sistema neopentecostal, os dízimos e as ofertas apresentam-se como figuras sagradas equiparadas à própria palavra de Deus. Sem essas figuras, não há como se manter uma relação com Deus e, por consequência, nem mesmo há salvação, pois faltariam os elementos essenciais dessa ligação entre o homem e Deus, quais sejam: a fé, a fidelidade, o sacrifício e o amor.

Jesus faz parte do sistema neopentecostal, mas não como a figura central. O Mestre figura como exemplo de sacrifício, de perdão, de amor e de autoridade sobre entidades malignas, mas é apenas um colaborador do sistema. O nome de Jesus é invocado como autoridade para perdoar pecados e para expelir demônios, mas Jesus nada poderá fazer se o homem não for fiel nos dízimos e nas ofertas, uma vez que o Diabo continuará com autorização para agir em sua vida, na forma dos espíritos devoradores (referenciando equivocadamente Ml 3:11), caso o perdoado e liberto não seja fiel nos dízimos e nas ofertas. Assim, aceitar Jesus como salvador, confessá-lo, arrepender-se de pecados e deixá-los, ser liberto e batizado nas águas, tudo isso não será suficiente para impedir a ação eficaz do Diabo na vida do homem, que continuará produzindo derrotas, possessões, doenças e miséria. Exatamente por isso, a IURD afirma que os evangélicos de outras denominações são fracos e vulneráveis a possessões demoníacas. Afirmam, ainda, que as demais igrejas mantêm seus membros em um sistema religioso ineficaz, que além de não crescer, mantém seus adeptos na miséria.

Por que a IURD entende que as demais denominações evangélicas são ineficazes? Porque elas não aprenderam a exercitar a fé. Mas, que fé? A fé que coloca dízimos e ofertas como sendo a chave para o sucesso. Nesse sistema, não é Jesus que aproxima o homem de Deus para estabelecer um relacionamento eficaz sobre as trevas, mas o dinheiro. Jesus é apenas um elemento do culto neopentecostal, mas não é suficiente. E como o dinheiro é o modo mais comum de se materializar dízimos e ofertas, ele é a chave do sistema neopentecostal, que abrirá todas as portas para a saúde perfeita, para a satisfação emocional, para a libertação de demônios, para a prosperidade e, enfim, para a felicidade.

No sistema neopentecostal, sem dinheiro não há relacionamento eficaz entre o homem e Deus. Sem dinheiro, nem mesmo Jesus pode curá-lo ou libertá-lo definitivamente. Sem dinheiro, não há como se expressar fidelidade e fé. Sem dinheiro, não há, portanto, salvação para o homem.

Para que tudo aconteça e favoreça o homem, o culto neopentecostal tem ênfase na fé (aquela que se materializa em dízimos e ofertas), na fidelidade, na miséria humana provocada por demônios e em um teatro de exorcismo praticado por “homens de Deus” com poderes especiais para libertar os frequentadores do domínio de Satanás. Após a demonstração de autoridade sobre o mal, a recomendação para mantê-lo afastado será novamente a fé, a fidelidade e o sacrifício (ofertar mesmo sem poder). E para que ninguém tenha dúvidas quanto a essa realidade, outro ponto alto dos cultos neopentecostais são os testemunhos de pessoas que “agiram a fé”, tornando-se fiéis dizimistas e ofertantes, ou que realizaram um sacrifício (ofertaram mesmo sem estar em condições de ofertar) e alcançaram a vitória que tanto almejavam.

Não nos cabe duvidar das realizações testemunhadas, mas é nossa obrigação atestar biblicamente que uma denominação religiosa onde Jesus não é o centro não é uma verdadeira seguidora de Jesus Cristo, Senhor e consumador da nossa fé. A verdadeira fé consiste em crer, aceitar e praticar a palavra de Deus. E para quem presume ser cristão, é importante ouvir o que Jesus tem a dizer em sua palavra antes de absorver qualquer outro ensino religioso, por mais impressionante que pareça.

É importante ressaltar que Jesus nunca relacionou a salvação, a fé, a libertação ou as suas bênçãos a dízimos e a ofertas financeiras. O Mestre nem mesmo tratou de dízimos e ofertas. Antes, proclamou libertação aos cativos anunciando-lhes a verdade e ensinando-lhes o caminho que leva o homem a Deus pelo evangelho da salvação, baseado no arrependimento, na confissão de pecados, no perdão, na justificação por seu sangue e na transformação pelo batismo que sepulta o velho homem materialista e egoísta para dar lugar a um novo homem, espiritual e altruísta.

Portanto, se Jesus é o nosso salvador, devemos colocá-lo em seu devido lugar, no centro de nossa religião, destronando o homem e seu deus Mamom. Por certo, qualquer conhecedor da vida e da obra de Jesus se lembrará de suas palavras, quando diz que “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mt 6:24, grifo nosso).

A cultura do medo

O Brasil é um país que sofreu, ao longo de sua formação, forte influência do catolicismo, de religiões africanas e do espiritismo. Em todas essas vertentes religiosas, o mal é representado por espíritos ameaçadores do bem-estar humano. Por isso, novenas, votos, amuletos, passes espirituais, mau-olhado, trabalhos de feitiçaria e da macumba são expressões familiares à população brasileira. Por sua vez, cada uma dessas religiões possui seus métodos para afastar ou proteger o homem dos maus espíritos.

Com esse histórico cultural, o sistema neopentecostal encontrou terreno fértil para se desenvolver. A IURD, por exemplo, destaca o Diabo e seus demônios como fonte de praticamente todas as dificuldades humanas. Desse modo, o homem torna-se menos responsável pelo mal que pratica ou pelo mal que sofre. Mas, por se tratar de forças espirituais malignas que o dominam, o controlam ou o influenciam, o homem sente-se impotente para solucionar seus problemas. Quando ele ouve ou assiste uma propaganda que relaciona suas angústias com ação de demônios, seu coração fica temeroso e ele se inclina a buscar a libertação instantânea anunciada. O lugar para que tal libertação se opere é, exclusivamente, em um templo da IURD.

Uma vez atraído aos rituais da IURD, o homem passará a ver dezenas de exorcismos e testemunhos que sempre ligarão problemas semelhantes ou iguais aos seus a operações de demônios. A solução, então, será apresentada: fé e fidelidade. Em outras palavras, a fé será demonstrada pela coragem e decisão de se tornar um dizimista e ofertante e fazer um sacrifício anunciado em uma de suas campanhas para remover o mal e estabelecer a vitória em sua vida. A fidelidade, por sua vez, será representada pela frequência nas reuniões e pela manutenção dos propósitos firmados nas campanhas.

A partir de então, o medo não mais cessará.

Depois que alguém associou os problemas da vida a uma ação demoníaca, deixar de cumprir os votos para a libertação ou para a manutenção da libertação é impensável. Por isso, para quem ingressou nesse processo atraído pelo medo, a entrega de dízimos e ofertas será uma questão sagrada, uma proteção do mal.

Por sua vez, há aqueles que foram atraídos pela propaganda da prosperidade. Normalmente, essas pessoas estão vivendo restrições materiais e querem mudar essa situação. Ao participar das reuniões próprias para os interessados na prosperidade, mais uma vez os demônios estarão sendo apresentados como um dos causadores da miséria humana. A principal causa da operação desses demônios é o fato do homem estar roubando a Deus. Ora, um ladrão não tem qualquer autoridade espiritual para conter a ação dos demônios. Logo, a solução para se livrar dos espíritos malignos devoradores é devolver os dízimos a Deus. A fidelidade na entrega do dízimo garantirá a cessação da ação dos espíritos devoradores, mas isso não basta. É necessário ser, também, um ofertante. Somente assim, a prosperidade será garantida. É claro que nada disso se tornará realidade se não houver uma atitude de “fé sobrenatural”, ou seja, aquela que conduz o homem a ser um dizimista. A partir de então, Deus estará obrigado a abrir as janelas do céu, conforme prometido em Ml 3:10.

Tanto no primeiro como no segundo caso, o medo da ação maligna está presente. Assim, o medo é o principal fator escravizante no sistema neopentecostal. É exatamente por isso que todas as reuniões da IURD dão tanta ênfase às ações do Diabo. Evidentemente, não podemos desconsiderar o agir de Satanás e de todas as suas hostes malignas desde a queda do homem. Mas, usar o medo para explorar pessoas é uma atitude desonesta e injusta.

Se alguém crê em Deus e em sua santa palavra, deve aceitar que a verdade liberta e não escraviza o homem.

Todo aquele que utiliza o medo para explorar os crentes em Jesus não têm parte com Deus, pois Deus é amor e “no amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor.” (1Jo 4:18).

Tenhamos coragem de viver sem medo de anunciar a verdade.

Expiação pessoal

No que diz respeito à expiação pessoal, os neopentecostais afirmam que a prática do sacrifício é universal e é encontrada, de alguma forma, nas religiões de todos os povos, em todos os tempos, sendo considerado como a mais alta expressão de fé, cuja manifestação é necessária para que possa ser realizada. Neste ato de sacrifício, a fé é o principal elemento para a sua realização. Ensinam, também, que o sacrifício inclui o ato de renunciar voluntariamente a alguma coisa, em troca de outra muito mais valiosa. Ou seja, o sacrifício é o elemento de uma troca. Assim como todas as conquistas da vida têm preço de sacrifício, todas as conquistas espirituais também têm seu preço. Se o objetivo ou milagre divino que se pretende alcançar é muito grandioso, então alto também será o preço do sacrifício que se terá de pagar.

Lançadas as bases da troca de sacrifício por bênçãos de Deus, apresentam o elemento encorajador: exemplos bíblicos de pessoas que se sacrificaram por uma causa. Afirmam que grandes vitórias são conquistadas somente por homens de Deus, corajosos, firmes e determinados, pois o Espírito Santo nunca escolhe covardes para realizar coisas grandes para a glória de Deus. Usando Jesus como exemplo, estimulam os fiéis fazer sacrifícios que impliquem em renúncia total. Do mesmo modo que o preço da salvação foi o sacrifício de Jesus, cada fiel deve, igualmente, pagar um preço para manter sua salvação com renúncia pessoal, dia após dia: “38 E quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim. 39 Quem acha a sua vida perdê-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa achá-la-á.” (Mt 10.38-39).

Uma vez que os fiéis se convençam da necessidade de sua expiação pessoal, os neopentecostais apresentam, segundo entendem, os dois principais aspectos do sacrifício: o espiritual e o material. Entregar a Deus (igreja) dízimos, ofertas e, algumas vezes, todo o seu patrimônio pessoal seria, portanto, meios modernos de sacrifício e de prova de fé e de confiança em Deus, além de ser o preço a ser pago em troca da salvação e das conquistas pessoais.

Entretanto, para quem conhece o evangelho de Jesus, a primeira associação que faz em relação aos sacrifícios é com a expiação de pecados e não com conquistas materiais. Ora, tanto os sacrifícios realizados no culto levítico como o sacrifício perfeito de Jesus na cruz tipificam a substituição, ou seja, o cordeiro substitui o homem pecador e é sacrificado em seu lugar para expiar o seu pecado. No contexto levítico, não era o homem que se sacrificava, mas o animal. Ademais, quando a Lei estabelecia ofertas de baixo valor econômico, significava que o importante era o ato e não o valor da oferta. A intenção não era causar sofrimento, dor ou impor perdas financeiras ao ofertante, mas apontar profeticamente para a simbologia do perdão pelo sacrifício de um animal inocente no lugar do pecador arrependido. Mais tarde, o sacrifício perfeito de Jesus veio exatamente colocar fim aos sacrifícios ritualísticos levíticos, bem como para afastar a necessidade do sacrifício humano. No que diz respeito à salvação, portanto, Jesus já pagou o preço em nosso lugar.

Contudo, embora em alguns momentos a pregação neopentecostal permita a confusão entre sacrifício de animais e sacrifícios pessoais, é possível perceber que o enfoque que se pretende dar é o do esforço humano para conquistar vitórias pessoais. Nesse sentido, percebe-se que a IURD induz ao seguinte pensamento: se homens do passado, no exercício da fé em um chamado específico, esforçaram-se para alcançar grandes vitórias, os fiéis hoje devem fazer o mesmo. Curiosamente, o modo de se fazer isso hoje, segundo a IURD, é exercitando a fé, isto é, entregando dízimos, ofertas regulares e, ocasionalmente, uma especial de tudo o que se possui, representando uma grande atitude de fé. Em outras palavras, o sacrifício é o esforço humano em dar o máximo de dinheiro possível à igreja.

Mesmo que tenhamos que admitir que a vida exige de todos uma grande dedicação, coragem, força de vontade e determinação, seja em que área for, é inaceitável, à luz da palavra de Deus, relacionar a fé e os esforços humanos a dízimos e ofertas, principalmente quando sabemos que tais práticas nem mesmo foram requeridas por Jesus ou pelos apóstolos quando da instituição da igreja.

Por isso, a construção doutrinária da IURD em relação à expiação pessoal deixa claro seu ardil para estimular a arrecadação de dízimos de ofertas.

Bênçãos e maldições

Promessas de bênçãos são, também, fundamentos que justificam o sacrifício, ou seja, a entrega de dízimos e ofertas à igreja. Considerando o perfil das pessoas atraídas pelo interesse pessoal em prosperidade, podemos compreender que nenhum desses se sacrificaria (dízimos, ofertas e participação de reuniões) se não vislumbrasse uma contrapartida superior que valesse a pena o esforço. Segundo os neopentecostais, Jesus seria o maior garantidor de uma boa contrapartida aqui na terra, uma vez que disse que o propósito de sua vinda seria dar ao homem uma vida abundante (Jo 10:10).

Complementarmente, os neopentecostais listam todos os benefícios (bênçãos) descritos em Dt 28:1-14 e em Ml 3:10-12, apresentando-os como promessas, ou seja, como um compromisso de Deus dirigido aos fiéis. A obediência, por sua vez, consiste em cumprir os preceitos do Senhor, tal qual eles mesmos ensinam. Como já foi esclarecido no capítulo sete, a vida abundante referida por Jesus não significa “vida abundante de bens materiais”, pois tal interpretação, além de ser forçada e ilógica, vai contra todo o ensinamento, princípios e exemplo de Jesus. A vida abundante, na verdade, é a vida eterna, que não cessa com a morte física, mas que perdura eternamente.

Quanto às bênçãos descritas em Dt 28:1-14, é de se destacar que foram condicionadas à obediência à palavra de Deus. Neste caso, considerando que hoje a mensagem da graça tomou o lugar dos rituais da Lei de Moisés, os dízimos e as ofertas prescritos pela Lei não são condições para que o cristão seja abençoado com toda sorte de bênçãos designadas por Deus aos seus filhos.

E, no caso das janelas do céu, referidas em Ml 3:10, o entendimento é exatamente o mesmo. Hoje, basta ao cristão, que vive no tempo da graça, atentar para os mandamentos e ensinamentos do mestre Jesus para desfrutar de seu favor. E isso não inclui a entrega do dízimo da Lei (alimentos e bebidas), os quais eram armazenados nos celeiros de Israel (casa do tesouro), com o fim de sustentar os levitas e sacerdotes, os quais não haviam recebido herança quando da entrada dos hebreus na terra prometida.

Por sua vez, as maldições descritas em Dt 28:15-68 e em Ml 3:6-9, são utilizadas pelos neopentecostais como elemento de difusão da cultura do medo. Tais maldições funcionam como elemento aterrorizador dirigido aos “desobedientes”, ou seja, àqueles que não atendem aos comandos dos exploradores da fé cristã. Segundo os neopentecostais, a fé e o sacrifício, consubstanciados na entrega de dízimos e de ofertas, são as maiores expressões de fidelidade a Deus. Deixar de cumprir essa exigência, além de ser um desprezo a Deus, é um ato de desonestidade, um “roubo”, pois assim interpretam Ml 3:8-9: os dízimos e as ofertas pertencem ao Senhor, mesmo no período da graça e independentemente da pessoa ser cristã. Logo, qualquer pessoa que se recusa a entregar a Deus (igreja) os 10% de seus rendimentos ou produção, é um “ladrão”, digno de ser punido com maldições.

Como já amplamente esclarecido nos capítulos precedentes, dízimos e ofertas integram exigências de Deus para os hebreus que viviam sob a Lei de Moisés. Tal preceito não foi transferido à igreja de Jesus que vive debaixo da sua graça. Logo, consideramos que a utilização do texto de Malaquias para recolher dízimos e ofertas é um abuso espiritual e emocional, um meio de aterrorizar as pessoas para que contribuam financeiramente com a igreja, mas sob fundamentos errados. Quem assim procede por ignorância, deveria repensar sua religião e fugir dessas coisas. Mas, quem age conscientemente certamente poderá ser classificado entre os impiedosos que se recusam a compreender o cristianismo por conveniências pessoais e institucionais.

“3 Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, 4 é enfatuado, nada entende, […], supondo que a piedade é fonte de lucro. […] 9 Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, […] 10 Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores. 11 Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão.” (1Tm 6:3-11, grifo nosso).

A materialização da fé

Com fé e dinheiro para dizimar e ofertar todas as portas se abrem, segundo a teologia neopentecostal. Mas, sabendo o quanto é difícil ter a fé indicada por Jesus (naquilo que não se vê – Jo 20:29), os neopentecostais procuram facilitar as coisas, assim como fazem os católicos. Os neopentecostais materializam a fé com elementos simbólicos da Bíblia, à semelhança das indulgências católicas. Também, criam diversas rotinas e práticas para facilitar a aproximação do espiritual ao material. Bledsoe (2012), apresenta algumas características desse movimento que demonstram seu misticismo, conforme transcreveremos a seguir:

“A fim de contra-atacar os demônios e estimular a ação divina, a IURD promove ensinamentos e práticas que, infelizmente, expressam o animismo e envolvem seus participantes em tais tendências. Uma amostra desses temas, com uma breve descrição, encontra-se a seguir:

  1. Fuga de pessoas de credos diferentes para não contrair maus espíritos e influências malignas;
  2. Distribuição de objetos consagrados (ex. rosas ungidas, faixas de braço, água, sal, óleo etc.) com a finalidade implícita de afastar o mal de uma pessoa, casa ou empresa (Macedo, 2005, p. 44-51).
  3. Crença de que certos espíritos malignos passam do pai para os filhos até que a maldição seja quebrada por Jesus (Macedo, 1995, p. 73).
  4. O poder das palavras para fomentar resultados positivos e negativos, além de reter espíritos indesejáveis e destrutivos (Macedo, 2005c, p. 64; Mariano, 2005, p. 145).
  5. Reuniões que combatem os demônios através de vários métodos de exorcismo tanto nos não crentes quanto nos crentes (Macedo, 1995, p. 7; 2006, p. 134; 2008b, p. 24).
  6. Reconhecimento de doenças animistas relacionadas ao mau-olhado, olho gordo etc. e das táticas para combate-las (Macedo, 2006, p. 41).
  7. Advertência de que os demônios podem voltar a possuir um crente que não consiga viver uma vida santa (Macedo, 1999, p. 62. 2006, p. 92, 149).
  8. Sintomas altamente simplistas de possessão demoníaca com pouca consideração da possibilidade de problemas fisiológicos (Macedo, 1995, p. 74; 1999, p. 57-64; 2006, p. 59-64).
  9. Conceito de oferecer um sacrifício (i.e., promessa, oferta de dinheiro) para receber um benefício divino (Esperandio, 2006a, p. 73; Kramer, 2001, p. 395; Macedo em Tavolaro, 2007, p. 117, 133, 215).
  10. Campanhas e outras estratégias que promovem eliminação das forças malignas, remoção de maldições boas perspectivas de bênçãos positivas.

Cumpre salientar que muitos dos exemplos citados valem de ideias e símbolos do catolicismo e do espiritismo populares. Infelizmente a liderança da IURD promove, de maneira ativa, o seu uso contínuo. Além disso, as pessoas deixam vários grupos religiosos populares apenas para dar continuidade em outro com características semelhantes, mesmo que o novo grupo se declare evangélico. A. H. Anderson (em Kramer, 2001, p. 113) observa que a canalização do poder tem sido usada entre alguns grupos pentecostais desde o início. Entretanto, o ML considera tais práticas incompatíveis com o cristianismo, pois fazem com que a nova fé pareça uma nova forma de magia.” (BLEDSOE, 2012, p. 130-132, grifo nosso).

Nesse contexto místico, são inúmeras as campanhas que usam amuletos para materializar a fé, a exemplo da Campanha do Sal, onde o fiel ganha um saquinho com sal para colocar na comida para que os familiares não cristãos se convertam. A mais conhecida de todas é a campanha da prosperidade, onde, além do dízimo, o fiel é induzido a fazer ofertas em dinheiro durante todos os cultos e, em um determinado momento é desafiado a fazer um grande sacrifício como prova de sua confiança em Deus, como prova de sua fé. Na campanha da “Fogueira Santa de Israel”, o fiel é desafiado a entregar à igreja algo valioso como prova de confiança absoluta em Deus. Em troca, seus pedidos devidamente anotados são levados a Israel, onde são apresentados a Deus. Neste caso, o pagamento pela bênção almejada é adiantado.

Importante observar que as indulgências católicas também funcionavam de modo parecido. O fiel católico da Idade Média entregava dinheiro à igreja como pagamento pelo perdão, recebendo em troca garantias de salvação ou a liberação da alma de outro alguém do Purgatório. Ou seja, era a troca de dinheiro por bênção que só Deus pode realizar. Evidentemente, não é possível amparar essas práticas aos ensinamentos de Jesus ou aos escritos apostólicos. Isso porque tais ensinamentos neopentecostais são oriundos de outras fontes, a exemplo do catolicismo, do espiritismo e de outras religiões afro-brasileiras.

A Lei no lugar da graça

Defender a possibilidade de cobrança de dízimos e de ofertas financeiras no período da graça é uma negação ao sacrifício de Cristo, que afastou a Lei para dar lugar à graça. Também, significa uma escolha pela retomada de preceitos da Lei de Moisés, ou seja, é escolher a Lei no lugar da graça, quando isso convém, é claro.

Como vimos no primeiro capítulo, afirmar que a prática do dízimo tenha sido instituída antes da Lei e que, por isso, não pertence originalmente à Lei, mas, sim, à graça é uma construção interpretativa demasiadamente forçada, já que os exemplos de dízimos de Abraão e de Jacó não são compatíveis nem com os dízimos da Lei nem com as coletas realizadas no tempo da graça.

Por isso, podemos afirmar que a cobrança de dízimos e de ofertas financeiras, tal qual observamos hoje, é uma prática da Lei. Sim, os evangélicos do nosso tempo estão, por conveniência, praticando um preceito da Lei de Moisés, mesmo sabendo que a igreja está desobrigada do cumprimento da antiga aliança, feita por Deus com os hebreus. Curiosamente, à exceção dos Adventistas do Sétimo Dia, os demais evangélicos, em boa medida, criticam a guarda do sábado porque afirmam que essa é uma exigência da Lei de Moisés que não mais se aplica aos cristãos que vivem sob a graça de Jesus. Entretanto, obedecem à Lei no tocante ao dízimo.

Bem sabemos que a guarda do sábado fazia parte de um pacto de Deus com o povo de Israel. Entretanto, o Senhor admitiu o proselitismo, prevendo a extensão de sua bênção aos estrangeiros, caso fossem circuncidados como sinal de admissão da aliança de Deus com Israel (Êx 12:48-49). Desde então, o prosélito tinha que viver como se judeu fosse. Semelhantemente, hoje, nós que aderimos à nova aliança estabelecida por meio do sangue de Cristo, nos tornamos filhos por adoção e passamos a viver a graça de Jesus, seguindo os preceitos do filho de Deus. Isso nos faz cristãos.

Estranhamente, há cristãos que querem viver como se fossem judeus, defendendo a necessidade do cumprimento de diversos preceitos da Lei de Moisés. Neste caso, para aqueles que querem viver pela Lei, Paulo recomenda que cumpram toda a Lei, uma vez que caíram da graça e se desligaram de Cristo:

“2 Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. 3 De novo, testifico a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a guardar toda a lei. 4 De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei; da graça decaístes.” (Gl 5:2-4, grifo nosso).

“12 Ora, a lei não procede de fé, mas: Aquele que observar os seus preceitos por eles viverá.” (Gl 3:12, grifo nosso).

Parafraseando Paulo, extraímos a seguinte verdade de Gl 5:2-4: “Eu, Paulo, digo que, para aqueles que querem cumprir a lei do dízimo e das ofertas, Cristo de nada vos aproveitará. De novo, testifico a todo homem que quer cumprir a lei do dízimo e das ofertas, que está obrigado a guardar toda a Lei. De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na Lei; da graça decaístes.”

Exceto aos hipócritas ou oportunistas, que querem extrair da Bíblia apenas o que lhes interessa, os homens sinceros que optem pela Lei em vez da graça, terão muita dificuldade ao tentar cumprir alguns preceitos da Lei, a exemplo do apedrejamento de filhos rebeldes e de adúlteros (Dt 21:18-21; 22:22), da proibição de que bastardos e suas dez gerações seguintes entrem na assembleia do Senhor (Dt 23:2), além do sacrifício de animais. Afinal, se alguém quer cumprir ou exigir o cumprimento da Lei, não deve ser parcial, mas deve cuidar para não tropeçar em nenhum deles:

“9 Por isso, também eu vos fiz desprezíveis e indignos diante de todo o povo, visto que não guardastes os meus caminhos e vos mostrastes parciais no aplicardes a lei.” (Ml 2:9, grifo nosso).

“10 Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos.” (Tg 2:10).

Entretanto, para quem quer viver sob a graça de Jesus, deve assumi-la por completo, para por ela ser justificado.

O ardil neopentecostal

Faremos neste tópico um breve apanhado dos principais elementos utilizados pelos neopentecostais com o fim de sustentar a teologia da prosperidade:

a) Casa do Tesouro

Equipara-se a Casa do Tesouro referida por Malaquias com a Casa de Deus (igreja).

Como vimos no capítulo quatro, apesar do nome “Casa do Tesouro”, não se tratava de cofres de moedas, ouro, prata, pedras preciosas ou outros valores monetários. Na verdade, eram armazéns para depósito dos dízimos, que eram alimentos e bebidas. Evidentemente, tal expressão nada tem a ver com a igreja de Jesus, nem mesmo com seus locais de reunião.

b) Roubando a Deus

Ensina-se que o crente que não entrega seu dízimo e suas ofertas está roubando a Deus e está debaixo de maldição.

No capítulo seis apresentamos o modo como Jesus consuma a Lei, cumprindo-a plenamente, de modo a nos desobrigar de seu ritual (Cl 2:14; 2Co 3:14-16). Nesse ato, Jesus substitui a Lei de Moisés por outra mais completa, fundamentada na graça e na espiritualidade. Assim, além de deixar a igreja livre de cumprir seus rituais, inclusive dízimos e ofertas, Jesus levou sobre si a própria maldição da Lei (Gl 3:13). Portanto, para a igreja, Jesus afastou tanto a Lei como a maldição. Se alguém está roubando e é digno de ser punido com maldições, certamente não é o discípulo de Jesus.

c) Janelas do céu

Afirma-se que Deus permitiu ser provado pelos crentes, prometendo-lhes um derramamento de bênçãos sem medida, pelas janelas do céu, caso sejam fiéis nos dízimos e nas ofertas.

Esclarecimentos apresentados nos capítulos cinco e seis são suficientes para demonstrar que por meio do profeta Malaquias Deus estava tratando com o povo de Israel e que tais condições para bênçãos não foram transferidas para a igreja. Esta, entretanto, não deixa de ser ricamente abençoada ao atentar para os mandamentos e ensinamentos do seu Senhor e salvador, Jesus.

d) Demônios devoradores

Ensina-se que pela fidelidade do crente nos dízimos e nas ofertas, Deus repreende “o devorador” o qual, segundo entendem, são demônios que atacam as finanças dos crentes infiéis.

Como vimos no capítulo cinco, no tempo de Malaquias, a terra havia sido invadida por insetos (“o devorador”, MI 3:11), e os grãos e os frutos não estavam amadurecendo. Daí, a promessa de Deus, dirigida ao seu povo, Israel, incluía o fim das pragas dos gafanhotos que destruíam as lavouras, bem como o fim das videiras inférteis, sem frutos.

A transformação de gafanhotos em demônios que atacam as finanças das pessoas e que só podem ser repreendidos por Deus, e isso quando o homem deixa de roubá-lo, entregando os dízimos e as ofertas na Casa do Tesouro (igreja) é uma construção engendrada para se consolidar a cultura do medo.

Na verdade, os gafanhotos referidos por Malaquias eram insetos; Casa do Tesouro eram galpões para se armazenar alimentos e bebidas (dízimos e ofertas); e a promessa de repreensão das pragas da lavoura foi dirigida a Israel e não à igreja. Isso porque eles haviam abandonado o compromisso da Lei de Moisés, a qual eles estavam sujeitos e não a igreja.

Portanto, infiel não é aquele que deixa de contribuir com os dízimos e as ofertas para a igreja, mas aquele que se aparta dos preceitos de Jesus, a quem recebeu como salvador e Senhor, para seguir seus interesses materialistas e gananciosos. Este, sim, está sujeito à manipulação por demônios.

e) Lei da semeadura

Aplica-se a figura da semeadura como uma Lei onde o dinheiro é a semente. Quanto mais os fiéis semeiam ofertas em dinheiro na igreja, mais colhem dinheiro e prosperidade como resultado.

Conforme detalhado no capítulo oito, Paulo, figuradamente, utiliza a semeadura para exemplificar os benefícios da generosidade em um contexto de coleta de donativos para os pobres da igreja, mas em hipótese alguma tal ensino pode ser relacionado a “sementes financeiras” a serem “plantadas na igreja” para a obtenção de riquezas materiais para a satisfação do egoísmo e da ganância humana. Tal entendimento é uma absoluta distorção do contexto em que Paulo aplicou essa figura, bem como é contrário à própria filosofia cristã.

Paulo apresentou o princípio da proporcionalidade para estimular a generosidade em boas ações, especialmente em favor da assistência aos santos, mas faz questão de esclarecer que ninguém deveria se sentir constrangido. Inclusive, a doação para o suprimento das necessidades materiais dos pobres não poderia ser acompanhada por um sentimento de obrigação, mas motivada, exclusivamente, pela fé e pela piedade.

“7 Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria.” (2Co 9:7, grifo nosso).

Analisando essa mesma passagem, Oliveira (2005, p. 105) afirma que “não temos aqui um texto sobre contribuição para ‘a obra do Senhor’, mas antes um texto que nos recomenda a caridade fraternal, o sustentar as cargas uns dos outros, o repartir o muito amor com que fomos agraciados pelo Eterno.”

De fato, Paulo está estimulando os cristãos a se tornarem ricos na graça e em frutos de justiça. Em momento algum faz relação dos donativos para os necessitados com o desejo pessoal e egoísta de prosperidade material. A riqueza apresentada por Paulo como resultado da semeadura tem um sentido de elevação moral (boas obras de justiça) e espiritual em face do exercício do amor ao próximo, assim como ordenado por Jesus. O milagre de Deus, portanto, está na multiplicação da graça. Assim, o ato de dar aos pobres produz um ciclo virtuoso. Ou seja, cada vez mais o generoso teria condições de ser generoso, pois o que dá recebe de volta e torna a dar, de modo que a suficiência se amplia para que o misericordioso tenha cada vez mais condições de exercer misericórdia. Por isso, quem tem muita graça, terá boas obras em maiores medidas, superabundantes.

“8 Deus pode fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa obra, 9 como está escrito: Distribuiu, deu aos pobres, a sua justiça permanece para sempre. 10 Ora, aquele que dá semente ao que semeia e pão para alimento também suprirá e aumentará a vossa sementeira e multiplicará os frutos da vossa justiça, 11 enriquecendo-vos, em tudo, para toda generosidade, a qual faz que, por nosso intermédio, sejam tributadas graças a Deus.” (2Co 9:8-11, grifo nosso).

Portanto, a figura da semeadura, aplicada nesse contexto de socorro aos necessitados, leva Paulo a reforçar o amor pelo altruísmo e não a ganância pelo egoísmo. Esse é o princípio cristão que está no coração de Deus – amor ao próximo com assistência à necessidade dos santos. Essa, pois, é a razão de Paulo estar convicto de que esse trabalho de coletas entre irmãos era algo aceitável e agradável ao Senhor. O apóstolo sabia que essa coleta e distribuição geraria satisfação ao doador e muitas “graças a Deus”, ou seja, os pobres que recebessem a oferta dariam muito louvor a Deus por suas providências (2Co 9:11-15).

Fica o alerta! Ao contrário do que defendem os líderes neopentecostais, a figura da semente não é uma panaceia espiritual, aplicada para tudo o que queremos ver multiplicado em nossas vidas. Embora Paulo tenha utilizado o princípio da proporcionalidade da ação/reação, fez isso para uma aplicação no campo da generosidade e especificamente para ensinar aos coríntios sobre os benefícios que a contribuição fraternal pode trazer à igreja, tanto aos doadores como aos que recebem essa dádiva.

f) Confissão positiva para exigir direitos

Afirma-se que o certo não é pedir a Deus, mas exigir dele todas as bênçãos prometidas em Dt 28:1-14 e em Ml 3:10-12.

A “confissão positiva” adotada pelo neopentecostalismo dá suporte à teologia da prosperidade na medida em que os líderes desse movimento apresentam a Bíblia como um contrato de fé entre Deus e os crentes. Deus, que é justo e fiel, sempre cumpre a sua parte. Então, os crentes devem cumprir a sua. Nesse sistema, enquanto a parte de Deus é abrir as janelas do céu (Ml 3:10-12) e derramar todas as bênçãos prometidas em Dt 28:1-14, a parte do homem é ser fiel em sua obrigação de dar dízimos e ofertas à igreja. Uma vez que os fiéis cumpram a sua parte, Deus fica obrigado a cumprir suas promessas.

Neste ensino neopentecostal, considerando a fidelidade de Deus, tudo o que alguém ainda não recebeu é porque não foi suficientemente fiel em dízimos e ofertas ou porque não agiu com fé. Desse modo, se a bênção esperada nunca vier, conforme anunciado, a culpa será sempre do próprio homem e nunca de Deus ou dos pregadores.

Para que o fiel (nos dízimos e ofertas) aprenda a se relacionar corretamente com Deus, R. R. Soares afirma que a palavra pedirdes (αιτεσθε) no texto de Jo 14:13 foi mal traduzida, pois a tradução correta para a palavra é “determinar, exigir, mandar, ordenar”. Entretanto, não indica nenhuma base para tal afirmação. Vejamos o texto:

“13 E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho.” (Jo 14:13, grifo nosso).

Como não poderia deixar de ser, o exame exegético da palavra em questão, não confirma a teoria de Soares. Na verdade, uma simples consulta a um bom dicionário é suficiente para eliminar essa dúvida. No Novo Testamento, o verbo “pedir” que aparece em Jo 14:13-14 é a tradução do grego aiteo. De acordo com Vine, Unger e White Júnior (2007, p. 860), aiteo sugere a atitude de um suplicante, uma petição de alguém que está em posição menor que a daquele a quem é feita a petição, como em Mt 7:11 (uma criança pedindo a seu pai) e Atos 12:20 (vassalos fazendo um pedido ao rei). Esse verbo aparece muitas vezes nas epístolas (Ef 3:20; Cl 1:9, Tg 1:5-6; 1Jo 5:14-15). Em todas essas passagens, seria impossível substituir o verbo “pedir” por “exigir”.

Logo, tal afirmativa dos neopentecostais, no contexto da teologia da prosperidade, serve apenas para estimular a ambição daqueles que acreditam que depois de entregarem seus dízimos e ofertas estão aptos a exigir de Deus o cumprimento de suas promessas, como se Deus fosse obrigado a satisfazer seus anseios materialistas.

g) A obra de Deus precisa de sua contribuição

Sob apelo emocional neopentecostal, cada fiel fica convicto de que sua contribuição estará salvando almas. Se ele não pode deixar seus afazeres para se dedicar à obra missionária, deve entregar sua contribuição para aqueles que estão cumprindo essa missão em seu lugar, fazendo o que ele não pode fazer.

Com esse argumento, todo projeto da igreja estará justificado. A ampliação do templo é para ganhar mais almas; o programa de TV é para ganhar mais almas; o investimento em equipamento de som é para ganhar mais almas; o salário do pastor é para ganhar mais almas, e assim por diante. No fim, o que se nota é que a estrutura eclesiástica está cada vez mais robusta e que todo o investimento gira em torno dela mesma.

E, de fato, ela está cada vez mais necessitada de recursos financeiros para atender seus padrões modernos de sucesso. Oliveira (2005, p. 9-13) explica que a institucionalização da igreja, com apresentação de organizações complexas, bem estruturadas, burocráticas e com grande número de funcionários tem exigido cada vez mais dinheiro (dízimos e ofertas) para fazer as mesmas coisas que antes se fazia com a voluntariedade dos membros da igreja, que se doavam pela causa do evangelho. Curiosamente, num tempo em que se fala em “mais bem aventurado é dar do que receber” (At 20:35), as pessoas estão cada vez menos dispostas a oferecer seus serviços liberalmente.

Para exemplificar, Oliveira (2005, p. 13) diz o seguinte:

“Quando eu era jovem, na década de cinquenta, ouvi em diversas igrejas de nossa cidade excelentes corais, dirigidos por competentes maestros que dedicavam generosamente grandes parcelas de seu tempo pessoal a essa atividade. Hoje, em muitas dessas mesmas igrejas, os corais continuam a existir, mas são dirigidos por ‘ministros de música’ que exercem sua atividade recebendo remuneração por isso. Da mesma forma, há secretários, administradores, tesoureiros, etc. E nem mesmo se pode dizer que essas igrejas sejam hoje muito maiores do que eram na década de cinquenta, de modo que se possa admitir que o volume das necessidades cresceu mais rapidamente do que a capacidade de supri-las por intermédio de pessoas trabalhando voluntariamente.

Portanto, não é nem um pouco estranho que as igrejas apresentem hoje grandes necessidades financeiras e, como consequência disso, deem tanta importância ao dízimo.”

Por outro lado, os fiéis, acomodados e com suas consciências aliviadas por terem entregado seus dízimos e ofertas “a Deus”, nem mesmo se interessam em saber se o produto da arrecadação da igreja foi aplicado nos fins biblicamente corretos. E, nessas estruturas neopentecostais, normalmente, não são. Quanto mais crescem, mais se distanciam dos padrões de Jesus, de Paulo e dos demais apóstolos. O dinheiro recolhido dos fiéis não é aplicado nem nos objetivos previstos pela Lei de Moisés e nem nas finalidades que tinham as coletas realizadas por Paulo.

Sobre a questão, Oliveira (2005, p. 12,13) registrou interessante depoimento:

“Completo este ano 50 anos de vida, que passei integralmente dentro da Igreja. Fui tesoureiro de duas igrejas, por períodos superiores a dois anos em cada caso, e uma dessas congregações tinha à época mais de mil membros. Portanto, conheço bem a estrutura das despesas de uma igreja, e posso dizer sem muitas dúvidas que a parcela mais substancial das despesas de uma igreja está vinculada à manutenção de sua estrutura burocrática e eclesiástica (aqui incluído o sustento de seus ministros). Por outro lado, apenas uma parcela ínfima é destinada ao atendimento das carências das pessoas, sejam elas membros ou estranhos à comunidade.” (grifo nosso).

 

Avançando em sua exposição, mais adiante, Oliveira (2005, p. 37-38) conclui:

“Por outro lado não se faz qualquer reflexão sobre as necessidades financeiras das igrejas atuais, procurando identificar se elas são legítimas e apropriadas, ou se, ao contrário, são resultado de uma ótica errada, que prestigia as grandes estruturas, a pompa eclesiástica e templos suntuosos, deixando de lado as preocupações verdadeiramente cristãs da caridade e do amor fraternal. […] O que esses estudos deixam transparecer é uma atitude muito simples: as igrejas têm o direito de gastar o que bem entenderem, da forma como julgarem melhor. Por outro lado, a obrigação do crente é contribuir sem questionar.” (grifo nosso).

Enfim, sob o apelo neopentecostal, embora o fiel acredite que está entregando seu dinheiro a Deus, contribuindo para a grande obra da salvação, está, na verdade, alimentando uma estrutura que cada vez mais se afasta da vontade do Senhor e conduz seus novos adeptos ao engano.

h) Ridicularização dos piedosos

Não bastasse a pregação do engano, o neopentecostalismo faz questão de ridicularizar as pequenas igrejas, os pastores de pequenos rebanhos e os desapegados que não são ambiciosos como eles.

É comum ouvi-los menosprezando os simples dizendo coisas do tipo: “o irmãozinho frequenta sua igrejinha há 20 anos e continua em sua vida miserável porque não aprendeu a exercitar a verdadeira fé”. Também, referem-se aos pastores de pequenos rebanhos como fracassados, insinuando que o ministério de sucesso é aquele que reúne grande número de pessoas e que assiste em igrejas suntuosas.

Ao ouvir mensagens como essas, muitos, sentindo-se diminuídos e derrotados, deixam-se levar em direção ao laço da ganância. Quando são enredados, abraçam o “movimento fé” e absorvem o distorcido “evangelho da prosperidade”.

Não são poucos os que têm abandonado o verdadeiro evangelho por causa da ganância. Estes, ao adotar o padrão de sucesso neopentecostal, começam a lutar não mais pela salvação dos homens, mas pelo crescimento de suas instituições.

 

CAPÍTULO 11

A IGREJA CRISTÃ SEM DÍZIMOS

Uma vez que afirmamos que o dízimo foi abolido por ser uma exigência da Lei de Moisés, inaplicável aos cristãos como norma reguladora de sua prática de fé, cumpre-nos apresentar uma proposta de solução para a subsistência e para o progresso da igreja cristã que vive na graça de Jesus, mas isso implica mudança. Daqui por diante, portanto, a leitura só interessará a quem chegou à conclusão de que o sistema evangélico moderno, contaminado pelo neopentecostalismo, precisa de uma recondução aos princípios originalmente apresentados por Jesus. Afinal, ninguém pensa em mudar o que acha que está certo.

Para quem quer mudanças, o primeiro passo a ser dado é uma avaliação sincera do que tem que ser alterado. Para nós, o sistema evangélico está viciado, mas o homem é o seu principal agente corruptor. Logo, qualquer mudança que desejarmos produzir nessa área, passa por uma indispensável reflexão sobre o quanto é necessário alterarmos nossos próprios padrões morais e religiosos.

A proposta deste livro é fornecer elementos de convicção para que o leitor perceba o quanto o comportamento evangélico moderno está afastado de Cristo. É claro que só podemos perceber isso se abstrairmos a realidade bíblica do contexto dos hábitos e das tradições evangélicas. Por certo, não é fácil mexer com estruturas já consolidadas na mente e na cultura das pessoas, mas o rompimento é possível, pois a verdade liberta (Jo 8:32).

Deixemos, pois, as escrituras sagradas falarem por si mesmas, afastando de nossas mentes, ainda que por um instante, o que aprendemos nas igrejas influenciadas pelo neopentecostalismo sobre “o que Deus espera de nós” quando o assunto é “dinheiro, bens e riquezas materiais”. Com o espírito livre, fica mais fácil encararmos o que a bíblia nos diz a esse respeito.

O que Deus espera de um líder religioso?

Neste tópico, extrairemos da bíblia apenas o que Deus espera do líder religioso no tocante à sua relação com dinheiro, bens e riquezas materiais. A pergunta que fazemos, desde logo, é a seguinte: é possível que um líder “segundo o coração de Deus” seja avarento ou ganancioso?

Por definição retirada do dicionário Aurélio, avareza é um excessivo e sórdido apego ao dinheiro, que pode ser associada à mesquinhez e à falta de generosidade. Já a ganância é uma ambição desmedida por ganhos. Longe de serem virtudes, tais substantivos revelam vícios de comportamentos que devem ser repugnados pelo líder religioso, conforme veremos a seguir.

Logo após a saída do povo hebreu do Egito, Jetro, sogro de Moisés, veio ao seu encontro para lhe trazer sua mulher, Zípora, e seus dois filhos (Êx 18:1-4). Ao ver como Moisés julgava o povo, sozinho, desde a manhã até ao pôr do sol (Êx 18:14), Jetro o aconselhou a estabelecer lideranças hierarquizadas abaixo de si para que seu fardo fosse aliviado, recomendando-lhe, inclusive, as características dos líderes que haveriam de assumir essas importantes funções diante do povo de Deus, quais sejam:

“21 Procura dentre o povo homens capazes, tementes a Deus, homens de verdade, que aborreçam a avareza; põe-nos sobre eles por chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinquenta e chefes de dez;” (Êx 18:21, grifo nosso).

Importante notar as características que foram usadas para definir um homem digno de assumir uma função de liderança junto ao povo de Deus. A primeira coisa que destacamos é que não basta ao líder ser um “homem de verdade” e “temente a Deus”. Ele precisa aborrecer a avareza, ou seja, além de não ser avarento (mesquinho e apegado ao dinheiro), deve colocar-se contra toda a avareza dos homens.

Infelizmente, é difícil de notar todas essas características nas lideranças evangélicas do nosso tempo. Às vezes até concluímos que alguns dos líderes, não todos, são corajosos, homens de verdade e tementes a Deus, mas entremeadas às suas mensagens, aparentemente piedosas, incluem-se apelos financeiros, sob a forma de dízimos e de ofertas.

Nas igrejas neopentecostais, ou contaminadas pelo neopentecostalismo, é impossível participar de um culto ou reunião sem ter que passar pelo constrangimento de ouvir pedidos de dízimos e de ofertas.

 Mesmo que estes homens não saibam que pedem dinheiro sob fundamentos errados e para a aplicação em projetos absolutamente diferentes dos que foram propostos nas epístolas paulinas, deveriam ao menos saber que Jesus jamais deu exemplos parecidos com o que hoje fazem.

Ao contrário, como vimos no capítulo sete, nosso Mestre nos provou que é possível realizar sua missão contando apenas com a providência de Deus a mover a voluntariedade espontânea das pessoas para acolher os seus discípulos e sustenta-los com o essencial enquanto anunciam as boas novas. Deveriam, também, saber que a missão de Jesus nunca incluiu qualquer tipo de proveito pessoal, muito menos de enriquecimento, entesouramento, luxo ou conforto pagos com recursos da voluntariedade e da espontaneidade dos colaboradores.

É óbvio que um estudioso da palavra de Deus tem consciência de que o Filho do Altíssimo, Jesus, nasceu em um lar pobre e, durante seu ministério itinerante, não tinha nem posses nem um lar, chegando a afirmar que até as raposas e os pássaros tinham abrigos, mas que o Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça (Lc 9:58).

Jesus “ensinava de dentro de um barco emprestado, foi para Jerusalém montado em um jumento emprestado, passou sua última noite em um salão emprestado e foi enterrado em um túmulo emprestado. Ele e seus apóstolos compartilhavam uma bolsa de dinheiro e dependiam, para seu sustento, de um grupo de mulheres que às vezes os acompanhavam (Lc 2.2ss., cf. Lv 12.6ss.; Lc 9.57ss.; Mc 4.1; 11.1ss.; 14.12ss.; 15.42ss.; Jo 12.6; Lc 8.1ss.)”. (STOTT, 2014, p. 329, grifo nosso)

Inegável, portanto, que o Filho de Deus preenchia todos os requisitos de Jetro. Era corajoso, obediente ao Pai, um “homem de verdade”, não avarento e que aborrecia a avareza. Sua mensagem demonstrava o quanto ele repugnava esse vício. Certa vez, em um de seus discursos, afirmou que o homem é contaminado pelo que sai da sua boca, porque de dentro do coração dos homens procede muitos males, inclusive a avareza (Mc 7:20-23). Em outra ocasião, quando alguém lhe pediu que o ajudasse em uma questão de repartição de herança, Jesus prontamente o repreendeu dizendo que seu propósito não era cuidar de questões materiais e, ao fim, advertiu seus discípulos que se guardassem de toda e qualquer avareza (Lc 12:13-15). Por último, expulsou os gananciosos do Templo, que se aproveitavam do culto e da fé dos homens para auferir lucros (Jo 2:13-16).

Paulo, de igual modo, preenchia os requisitos sugeridos por Jetro para um líder. Era destemido, temente a Deus, um “homem de verdade”, não ganancioso e que aborrecia a avareza. A prova de que não possuía esses vícios de comportamento foi sua própria vida. Sua conversão o levou a um desapego absoluto do materialismo. Deixou de ser fariseu, abandonando toda a honra atribuída a essa casta religiosa, preferindo os sofrimentos que a causa de Cristo lhe traria (1Co 4:11-13; 2Co 11:7-9).

Como asseveramos no capítulo oito, Paulo, escolheu viver humildemente, trabalhando para seu próprio sustento, sem explorar a igreja, sem ser oportunista diante de sua grande importância no âmbito cristão e, por isso, não terminou sua vida em um palácio, rodeado de empregados, de bajuladores e de políticos interessados em sua influência junto aos cristãos. De modo contrário, chegou ao fim de sua vida encarcerado, condenado à morte e dependendo de auxílio da igreja para sua subsistência. E, além de não ser avarento e mesquinho, Paulo, do mesmo modo que Jesus, condenou a avareza fora e dentro da igreja. Ao escrever aos romanos, ele criticou severamente a depravação dos homens e os acusou de serem avarentos (Rm 1:18-32). Ao escrever aos colossenses, recomendou-lhes que renunciassem às paixões da carne e fizessem morrer suas naturezas terrenas, incluída aí a avareza, que chegou a denunciá-la como idolatria (Cl 3:5).

Portanto, ao que cabe nesta análise, podemos afirmar, com toda certeza, que Deus espera que os cristãos, além de não serem gananciosos, devem repudiar a avareza.

O líder segundo as expectativas de Deus (“homem de verdade”), não deve ser mesquinho, apegado ao dinheiro ou ganancioso. Antes, espera-se que seja generoso e disposto a repudiar a avareza.

O que Deus espera de um cristão?

Neste tópico, extrairemos das escrituras sagradas apenas o que Deus espera do Cristão no tocante à sua relação com dinheiro, bens e riquezas materiais. Estaria Deus em sua Palavra estimulando a avareza e a ganância? Se não, qual seria a virtude a ser desenvolvida pelo caráter de Cristo em seus discípulos?

Impossível chegar a outra conclusão – a opção bíblica para o cristão é a generosidade com contentamento. A primeira carta de Paulo a Timóteo é bastante reveladora:

“17 Exorta aos ricos do presente século que não sejam orgulhosos, nem depositem a sua esperança na instabilidade da riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para nosso aprazimento; 18 que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar e prontos a repartir;” (1Tm 6:17-18, grifo nosso).

Nessa carta, o apóstolo nos ensina a sermos imitadores de Cristo e seguidores de sua instrução, uma vez que Jesus já nos ensinou a ajuntar tesouro no céu. Mas, não basta ser generoso, é preciso que essa virtude seja acompanhada de contentamento, porque dar e ficar triste com o que sobrou anularia o efeito da primeira ação. Por isso, Paulo exalta o contentamento na mesma carta, senão vejamos:

“6 De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento. 7 Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. 8 Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. 9 Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. 10 Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores.” (1Tm 6:6-10, grifo nosso).

Se observarmos bem, Paulo traz instrução aos ricos e aos que querem ficar ricos (gananciosos). Segundo Stott (2014, p. 335-338), a ganância é uma paixão autodestrutiva, uma ânsia que nunca é satisfeita, mesmo quando já se possui o que era desejado. Por isso o sábio disse que “quem ama o dinheiro jamais dele se farta; e quem ama a abundância nunca se farta da renda; também isto é vaidade.” (Ec 5:10). Schopennhauer, em pensamento semelhante, disse que “a riqueza influencia-nos como a água do mar. Quanto mais bebemos, mais sede temos”.

Stott (2014) diz que o contentamento, portanto, é o segredo da paz interior. Ele lembra que nada trouxemos para este mundo e nada levaremos dele (1Tm 6:7). A vida, de fato, é uma peregrinação entre dois momentos de nudez, ou seja, nascimento e sepultamento. Assim, deveríamos fazer essa viagem sem muito peso e viver com simplicidade. Esta nos diz que tendo o que comer e o que vestir deveria nos bastar, pois o contentamento está atrelado à piedade, ao conhecimento de Deus em Jesus Cristo e ao conhecimento de que a piedade com contentamento é grande fonte de lucro (1Tm 6:6).

Então, deveria o rico se tornar pobre? Stott (2014) diz que não necessariamente. Apesar de, sem dúvida, Jesus ainda chamar alguns, como o jovem rico, para deixar sua riqueza para segui-lo, esta não é a vocação de todos os discípulos, a exemplo de José de Arimateia, um discípulo rico e piedoso (Mt 27:57), e de Zaqueu que mesmo em sua generosidade ainda ficou com a metade de sua riqueza (Lc 19:8).

O importante aos cristãos ricos é serem generosos e não mesquinhos. Também, devem renunciar ao desperdício e a extravagâncias, inclusive na construção de templos religiosos. Tais coisas revelam a falta de simplicidade. Por isso, mesmo considerando que a simplicidade não é incompatível com as posses materiais, a falta de generosidade torna o homem apartado do amor de Deus:

“17 Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1Jo 3:17, grifo nosso).

Ora, se nosso Deus é generoso, como seus seguidores poderiam ser avarentos e mesquinhos? Por isso, um sinal de que alguém é de Deus é o modo como se relaciona com o dinheiro, com as riquezas e com os valores materiais deste mundo. Por isso, João conclui:

“18 Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade.” (1Jo 3:18, grifo nosso).

Enfim, como bem observou Oliveira (2005, p. 140), “o caráter virtuoso do cristão não é uma joia rara para ser admirada, ou para envaidecer o seu possuidor. Ao contrário, como tudo o mais na vida cristã, é um meio efetivo para servir melhor ao próximo. […] O caráter virtuoso, assim como os carismas, não são concedidos ao cristão para servir apenas de deleite pessoal ou para contemplação por seus semelhantes, mas como equipamento essencial para o desempenho da grande tarefa de sua vida: servir!”.

O primeiro obstáculo a ser removido

Se, honestamente, admitirmos que os vícios de comportamento repugnados por Deus não podem ser absorvidos pelos cristãos, como é possível que tantos “homens de Deus” possuam tais vícios?

O fato é que ficamos confusos ao ver tantas pessoas, inclusive líderes evangélicos influentes, teólogos e conhecedores da Palavra de Deus, não só desenvolvendo esses vícios, mas estimulando-os na vida dos fiéis de suas igrejas. Como pode ser isso? Estaria Deus, hoje, aprovando o que antes desaprovava? Ou, estariam os fiéis enredados por falsos mestres e falsos profetas? Afinal, todos os que pregam heresias são, aparentemente, santos, justos e bons.

Mas, para não cairmos no laço do Diabo, Jesus nos ensinou a identificar um falso profeta pelos frutos, e não pela aparência, não pela eloquência, não pelas revelações, não pela demonstração de poder diante demônios (exorcismo) e nem mesmo pela produção de milagres (Mt 7:22).

Se, por um lado, a Palavra de Deus é contundente ao afirmar que um líder não deve ser avarento ou ganancioso, por outro, ela é clara em relacionar pessoas com essas características aos falsos mestres e aos falsos profetas.

A simples observação do comportamento de um líder evangélico será suficiente para se constatar que tipo de fruto ele produz, pois um pouco de fermento leveda toda a massa (Lc 13:21; 1Co 5:6; Gl 5:9). Paulo nos ajuda nesta tarefa ao afirmar que o homem espiritual não deve satisfazer às concupiscências da carne (Gl 5:16), mas produzir o fruto do Espírito (Gl 5:22-23). Adicionalmente, nos assegura que o avarento, que é idólatra (Cl 3:5), não trabalha para Deus ou para o seu reino (Gl 5:21). Aliás, idólatras nem mesmo herdarão o reino de Deus (Gl 5:20-21).

Na prática, alguns sinais nos ajudam a identificar a obra dos falsos profetas e dos falsos mestres. Se um líder religioso, conhecedor da Palavra de Deus, insiste em afirmar que dízimos e ofertas são ordenanças do Senhor para a igreja de Jesus, a luz amarela já deve acender. Se os pedidos por dízimos e ofertas apelam para a ganância dos homens, oferecendo-se contrapartidas obrigatórias de Deus, o sinal amarelo começa a piscar. Outro aviso é o modo como se pede a contribuição. Se estiver envolta em provocações de cunho emocional, constrangimentos morais, incluindo coação terrorista com exemplos de desgraças na vida de supostos infiéis em entregar dízimos, o sinal de alerta começa a piscar mais intensamente.

Resta, na sequência, observar a destinação que o pedinte confere aos valores arrecadados e o seu modo de vida. Se o dinheiro arrecadado atende prioritariamente à manutenção da estrutura religiosa, rica e extravagante, estimulando vaidades, ambições por cargos, luxo, glamour e vida regalada para suas lideranças, o sinal vermelho acende.

Eis o alerta! O falso profeta tem especial interesse em engrandecer e sofisticar sua estrutura eclesiástica. Pois, quanto mais admirável ela for, mais justificada estará sua riqueza pessoal, seus luxos, suas extravagâncias, suas vaidades e privilégios. Para esse propósito, o falso mestre faz de tudo para que a arrecadação não diminua seu ritmo. Todos são constantemente estimulados a dar.

Onde está, exatamente, a ganância e a avareza dos líderes evangélicos contaminados pelo neopentecostalismo? Eles pedem, pedem, pedem dinheiro para suas instituições, mas nem eles nem suas instituições não dão nada para ninguém. Aí se manifesta a avareza (Pv 30:15).

Os pedintes avarentos insistem em dizer que “mais bem aventurado é dar do que receber” (At 20:35), mas tal expressão bíblica somente é utilizada para que os fiéis entreguem seus valores à igreja. A instituição, por sua vez, não faz o mesmo que ensina. Nem se lembra que o mesmo versículo faz referência ao socorro aos necessitados. Não estão dispostos a abrir seus cofres para socorrê-los.

Vale destacar que viver regalada e confortavelmente com o dinheiro recolhido dos fiéis, especialmente dos pobres, é algo injusto e reprovável aos olhos de Deus. O luxo não pode ser justificado nem mesmo pelo valor do trabalho que se está prestando, até porque o mais difícil foi feito por Jesus e ele não gozou de qualquer conforto em seu ministério.

Nesse sentido, Oliviera (2005, p. 41) disse que “na questão da contribuição em nossas igrejas, talvez tenha chegado a hora de olhar menos para a forma pela qual o povo contribui, e avaliar melhor a maneira pela qual as lideranças se conduzem.”

Também, é necessário reafirmar que a mensagem do evangelho não é produto a ser colocado no mercado, sob qualquer forma. Nenhum “homem de verdade”, “temente a Deus” tem coragem de fazer isso, pois ele sabe que a exploração comercial da fé é prática de falsos profetas, de falsos mestres e dos propagadores de heresias, senão vejamos:

“1 Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. 2 E muitos seguirão as suas práticas libertinas, e, por causa deles, será infamado o caminho da verdade; 3 também, movidos por avareza, farão comércio de vós, com palavras fictícias; para eles o juízo lavrado há longo tempo não tarda, e a sua destruição não dorme.” (2Pe 2:1-3, grifo nosso).

Estes, portanto, são os indícios que nos ajudam a perceber a astúcia dos falsos mestres e dos falsos profetas, negociantes de produtos da fé. São pregadores do distorcido “evangelho da prosperidade”, firmado sob as bases da mentira e do engano para explorar a fé dos homens, retirar deles o máximo de dinheiro possível para enriquecer suas estruturas religiosas e, consequentemente, a si mesmos. Certamente, tais homens são obstáculos para todos quantos desejam lutar por uma igreja segundo os padrões de Jesus. Desviemo-nos, pois, deles.

“1 Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, 2 pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, 3 desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, 4  traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, 5  tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes.” (2 Tm 3:1-5, grifo nosso).

O segundo obstáculo a ser removido

Não é de se espantar que os evangélicos estejam hoje tão avarentos e gananciosos, uma vez que estão aprendendo esse desvio dentro da própria igreja. Na verdade, alguns já vieram para a igreja motivados pela mensagem egoísta da prosperidade. Entregam os dízimos e as ofertas, mas pensando no retorno financeiro que isso lhes dará. Não contribuem pensando em ajudar alguém, mas pensando em si mesmos. A estes, nem mesmo interessa se o dinheiro será desviado de seus fins. O importante é que Deus os honre com prosperidade e repreensão dos demônios devoradores, uma vez que são fiéis em pagar seus dízimos e ofertas.

O coração dos gananciosos, avarentos e interesseiros está no dinheiro e não no Senhor. Deus é o meio e não o fim, ou seja, Deus é como uma instituição financeira em que alguém aplica seu dinheiro com esperança de retirá-lo mais tarde com lucros para poder gastar em outras coisas.

Mas, se por um lado temos os evangélicos avarentos porque só pensam nos benefícios que terão sendo fiéis nos dízimos e nas ofertas, por outro temos muitos outros que criticam as lideranças e os evangélicos avarentos mencionados, mas eles mesmos não se envolvem com a causa do evangelho. Sabem o que está errado nos outros, mas eles próprios não fazem o que é certo. Esquecem-se que o erro dos outros não os justificarão. Suas mãos estão fechadas para os necessitados e nenhum trabalho, por mais correto que seja, jamais poderá contar com a cooperação dessas pessoas. Na verdade, esses evangélicos são tão egoístas quanto a outra classe de avarentos evangélicos – não ajudam ninguém porque só pensam em si mesmos. Se a igreja de Jesus dependesse de pessoas assim para realizar sua missão, minguaria até desaparecer.

Oliveira (2005, p. 130-131) apresenta acertada observação quando diz que “precisamos esperar que cada cristão cresça e então comece a compreender essa verdade, iniciando o movimento de sair de si mesmo em direção aos outros, olhando o seu semelhante como digno de receber aquilo que Deus lhe concedeu primeiro. […] Não custa lembrar que o nosso maior inimigo somos nós mesmos, porque sempre colocamos o nosso bem-estar e a nossa comodidade acima de todas as coisas e elegemos o nosso próprio umbigo como sendo digno de muito mais respeito e consideração do que os demais umbigos à nossa volta. A coisa mais difícil é vencer o egoísmo, o voltar-se para dentro, e aprender a virtude evangélica por excelência que é a doação irrestrita de nós mesmos em amor.”

Enfim, como bem disse Jesus, devemos primeiramente tirar a trave que está em nossos olhos para depois estarmos em condições de apontar o cisco no olho dos outros. Por isso, se algum cristão não é generoso, pronto a cooperar com a igreja de Cristo e corajoso para se dar em prol do seu evangelho, não deve se indignar contra os exploradores da fé nem contra os demais evangélicos avarentos e gananciosos. Antes, deve preocupar-se com sua própria torpeza. Somente assim, reconhecendo seus próprios erros, estará em condições de se arrepender e de remover o grande obstáculo que o impede de viver segundo o padrão de Jesus.

O padrão: experiência ou norma?

No capítulo oito, estudamos os registros históricos sobre o modo como dinheiro, bens, riquezas materiais foram tratados pelos apóstolos. Agora, voltamos a tratar sobre a igreja de Atos dos Apóstolos, mas sob a perspectiva do aprendizado que daí podemos retirar para apresentar uma proposta consciente e factível para o futuro da igreja.

Também, já sabemos o que Deus espera de um líder evangélico e dos cristãos, de modo geral, além de conhecermos os grandes obstáculos que precisamos enfrentar. Podemos então começar a pensar em uma igreja que não precise impor falsos fundamentos aos seus fiéis para alcançar os objetivos para a qual foi instituída.

Partindo desse conhecimento, temos de enfrentar a seguinte questão: o comportamento dos cristãos de Atos dos Apóstolos, que repartiram seus bens, deveria ser o padrão para a igreja moderna?

A resposta passa, necessariamente, pela compreensão da diferença existente entre registros bíblicos históricos e didáticos, ou normativos. O livro de Atos dos Apóstolos contém uma abordagem histórica descritiva e não pode ser considerado fora desse contexto. Como afirmamos nos esclarecimentos quanto à metodologia seguida por este livro, nossa base de análise é a Bíblia Sagrada. Para nós, quem quer descobrir o propósito de Deus para a humanidade, tem de aceitar que a sua vontade está expressa na Bíblia e não advém da experiência particular de indivíduos ou grupos, por mais reais e válidas que possam parecer.

A experiência nunca deve ser o critério da verdade; a verdade deve sempre ser o critério da experiência”. (STOTT, 1986, p. 10, grifo nosso).

Aproveitando os ensinos de Stott (1986), a revelação do propósito de Deus na Bíblia deve ser buscada preferencialmente nas suas passagens didáticas, e não nas descritivas. Para ser mais preciso, devemos procurá-la nos ensinos de Jesus e nos sermões e escritos dos apóstolos, e não nas seções puramente narrativas de Atos dos Apóstolos. O que a Escritura descreve como acontecendo a outros não precisa necessariamente acontecer conosco; porém do que nos é prometido devemos nos apropriar, e o que nos é ordenado (normas bíblicas) devemos obedecer.

A título de exemplificação, Stott (1986) utiliza a passagem de Atos dos Apóstolos onde os primeiros cristãos em Jerusalém venderam muitos dos seus bens, tinham o restante em comum, e distribuíam bens e dinheiro “à medida que alguém tinha necessidade” (At 2:44,45; 4:32-37). Devemos deduzir disto que eles estabeleceram um padrão que todos os cristãos devem imitar, de maneira que a propriedade privada é proibida aos cristãos? A despeito dos que pensam que sim, entendemos mais adequado considerar que a generosidade e o cuidado mútuo destes primeiros cristãos é que devem ser imitados. Isso está perfeitamente em sintonia com a essência de todo o Novo Testamento, que nos ordena muitas vezes que amemos e sirvamos uns aos outros, e que sejamos generosos (até sacrificiais) em nossas contribuições.

Concordamos, também, com Stott (1986) quando afirma que o argumento baseado na prática da primeira igreja de Jerusalém, de que toda propriedade particular fica abolida entre os cristãos, não somente não pode ser mantido pelo texto, como até é contrariado claramente pelo apóstolo Pedro no mesmo contexto (At 5:4) e pelo apóstolo Paulo em outras passagens, como em 1Tm 6:17.

Devemos derivar nossos padrões de fé e de comportamento cristão do Novo Testamento sempre isso nos for dado como regra e não criar normas baseadas apenas em práticas e experiências que ele descreve.

Portanto, sem desprezar a experiência distributiva vivida pelos cristãos de Atos dos Apóstolos, mas reconhecendo que a experiência histórica e particular não fixa doutrina, abstraímos daquele contexto ensinamentos preciosos, os quais, harmonizados com os princípios ensinados por Jesus e reforçados por Paulo, nos servirão de guia para viabilizar a igreja em nosso tempo, sem exageros nem omissões.

Viabilizando a igreja

A igreja evangélica brasileira está inegavelmente contaminada pelo neopentecostalismo. Apenas alguns segmentos mais tradicionais ainda resistem à “teologia” neopentecostal. Ao longo das últimas décadas, esse movimento se espalhou diversificando-se de maneira significativa e vem sendo acolhido em maior medida pelas igrejas que já se declaravam pentecostais, de modo que o anúncio de crescimento da população evangélica no Brasil (INSTITUTO…, 2012) na verdade indica o crescimento do neopentecostalismo. As igrejas que abraçaram esse movimento no Brasil compõem o segmento que mais cresce no evangelicalismo nacional e já representam 42% do grupo pentecostal (BLEDSOE, 2012, p. 11), ou seja, de todos os que se dizem pentecostais, 42% são, na verdade, neopentecostais.

Afirmar que a igreja evangélica está em franca expansão no Brasil é uma precipitação da empolgação com números, pois, na realidade, o evangelho de Jesus está cada vez mais recolhido e dando espaço ao movimento neopentecostal, declarado ou embutido, nas igrejas de origem pentecostal.

O resultado de um pseudo evangelho difundido por uma igreja evangélica praticamente absorvida por um movimento herético é a descaracterização do que seria uma igreja evangélica. Dizer-se evangélico hoje é ser confundido com o movimento neopentecostal, que é o segmento mais visível, conhecido e difundido por meio das estratégias de mídia dos grandes representantes desse movimento. Para perplexidade de muitos, até mesmo uma igreja da Assembleia de Deus, nacionalmente conhecida por preencher a programação de redes de televisão, abraçou a teologia da prosperidade e tem sido uma ponte migratória ao neopentecostalismo para muitas outras denominações de raízes assembleianas. Se o movimento neopentecostal continuar a crescer no ritmo atual, em pouco tempo os originalmente “evangélicos” terão que abandonar esse termo porque o neopentecostalismo terá se apropriado dessa expressão e de tudo o que diga respeito aos evangélicos.

Como afirmamos na introdução deste volume, outro resultado da influência de um evangelho egoísta, narcisista, avarento, vaidoso, extravagante e permissivo tem sido os escândalos que se repetem, um após outro. O que não faltam nos noticiários são pastores presos, envolvidos com tráfico de drogas e outros crimes como evasão de divisas nacionais, lavagem de dinheiro, pedofilia e estelionato.

No plano interno, temos observado divórcios de líderes evangélicos e de cantores gospel, além de casos de adultério. Também, o modo como as lideranças evangélicas fazem uso do dinheiro que recolhem a título de dízimos e de ofertas tem sido estarrecedor. A simplicidade praticamente foi extinta do dicionário dos líderes “de sucesso”. Estes, gastam muitas horas semanais em programas de TV pedindo dinheiro aos telespectadores, disputam cargos políticos, compram aviões e redes de televisão com dinheiro dos fiéis, montam estruturas comerciais para exploração da fé (mensagens, livros, músicas, cursos, palestras etc.) e desfrutam de uma vida digna de magnatas, empresários da fé.

Curiosamente, a força desse movimento é tão grande que nem a divulgação pública de seus atos indignos é capaz de contê-los. As pessoas cujas mentes foram aprisionadas em sistemas religiosos controladores parecem preferir não ver o que se passa. Nem mesmo anúncio das estratégias mais sórdidas para explorar e furtar o dinheiro dos fiéis é suficiente para que as pessoas acordem do estado de letargia que se encontram.

Diante disso, se não há como acordar os que dormem sono profundo, resta-nos propor aos que estão acordados que percebam a situação em que a igreja se encontra para que haja esperança de confecção de um vestido novo para que a igreja não aumente suas roturas e seja cada vez mais envergonhada. Também, é preciso de um odre novo, para que Deus possa nos agraciar com um vinho novo, uma experiência genuinamente pentecostal e amparada pelas Escrituras Sagradas.

Tomemos, pois, os conselhos de Paulo a Timóteo, para que possamos mudar o que tem de ser mudado, ainda que tenhamos de resistir ou mesmo abandonar o modelo contaminado por ensinos dissociados da piedade e enraizados no materialismo, na avareza e na exploração da fé, pois a piedade não pode ser pretexto para a obtenção de lucros. A devoção a Deus ou às causas religiosas não podem servir de pretexto para se obter qualquer tipo de vantagem pessoal.

Se não fizermos alguma coisa para mudar esse quadro, seremos contados com aqueles que, seduzidos pelo desejo de ficar ricos, caem em tentação, cilada e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e na perdição, “porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males e alguns, nessa cobiça, desviaram-se da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores.” (1Tm 6:10, grifo nosso).

Um erro não justifica outro. Nossa proposta não é de extinção da igreja e nem que os cristãos sinceros abandonem a ideia de congregação para viver isolados, indiferentes à grande luta pela salvação de almas. Isso seria um erro tão grande como o dos exploradores da fé!

Independentemente do formato escolhido por cada grupo, a igreja de Jesus ainda é referencial para o exercício da nossa comunhão uns com os outros, para aprendizado mútuo, para exercício da paciência e para a reunião de forças em torno de um mesmo propósito. Sobre a importância inegável da igreja, Oliveira (2005, p. 135) diz o seguinte:

“Para muitos de nós que temos famílias com filhos, essa comunidade é uma âncora poderosa na estruturação da personalidade dos filhos e um instrumento eficaz para dotá-los das únicas e melhores armas com as quais poderão mais tarde enfrentar a maré das drogas, da devassidão sexual, da revolta gratuita e da violência de nossas cidades. […] a missão da igreja é servir, e na medida em que ela se entrega de fato a cumprir a sua razão de ser, ela anuncia as boas novas do evangelho, assiste os deserdados da sociedade, consola os fracos e oprimidos e dá esperança a quem não tem mais razões para tê-la. Essa ação, em seus aspectos puramente materiais, é viabilizada mediante as ofertas de todos os membros da comunidade, de modo que temos centenas de razões óbvias à nossa frente que justificam a nossa contribuição”.

Quanto aos líderes fraudulentos, sabemos que não é possível arrancar o joio, pois o trigo se perderia juntamente com ele. O momento correto da separação será na consumação dos séculos (Mt 13:33-43). Também, temos consciência de que a existência de falso profetas não deve nos fazer desacreditar os verdadeiros pastores. Em qualquer desses casos, se nos acovardarmos e nos omitirmos, somente perderemos espaço para as obras malignas do Diabo.

Abandonar a instituição sagrada da igreja não é a solução. Tentar arrancar o joio é proibido. Desprezar os verdadeiros pastores e equipará-los aos falsos mestres é insensato.

Então, o que fazer? Acreditamos que a coisa mais equilibrada a ser feita é viabilizar a igreja de Cristo. Como? Fixando padrões bíblicos corretos, em especial, os seguintes:

  1. princípios e valores cristãos são inegociáveis;
  2. contribuir e ofertar pelos motivos corretos;
  3. arrecadar sob fundamentos honestos;
  4. aplicar a receita de modo responsável e bíblico.

Princípios e valores cristãos inegociáveis

Se queremos uma igreja segundo os padrões bíblicos, não podemos nos esquecer que isso só será possível se a pregação e a prática estiverem em harmonia com os princípios e com os valores que nos foram ensinados por Jesus.

Uma vez que decidimos praticar o que aprendemos com o nosso Mestre, cumpre-nos afastar de nossas vidas toda sorte de heresias, juntamente com os falsos mestres que as ensinam.

Também, é necessário abandonar qualquer comunhão com as trevas, para que possamos apresentar ao mundo uma igreja santa, separada do pecado, com pastores  e membros fiéis às suas esposas até a morte, honestos, humildes, sinceros, verdadeiros, simples, comprometidos com o evangelho da salvação, que não se vendam a políticos e que não negociem votos eleitorais; uma igreja que seja abstêmia do mundanismo, livre de mercadores de CDs, de mensagens, de palestras, de indulgências ou de qualquer outro material ou serviço cujo objetivo, mesmo que disfarçado, seja a obtenção de lucros; uma igreja capaz de disciplinar seus membros, inclusive os ricos e influentes, sem medo que eles fujam para outras denominações.

Precisamos levantar e valorizar a igreja do Senhor Jesus e não cooperar com aqueles que querem destruí-la, ridicularizá‑la e torná-la desprezível.

Contribuir e ofertar pelos motivos corretos

Sabemos que a generosidade é uma virtude compatível com a vida cristã. Também, estamos cientes da soberania de Deus e que tudo o que temos vem dele. Somos mordomos, é verdade. Entretanto, a ninguém é dado o direito de utilizar esses argumentos para, com o ardil religioso da falsa piedade, explorar-nos para, depois, utilizar o produto da arrecadação em fins desconexos com a vontade do próprio soberano. Sobre a questão da aplicação, trataremos dela mais adiante. Cabe-nos neste tópico, então, apenas tecer alguns comentários sobre os motivos corretos que nos leva a entregarmos nossos recursos a pessoas comprometidas com os propósitos bíblicos das coletas.

Em breve relato, Oliveira (2005, p. 120-121) trata com propriedade esta questão, conforme segue:

“Assim, a nossa contribuição deve ser um reflexo de que entendemos o nosso trabalho como vida doada por Deus. Deve ser um ato excelente, exemplar, revestido de toda a dignidade, de todo o amor e de toda a dedicação. Uma ação plena de alegria e paz. Uma demonstração de amor e misericórdia.

A esses valores devemos juntar os ensinamentos da ‘síntese paulina’, ou seja: a nossa contribuição deve ser revestida de uma espontaneidade total, além de representar uma ação sacrificial, repleta de alegria, cheia de boa vontade, que reflete muito mais a nossa humildade do que a nossa grandeza. E ao entregarmos a nossa contribuição à comunidade, queremos estar certos de que ela será empregada para assistir às ‘necessidades dos santos’, e em nada mais além disso.

Só assim a contribuição será efetivamente uma bênção na vida do cristão, só assim ela lhe será leve, e só assim ela servirá para edifica-lo. Em suma, a motivação principal que estará por trás dessa contribuição é o amor a Deus e ao próximo. Portanto, podemos concordar plenamente com esta afirmação: ‘Qualquer outro apelo que não seja o amor, será um apelo errado. A mordomia cristã não é legalismo infrutífero, mas é a alegria de dar-se a si mesmo, com liberdade sacrificial’.” (grifo nosso).

Nesse sentido, afastando a Lei naquilo que ela se torna incompatível com os ensinamentos de Cristo, cumpre-nos concordar que o ato de compartilhar o que se tem deve estar ligado à liberalidade da graça. Em termos bíblicos, o princípio da liberalidade da graça associado à causa do amor fraternal, assim se apresenta:

“7 Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria. 8 Deus pode fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa obra,” (2Co 9:7-8, grifo nosso).

“13 visto como, na prova desta ministração, glorificam a Deus pela obediência da vossa confissão quanto ao evangelho de Cristo e pela liberalidade com que contribuís para eles e para todos, 14 enquanto oram eles a vosso favor, com grande afeto, em virtude da superabundante graça de Deus que há em vós. 15 Graças a Deus pelo seu dom inefável!” (2Co 9:13-15, grifo nosso).

Ora, se vivemos no tempo da graça, devemos moldar nossas atitudes em coerência com a graça. Isso não significa dizer que desprezamos os textos do Antigo Testamento ou mesmo os ensinos do tempo da Lei de Moisés, mas que devemos interpretá-los, doravante, pela perspectiva da graça e do ensinamento de Cristo Jesus.

“21 Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão.” (Gl 2:21, grifo nosso).

“3 De novo, testifico a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a guardar toda a lei. 4 De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei; da graça decaístes.” (Gl 5:3-4, grifo nosso).

“24 De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé. 25 Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio.” (Gl 3:24-25, grifo nosso).

A despeito dos claros ensinamentos sobre a liberalidade da graça, a realidade nos mostra que a maioria das pessoas que são dizimistas e ofertantes nas igrejas, contribuem sob o inaplicável fundamento da Lei de Moisés.

Defendemos, portanto, que a igreja informe aos seus membros os fundamentos corretos para que contribuam do modo como propuserem em seus corações, quais sejam: o amor a Deus, o amor ao próximo, a liberalidade e o desprendimento do materialismo pela generosidade.

Certamente, uma contribuição com base nesses fundamentos estará em sintonia com o ensino de Jesus, que é amar a Deus e o próximo como a nós mesmos. Nesse mandamento Jesus já sabia o quanto o homem ama a si mesmo, por isso nos incentiva a amar o próximo como nós já amamos a nós mesmos. É fácil notar, hoje em dia, o quanto o homem é um grande amante de si mesmo. Por isso se ele amar o próximo com a intensidade que ele ama a si mesmo, ele amará muito o seu próximo e será generoso para com ele.

Arrecadar sob fundamentos honestos

Se as pessoas estão entregando dízimos e ofertas com base em fundamentos errados, não podemos atribuir somente a eles o erro. Em boa medida, estão falhando porque dão ouvidos aos pregadores do engano, homens gananciosos, cuja estratégia para arrecadar mais dinheiro é desprovida de misericórdia e de temor a Deus. Estes homens, falsos piedosos, com ardil convencem os fiéis, e até mesmo visitantes, a abrirem suas carteiras.

Os mais cuidadosos, primeiramente apresentam a verdade, mas dela se desviam sutilmente ao longo de suas pregações e práticas. Iniciam sua argumentação provando biblicamente (e isso é fácil) que Deus é soberano, dono de todas as coisas, poderoso para abençoar seus filhos e que nós somos apenas mordomos de tudo o que dele recebemos. Depois que seu público está convencido da sua sinceridade e da assertividade de sua mensagem, ele introduz o equívoco bíblico para dar suporte ao seu pedido de dízimos e de ofertas: ele apresenta Lei verotestamentária como se Deus exigisse o seu cumprimento por parte da igreja. Isso não é honesto!

Há, ainda, aqueles que, seguros da ignorância do povo, não têm tanta preocupação em apresentar muitos fundamentos bíblicos para sua “doutrina de dízimos e de ofertas”. Estes, apresentando alguns versículos descontextualizados, partem para uma argumentação emocional, seguida de testemunhos e, assim, aproveitam-se da ganância ou da necessidade das próprias pessoas para alcançar seus propósitos financeiros.

Para tanto, seus fundamentos mais comuns são: a Lei dos dízimos e das ofertas, bênçãos e maldições, o livro do profeta Malaquias e exemplos de sacrifícios realizados por personagens bíblicos. Manejando bem esses elementos de convicção, conseguem introduzir na mente dos ouvintes o medo do “devorador” (Ml 3.11); o medo de serem amaldiçoados; o medo verem seus recursos consumidos por médicos, remédios, desastres etc. (saco furado); ou, pior, o medo de serem desobediente a Deus e perderem a salvação, já que afirmam que quem não entrega seus dízimos e suas ofertas está roubando a Deus. Tais pregações são verdadeiras coações morais. Isso não é honesto!

Ora, se algum líder religioso utiliza a distorção bíblica para arrecadar dízimos e ofertas, ainda que pretenda aplicá-los em fins bíblicos, age contrariamente à vontade de Deus, pois os fins não justificam os meios. Sejamos honestos! Se pretendemos reunir fundos para suprir as necessidades biblicamente corretas da igreja, devemos fazer isso apresentando a verdade aos fiéis, que, certamente, serão solícitos e generosos. Oliveira (2005, p. 120-121) ensina corretamente que:

“cada um deverá separar aquilo que o seu próprio coração desejar separar para contribuir, e o fará de forma totalmente tranquila, sem constrangimentos ou pressões. A cada contribuição, a sua oferta será um reflexo do seu momento, do seu estado de espírito, da sua compreensão das necessidades de sua comunidade, da sua plena identificação com ela e com os seus propósitos de serviço cristão.

Longe de sua cabeça e de seu coração estarão preocupações quanto a percentuais, épocas ou dias, sobre que base de renda deverá contribuir etc. O cristão não é constrangido por regras legais, mas reconhece que só ‘a caridade de Cristo nos compele’ (II Co 5:14a).

Da mesma forma, sentimentos de superioridade, de vantagem, etc., estarão ausentes de seu coração, de tal modo que soarão como uma coisa quase absurda ideias como a que segue:

‘Está fora de dúvida que no Novo Testamento é clara a obrigação do povo de Deus contribuir para sustentar o culto (I Co 9:13, 14) e a obra da Igreja em todos os seus aspectos. Como o evangelho é superior à Lei e o Novo Testamento ultrapassa o Antigo, por questão de lógica, o cristão está obrigado a dar muito mais que o dízimo’.”

Portanto, pedir a colaboração do grupo de cristãos em favor das causas do evangelho não é pecado, mas pedir com ardil e distorção bíblica é totalmente reprovável diante de Deus.

Aplicar a receita de modo responsável e bíblico

Já sabemos que pedir sob fundamentos honestos não é pecado e que contribuir pela motivação correta é uma virtude. Porém, ainda precisamos analisar se o modo como gastamos os recursos arrecadados nos aprova ou reprova diante de Deus.

Relembrando o que já estudamos, tanto os dízimos quanto as ofertas da Lei tinham uma destinação específica, de modo que não podiam ser utilizados livremente pelos levitas ou pelos sacerdotes. De modo semelhante, as coletas realizadas nas epístolas também tinham endereço certo – o suprimento da necessidade dos pobres.

Daí, não vemos como razoável que a arrecadação da igreja seja um “cheque em branco” dado ao pastor, para poder usá-lo como bem entender, sem observar sequer as prioridades estabelecidas na Palavra de Deus. No mínimo, da conta dos cristãos deve-se excluir o supérfluo, os objetos das vaidades humanas, o luxo, a pompa eclesiástica, o glamour e outras aquisições que só servem como demonstração de poder econômico e religioso.

Nesse sentido, Oliveira (2005, p. 124, 126), assevera que:

“A igreja deve repensar a sua estrutura e reduzi-la sempre que ela estiver inchada e abusivamente grande. Ela precisa despojar-se e ser capaz de servir da forma mais efetiva e simples possível, sem pompas ou aparatos. Creio com absoluta certeza que caminhamos para uma época em que cada vez mais necessitaremos de uma Igreja tão ‘descartável’ quanto possível, uma Igreja efetivamente ‘pobre’, despida dos enfeites deste mundo, mas bem adornada com virtudes espirituais.

[…]

Todo o esforço deve ser feito para que essas listas de necessidades sejam expurgadas de todo o supérfluo, e reflitam assim a justa medida das verdadeiras demandas de uma comunidade sadia e atenta às reais necessidades dos santos. Ninguém deve se sentir sobrecarregado, ou explorado, ou intimidado. Tudo deve ser feito de forma transparente e repleta de amor.”

Portanto, sob nossa ótica, no que diz respeito ao modo de aplicação dos recursos recolhidos da comunidade dos cristãos, nossa diretriz deve ser o evangelho puro e autêntico, que valoriza a simplicidade, o amor ágape a Deus e ao próximo, e que, certamente, inclui a generosidade e a fraternidade ao passo que exclui a avareza e as extravagâncias de seus líderes.

Nesse sentido, Oliveira (2005, p. 108) afirma acertadamente o seguinte:

Em segundo lugar, o conjunto dos textos aponta com clareza para uma verdade só: a contribuição deve ser destinada, sempre, ao sustento das vidas das pessoas, um verdadeiro ‘serviço em proveito dos santos’. Devemos nos lembra disso, quando usarmos o dinheiro arrecadado na Igreja para fins que nada têm a ver com esse destino último, mas que muitas vezes servem apenas à vaidade de algumas pessoas ou aos desvarios de uma comunidade.”

Se, por um lado, devemos arcar com as despesas administrativas necessárias à manutenção da estrutura (equipamentos, aluguel, água, luz, material de limpeza etc.), bem como para o desenvolvimento dos projetos de pregação do evangelho, por outro lado é necessário que estes gastos estejam livres de qualquer tipo de luxo ou extravagâncias, de modo que não seja afetada a principal função da arrecadação: o socorro fraternal e a ação social. Certamente, tais providências serão suficientes para a subsistência e para o progresso da igreja cristã.

A viabilização da igreja consiste em afastar toda sorte de heresias e práticas reprováveis diante de Deus e dos homens, bem como em resgatar seus valores bíblicos, a exemplo da verdade. Aí se inclui a honestidade no pedir e na aplicação dos recursos recolhidos.

Portanto, se queremos viabilizar a igreja, na prática, somos responsáveis por informar os fiéis sobre a forma correta de serem participantes das necessidades materiais da igreja. Também, cumpre-nos deixá-los livres para contribuir com o que propuserem em seus corações, sem constrangimentos ou coações morais; sem estipulação de percentuais, épocas ou dias; e sem fazer qualquer julgamento a respeito do quanto e do modo como cada um decidiu cooperar. Por último, não podemos permitir que a arrecadação deixe em último plano a assistência fraternal e o exercício do amor. Para tanto, se necessário, deve-se limitar os gastos com as estruturas institucionais ao essencial ao seu funcionamento – o pastor deve ser o primeiro a oferecer seus serviços sacrificiais, sem cobrar por isso e sem ser pesado à igreja.

Vaidades, extravagâncias, luxo, glamour, comércio e falta de transparência dos gastos, são coisas a serem abolidas de qualquer instituição que pretenda ser conhecida como igreja de Jesus.

 

CONCLUSÃO

Como afirmamos em nossa proposta metodológica, este volume não foi pensado para ser um trabalho científico e nem mesmo pretende equiparar-se às perfeitas obras editadas pelos grandes pensadores cristãos que marcaram época, a exemplo de C. S. Lewis e John Stott. Contudo, incomoda-nos ver o que se passa com a igreja de Jesus e ficar em silêncio. Este é o nosso protesto! Não queremos ser contados entre aqueles que criticam e nada fazem. Por isso, além de praticarmos o que propomos nesta obra, decidimos apresentar ao público cristão o resultado de nossas reflexões particulares, as quais pontuaremos nos parágrafos seguintes.

Nossa primeira conclusão é que os patriarcas Abraão e Jacó não podem servir de parâmetro e de incentivo para as modernas cobranças de dízimos. O percentual de suas ofertas, ou propostas (no caso de Jacó), pode até coincidir, mas os fundamentos para os atos dos patriarcas são absolutamente distintos do dízimo da Lei e das coletas referenciadas nas epístolas paulinas. Logo, não há que se falar que os dízimos foram inseridos para o tempo da igreja de Jesus conhecido como “período da graça”.

Em seguida, afirmamos que as ofertas designadas pela Lei de Moisés não são aplicáveis à prática da igreja contemporânea, pois o termo “oferta” referido na Lei pouco coincide com os fins das “ofertas em dinheiro” recolhidas na igreja contemporânea. Estas são distintas daquelas em seus fundamentos e em seus fins.

De modo semelhante, os dízimos instituídos pela Lei de Moisés são distintos dos cobrados pela igreja contemporânea. Embora o percentual seja idêntico (10%), os fins em que são aplicados os dízimos da igreja hoje não são os mesmos definidos pela Lei. Tampouco se parecem com as coletas realizadas entre os crentes para a assistência aos santos. Na prática, a aplicação do que se recolhe a título de dízimos é livre, ou seja, a liderança da igreja pode fazer o que bem entender com ela, desde pagamentos de despesas básicas do culto à compra de aviões ou mesmo de uma rede de televisão. Tanto os dízimos da Lei como as coletas citadas nas epístolas paulinas possuem fundamentos e finalidades diferentes do que se vê hoje na igreja contemporânea, de modo que essa cobrança hoje carece de amparo bíblico.

Por ocasião das reformas religiosas israelitas ocorridas no período pré-exílico, em especial no reinado de Joás, Ezequias e Josias, o culto levítico era sempre restaurado, reativando-se fielmente o sistema de dízimos e ofertas da Lei. Mas, com o cativeiro, o culto a Deus no Templo foi interrompido e somente foi restaurado depois do exílio, tempo em que foram separados oficiais para administrar as câmaras do tesouro (galpões onde se recolhiam os dízimos) na cidade de Jerusalém e fora dela. Nessa ocasião, o profeta Malaquias fez uma série de advertências ao povo e aos sacerdotes, convocando a todos a se empenharem para o restabelecimento das contribuições da Lei para a reativação do culto levítico, de modo que as referências aos dízimos e às ofertas no livro do profeta Malaquias apontam para o cumprimento da Lei, a qual não serve de parâmetro ou fundamento para a mesma espécie de cobrança pela igreja que vive no tempo da graça.

Na sequência, mostramos que Jesus não revogou a Lei, mas consumou-a cumprindo-a até que tudo se cumprisse nele. Com sua morte e ressurreição, a Lei perde a validade e inicia-se o tempo da salvação pela graça e não mais pelo cumprimento dos rituais levíticos. Ao mesmo tempo que a Lei perde a validade e não mais se aplica à igreja de Jesus, com ela esvai-se a exigência de dízimos e de ofertas. O culto deixa de depender de levitas, de sacerdotes, de templo e, consequentemente, de dízimos e de ofertas segundo a Lei.

Para confirmar a impossibilidade de manutenção de dízimos e de ofertas no período da graça, esclarecemos que Jesus somente não criticou a sua cobrança em seus dias porque ele próprio, nascido sob a Lei, estava cumprindo a Lei enquanto a consumava. Por isso, não criou obstáculos aos homens que a cumpriam, entregando seus dízimos, pagando os impostos do Templo ou levando ao altar suas oferendas, até porque, durante seu ministério, o sistema de ofertas e sacrifícios estava em plena atividade. O Templo funcionava com seus levitas e sacerdotes em atenção às regras instituídas pela Lei de Moisés. Por isso, os dízimos e as ofertas só são abolidos após a morte e ressureição de Jesus, o que explica o fato dele não ter recriminado sua cobrança enquanto a Lei ainda vigorava.

Ainda, para evidenciar que a preocupação de Jesus era afastar o homem da hipocrisia, do materialismo, do egoísmo, da avareza, da ansiedade por riquezas e glória, da vaidade, do comércio por trás da fé e da presunção de que só pode realizar sua missão com dinheiro, apresentamos todas as passagens em que Jesus, em seu ministério, tratou da questão do dinheiro, dos bens, das riquezas, do dízimo, das ofertas e dos impostos civis.

Sobre dinheiro e recursos materiais Jesus foi muito claro: o objetivo do evangelho é o céu e não a terra.

Em seguida, com o fim de demonstrar a nova realidade cristã, após a consumação da Lei, apresentamos as evidências de que a igreja de Atos dos Apóstolos não praticou a cobrança de dízimos e de ofertas sob qualquer pretexto, nem mesmo para a expansão do trabalho missionário cristão ou mesmo para a manutenção de locais de culto. Tudo o que encontramos no livro de Atos dos Apóstolos são doações espontâneas para socorro aos necessitados. No mesmo sentido, todas as informações das epístolas do Novo Testamento nos remetem à conclusão de que a igreja primitiva não foi praticante de contribuições a título de dízimos e de ofertas, mas de coletas para fins específicos do exercício do amor e socorro fraternal.

Naturalmente, assim como a igreja primitiva, a igreja dos primeiros séculos desconhecia a cobrança de dízimos e de ofertas até que o sistema papal instituiu dízimos comparáveis a impostos. Mas, com a Reforma Protestante, essa cobrança foi abolida da igreja reformada e, curiosamente, a figura da cobrança de dízimos foi retomada apenas no século XVIII.

Em exame bíblico e histórico, concluímos que a doutrina que sustenta a cobrança de dízimos e de ofertas hoje é uma criação totalmente nova, provavelmente desenvolvida a partir do século XVIII. Trata-se, na verdade, de uma reinterpretação do dízimo da Lei e apresenta fundamentos totalmente distintos das coletas realizadas pela igreja primitiva.

Mas, como a igreja do século XXI está cada vez mais empenhada em fortalecer e justificar essa doutrina estranha, anotamos nossas discordâncias dos fundamentos utilizados pela igreja contemporânea (tradicional, pentecostal ou neopentecostal) para cobrança de dízimos e de ofertas. Entre outros argumentos, refutamos a alegação de que Jesus ratificou a cobrança de dízimos, e afirmamos que não é razoável justificar a cobrança de dízimos e de ofertas na necessidade de realizar compromissos institucionais da igreja, pois, conquanto seja compreensível a coleta de contribuições dos membros para esse fim, a definição do percentual mínimo de 10% dos rendimentos individuais dos membros da igreja é antibíblica. Se o fundamento para a cooperação não é a Lei, não há que se falar em percentuais.

Após analisar o sistema de dízimos e ofertas neopentecostais, onde o dinheiro é a chave que abre todas as portas, repreende o devorador e mantém o homem debaixo da cultura do medo, concluímos que as igrejas contaminadas pelo sistema neopentecostal exploram materialmente as pessoas, não praticam a justiça e ainda agem com desonestidade, porque o que eles fazem nunca foi estimulado nem por Jesus nem por seus apóstolos. Jesus nunca condicionou a libertação ou as suas bênçãos a nenhum tipo de fidelidade financeira. O Mestre nem mesmo tratou de dízimos e ofertas em seu ministério. Antes, proclamou libertação aos cativos anunciando-lhes a verdade e ensinando o caminho que leva o homem a Deus pelo evangelho da salvação, baseado no arrependimento, na confissão de pecados, no perdão, na justificação por seu sangue e na transformação pelo batismo que sepulta o velho homem materialista e egoísta para dar lugar a um novo homem, espiritual e altruísta.

Conforme anotamos, as lideranças evangélicas hodiernas têm distorcido a palavra de Deus sob influência neopentecostal para cobrar dízimos e ofertas, entesourar com extravagâncias seus ministros e suas instituições eclesiásticas, além de criar ídolos humanos, comerciantes da fé, cujos exemplos são vaidade, soberba, malícia, desonestidade, egoísmo, avareza e insensibilidade à palavra de Deus. Os ensinamentos dessas lideranças evangélicas não concordam com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, uma vez que não podemos constatar nesses exploradores da fé qualquer misericórdia e compaixão, apesar de sua aparente devoção a Deus.

Tais homens, líderes modernos, são devotos de si mesmos, enfatuados (presunçosos, vaidosos e arrogantes) buscando suprir suas paixões e ambições terrenas, supondo que a piedade é fonte de lucro. Ao passo que cobram por tudo o que fazem em nome da fé, são impiedosos, incapazes de se doarem sem esperar nada em troca. Estes, querem ficar ricos e já caíram na tentação, pois foram seduzidos pelos desejos de serem famosos, ricos e influentes. Nessa cobiça, estes se desviaram da fé verdadeira. Paulo não teve dúvida ao nos advertir: “[…] ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão.” (1Tm 6:3-11, grifo nosso).

Daí, diante desse cenário, e com base em todos os argumentos apresentados neste título, deixamos uma sugestão para viabilizar a igreja. Acreditamos que a solução é a retomada da pregação do evangelho puro e simples, que valoriza a simplicidade, o amor ágape a Deus e ao próximo, e que, certamente, inclui a generosidade e a fraternidade, ao passo que exclui a avareza e as extravagâncias. Cremos que isso será suficiente para a subsistência e para o progresso da igreja cristã, sendo desnecessário impor a cultura do medo e enganar os fiéis com a cobrança de dízimos e de ofertas, que não se aplicam à igreja.

Na prática financeira, sugerimos que as lideranças ensinem a verdade sobre dízimos e ofertas, deixando os fiéis livres para contribuírem com o que propuserem em seus corações – sem constrangimentos ou coações morais; sem estipulação de percentuais, de épocas ou de dias; e sem fazer qualquer julgamento a respeito do quanto e do modo como cada um decidiu cooperar.

Por fim, conclamamos a todos que desejam viabilizar a igreja de Jesus a priorizar a assistência fraternal e o exercício do amor, limitando ao essencial os gastos com suas estruturas institucionais, inclusive com salários, uma vez que o pastor pode ser o primeiro a oferecer seus serviços sacrificiais, sem cobrar por isso e sem ser pesado à igreja, até porque vaidades, extravagâncias e luxo são coisas a serem abolidas de qualquer instituição que pretenda ser conhecida como igreja de Jesus.

 

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[1] Juiz de Direito – ES

Mestre em Direito pela FDC/RJ

Doutor em Teologia (Soteriologia) pela FATEF/RJ

Mestre em Teologia (Bibliologia) pelo SBTe/MG

Practitioner em PNL pelo INDESP/ES

Membro da Academia Cachoeirense de Letras

Escritor, autor de quatorze livros publicados.

[2] Foi por causa dessa possibilidade que o Templo se encheu de cambistas e vendedores, os quais foram duramente repreendidos por Jesus (Mt 21:12).

[3] Sobre a generosidade, solução para os ricos, trataremos ao final deste título.

[4] Não existem dados que permitam precisar a data nem o lugar da composição do livro de Atos dos Apóstolos. Muitos pensam que foi publicado uns 25 ou 30 anos depois da morte de Paulo (67 d.C), aproximadamente durante a década de 80 d.C.

[5] Nota do revisor: “De fato, primeira igreja cristã foi uma das primeiras experiências de tentativa de organização social comunista que se tem registro em uma civilização mais organizada. Grosso modo, o objetivo final é o mesmo do modelo comunista idealizado por Marx (a eliminação da desigualdade de renda por meio da socialização da riqueza), mas os meios de se alcançar tal objetivo é que são diferentes. Enquanto Marx propõe a implantação do comunismo por meio da eliminação compulsória da propriedade privada, da força e da revolução do proletariado (governo socialista), a primeira igreja propunha uma “revolução interna” voluntária e pacífica, por meio do exemplo, do altruísmo e do amor ao próximo. Esse “cunho social” foi um dos grandes motivos de propagação do cristianismo entre as camadas mais pobres das sociedades no Império Romano”.

[6] A mesma preocupação é perceptível quando Paulo escreve a Timóteo e orienta a assistência às viúvas (1Tm 5:3-16).

[7] Na carta aos romanos (Rm 15:25-27), Paulo também diz que as doações das igrejas aos judeus eram uma forma de agradecimento por serem participantes da mesma salvação (bênçãos espirituais).

[8] Vine, Unger e White Júnior (2007) apresentam a definição de piedade (eusebeia = eu, “bom”, e sebomai, “ser devoto”), caracterizando uma atitude de devoção a Deus ao fazer o que lhe é extremamente agradável, mas devemos considerar que em alguns contextos neotestamentários, o sentido do termo é “compaixão pelos sofrimentos alheios”, conforme definição de Boyer (1978), a exemplo de 1Tm 5:3-5, cujo contexto não permite outro significado senão “compaixão e misericórdia”.

[9] Quaker (também denominado quacre em Português) é o nome dado a vários grupos religiosos, com origem comum num movimento protestante britânico do século XVII. […] Criado em 1652, pelo inglês George Fox, o movimento Quaker pretendeu ser a restauração da fé cristã original, após séculos de apostasia; eles se chamavam de “Santos”, “Filhos da Luz” e “Amigos da Verdade” – donde surge, no século XVIII, o nome “Sociedade dos Amigos”. (QUAKER, 2014).

[10] À pergunta por que Deus escolheria quais os homens a serem salvos e quais os condenados, independentemente de seus méritos, Calvino responde mais uma vez com as palavras de São Paulo: “Pois ele diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem Eu tiver misericórdia.” Conclui Calvino: “Em conformidade, pois, com a clara doutrina das Escrituras asseveramos que Deus, por um desígnio eterno e imutável, determinou de uma vez para sempre quais as criaturas que ele admitiria à salvação e quais as que condenaria à destruição. Afirmamos que esse desígnio, no que diz respeito ao escolhido, baseia-se em Sua bondade gratuita, totalmente independente do mérito humano, mas que, para os que ele destina à condenação, o portão da vida encontra-se fechado por uma decisão justa e irrepreensível, porém incompreensível.” (DURANT, 2002).

[11] Não estou associando as raízes da teologia da prosperidade a Calvino. O tópico apenas pretende mostrar que a relação entre riqueza e bênção foi constatada no tempo da Reforma Protestante, assim como existia no tempo de Moisés, de Jesus e existe hoje com a propagação da teologia da prosperidade.

[12] Um dos pecados mais enfatizados é a infidelidade nos dízimos e ofertas, que torna o homem um ladrão que rouba a Deus.

[13] “Pensão que se concedia aos párocos para sua conveniente sustentação” (FERREIRA, 2010).

[14] “No Brasil o dízimo voltou a ser implantado pela CNBB na Igreja Católica após 1969, quando o sistema de pagamento de taxas pelos serviços prestados pela Igreja haviam sido consideradas ‘pastoralmente inadequadas’. Por essa sugestão, os dízimos não tinham sentido meramente monetário, mas centravam-se em atender às necessidades das dimensões social, religiosa e missionária assumidas pela Igreja. Desde então normalmente não se utilizava a estipulação de porcentagem da renda dos adeptos, mas uma doação de compromisso de acordo com a sua possibilidade e disposição, uma proposta de participação do fiel na Igreja. Todavia, a maioria das paróquias, no Brasil, ainda não possuem esta prática implementada, embora esteja em franca expansão pela ação das pastorais do dízimo. O Papa Bento XVI extinguiu o termo ‘dízimos’ do quinto Mandamento da Igreja, conforme Compêndio do Catecismo da Igreja Católica por ele promulgado em 28 de junho de 2005 e republicado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O Quinto Mandamento agora é assim: ‘Atender às necessidades materiais da Igreja, cada qual segundo as próprias possibilidades’”. (DÍZIMO, 2014).